sexta-feira, 18 de maio de 2007

Outro poema: "Do real imaginado"


O conto da criação

A pena,
pavio de sol,
raia a palavra terra
até à pedra;
onde a gema flora.

A chama apura o topázio,
uma estrela nasce
sobre o mar.

Quando a cor toca na água,
a palavra começa a respirar.

Meu só momento:
o facho da letra
fecunda as fendas de sal
e sou o fundo onde a vida aflora.

Mera sensação: o que resta
é sempre o poema,
sobra do mar -

ainda que, como agora,
a gota de uma vogal

mine sozinha na página.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Crônica: "Às mães"


O domingo das mães se foi, mas o dia em questão é a quinta-feira passada, quando se sepultaram Uraquitan e Ubiraci Novelino. Minutos depois do enterro, Dona Vilma Novelino, 55 anos, resumiu duas semanas de horror numa frase profética: 'Nossos filhos já não são para nós'.

Naquele momento, Dona Vilma era intocável em sua condição de mãe, inviolável em sua pura qualidade de amor, doação, piedade. Uraquitan e Ubiraci foram atraídos para uma armadilha por um amigo de longa data (o empresário Chico Ferreira) e morreram estrangulados num assalto forjado; os corpos (atirados à baía do Guajará acorrentados a baldes de concreto) só foram resgatados após dez dias de penosas buscas. 'Nossos filhos já não são para nós', resumiu dona Vilma, como se dissesse: 'Agora eles são para Deus, para os anjos'; e como se dissesse, sobretudo: 'Damos à luz, cuidamos, zelamos, e simplesmente vem alguém e nos toma os filhos amados'.

Naquele momento, inviolável, Dona Vilma Novelino estava longe dos negócios dos filhos (da rede de 17 postos de combustíveis formada em doze anos, das acusações de que foram assassinados por emprestar, a Chico Ferreira, R$ 4 milhões a juros exorbitantes...), e estava longe da palavra 'vingança', sempre usada nas perguntas dos jornalistas ao patriarca da família, Ubiratan Novelino, e ao filho deputado estadual, Alessandro Novelino (ninguém perguntou à família do médico Paulo Sérgio Melo Cavalero de Macedo, assassinado durante um assalto, se pensava em 'vingança'): Dona Vilma era, naquela quinta-feira, apenas este ser supremo, mãe, que acabara de enterrar dois filhos.

Num tempo de iniqüidades, num mundo onde não confiamos nem nos remédios, nessa época egoísta e egocêntrica, as mães são raras heroínas: o que fazem todo dia pelos filhos merece uma Legião da Honra por semana. A ligação com os filhos é eterna - uma amiga, por exemplo, Nadir, ia de carro do Rio de Janeiro para São Paulo quando sentiu um aperto no peito: 'Preciso telefonar para casa!'. Ainda não havia celular, e tiveram que chegar ao primeiro posto de combustíveis: ao ligar, Nadir descobriu que o filho sofrera um acidente grave, na volta de Mosqueiro para Belém.

Os homens têm suas questões, sua maneira de botar para fora, quase sempre de uma vez só, tudo o que sufoca por dentro. O deputado Alessandro Novelino envolveu-se 100% com o resgate dos corpos dos irmãos; mobilizou um batalhão de amigos e autoridades nas buscas e nas investigações sobre os criminosos; foi visto em todos os lugares, em todos os horários, incansável; e, naquela quinta-feira, pegou ele mesmo a pá e acabou de enterrar os irmãos. Mereceu até uma carta pública do pai - após terem encontrado o segundo corpo - agradecendo-o por sua perseverança, por não desistir de dar aos irmãos 'um enterro digno'. Nesses tempos carentes, até agora o deputado capitalizou aura de herói.

Dona Vilma, mãe, inviolável a estas fraquezas, consumava em si todos os pecados cometidos pelos filhos mortos: nenhuma mãe merece enterrar o que ela própria entregou à luz; e qual filho pecou tanto que receba tamanha punição: ser enterrado pela mãe? Dona Vilma, Ubiraci e Uraquitan estavam, assim, reunidos num círculo inalcançável pelas faltas dessa vida: mãe e filhos, simplesmente, redimidos de forma impiedosa por um tempo em que o nosso amor já não é para nós.


Publicada originalmente em O Liberal (16/052007

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Novos poemas: "Do real imaginado"


Arte poética

O pensamento a vertiginar-se
com verbos e galáxias;
as estrelas, polens
do fogo,
soam no casco
dos insetos;
luzferrão,
marimbondos.
Assenti ou mareei
ao sentir
como vinhas;
hoje, calo.

Poesia

Em casa de Tarcísio -
ateliê-galeria –
tudo ao mesmo tempo é real e imaginação:
o armário, as cadeiras, o cinzeiro
são mais que objetos, são objetos:
personificações.

Clima perfeito
como numa nostalgia,
transposta entre amigos e:
as coisas nos são se as somos.
E hoje reproduzimos
uma cena antiga,
imaginada mas nunca escrita,
obra apenas da memória da arte:
cena que se recorda em nós,
trans
figurantes,
supra-reais



leio uma crônica de argumentos
e Bóris comenta: “Cercou o frango!”;
Neoma desenha;
(Tarcísio foi ao bar): TELAS;
Gaya gargalha para Shakespeare;
a comida avisa

que está quase pronta.

Crônica: Caetano canibal


Se eu tivesse que escolher um só show para lembrar, ficaria com “Prenda Minha”, na Escápole, final da década de 90. A platéia se entregou de tal forma às músicas que Caetano Veloso, igualmente, foi arrebatado. Caramba, como ele quis fazer aquele show, e como quisemos participar. “Terra”, com um arranjo percussivo e cadenciado, rendeu a bem dizer um momento de êxtase em massa: a galera gritando uníssona e Caetano, agradecido: “Belém beleza!”.

Dez anos depois, Caetano Veloso volta a Belém, com o espetáculo “Cê”, a partir do CD de mesmo nome. No palco, somente ele (que às vezes se acompanha à guitarra e ao violão) e três “pariceros” na casa dos 22 anos, de pegada roqueira. Não raro, o show soa como heavy metal, mas um heavy “marcado” por grandes músicos, pesado, sim, mas sem “sujeira”, “metalizado” pela execução perfeita, som agudo e até furioso, mas não pela agressividade tresloucada que vaza do genuíno rock. Até aceito que a real intenção, ali, não é fazer metal, e sim se apropriar dele, mas prefiro o veneno de um amigo: “Caetano não pode ser Mick Jagger, Mick Jagger não pode ser Caetano”.

Alerto o leitor que a memória é a única eternidade: a capacidade de recuperar o passado, de estar de novo com ele, recriá-lo, retê-lo: só as lembranças são eternas, diria James Bond, pois tudo é fantasia, dito popular não falha: “O passado não volta”. Triste enrascada: o futuro a Deus pertence e o passado já era. Resta plantar a árvore, fazer o filho e escrever o livro. Caetano escreveu o livro: é um artista inapagável na cultura brasileira, sobretudo por aliar, em alto nível, o poeta, o melodista e o cantor; e merece um tremendo elogio artístico: sempre buscou fazer o novo, mesmo a par da indústria cultural.

Oswald de Andrade usou a palavra antropofagia para introduzir o “jeito brasileiro” na grande poesia. O brasileiro seria, então, o que devora, o que assimila, o que deglute, o que transforma, o que recria e o que expressa o resultado disso tudo: um artista. (Olhe esse ditado da terra de Caetano: “Baiano não nasce, estréia”.) A obra de Caetano Veloso é a que melhor expressa, na música brasileira, esta qualidade em devorar, fundir, amalgamar, “metalizar” as muitas culturas (até a cultura de massa, a grande engolidora da globalização).

Se o leitor tiver paciência, talvez a obra consiga o que na vida é impossível: um tiquinho de eternidade: ora, para manter-se vivo como artista, Caetano, o devorador, precisa devorar-se: precisa superar os caminhos que descobriu, e que o consagraram, e desbravar novos, uma forma de enfrentar o tempo. E, com “Cê”, Caetano não apenas antropofagizou uma sonoridade (rock), como, literalmente, devorou os músicos, sessentão a deglutir no palco o espírito adolescente, moderno, geração MP-3: Caetano canibal.

Só mesmo o conjunto da obra pode responder ao tempo, daqui a um século, mas em vida garanto: o novo canibalismo caetânico resultou muitas vezes indigesto para o público, ao menos no show: não que o baiano se sinta deslocado na decisão estética de, sexagenário, tocar rock brabo: pelo contrário. E é delicioso vê-lo, adolescente, brincar com a própria condição de dono da MPB: cantou “Sampa” ao violão. Mas faltou emoção, empatia, “verdade”. Como diria aquele meu amigo, também antropófago, desta vez nem Caetano digeriu bem Caetano.

(Vi, num Rock in Rio, Neil Young a tocar de madrugada para 50 mil pessoas, e as luzes do descampado se apagaram enquanto muitos já buscavam a saída, e Neil seguia detonando, e era um monstro de verdade elétrica lançando relâmpagos nas estrelas: mas o show que eu escolheria para lembrar é mesmo “Prenda Minha”, na Escápole, quando eu e o mundo tínhamos dez anos menos.)

Publicada originalmente em O Liberal (09/05/2007)