segunda-feira, 30 de março de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


14 - Paixão

Antes de acordar, Aiva sabia que era muito tarde, e que chovia. Não se abalou – saiu devagar do aconchego do sono, agasalhada no lençol, fazia um friozinho agradável em Belém. Antes de abrir os olhos, lembrou do jantar com mestre Lânsor e do astral de cada turista, e cobriu o rosto com o lençol. Concentrou-se no barulho da chuva, tentando não pensar em nada, mas os pensamentos lhe enredavam como teias desconexas, fragmentadas, e em poucos minutos, enquanto ouvia a chuva engrossar, Aiva recordou pelo menos quinze situações do jantar de despedida.

Então abriu os olhos, resoluta, separou-se do lençol e do travesseiro, em poucos minutos tinha prontos café-com-leite, suco e torradas quentinhas na manteiga, tão crocantes que pareciam emitir pequenos estalos. Comeu devagar e absorvida, dividindo-se entre o sabor da comida e as lembranças do jantar. Decidiu voltar pra cama.

Duas da tarde - como dormira tanto? Faltara à visita à ilha do Combu, justo o último passeio que o grupo fazia na Amazônia. E Aiva era a guia.

Sete turistas de quatro países diferentes, que decidiram, por tédio, curiosidade ou idealismo, conhecer a Amazônia e passar dez dias numa aldeia tupinambá. Christian Gate, irlandês, e a esposa Path Sampsom, inglesa e vivaz: vinte anos mais jovem, mas o senhor Gate, beirando os setenta, compensava com o espírito aventureiro. Thomas e Glenda Beringer, botânicos alemães de trinta anos, gerados um para o outro: só sabiam falar de planta. Os gêmeos franceses Thierry e Albert, donos de um bar em Roma, toparam a aventura porque Thierry se restabelecia de uma decepção amorosa. (Albert ficou doido por Aiva, a ponto de se tornar inconveniente.) O senhor Gregory MacFerring, australiano, disse apenas ser professor, e dominava qualquer assunto. Sim, e havia Drûnio, quinze anos, sobrinho de mestre Lânsor, que ficara órfão no Japão, nove meses antes. Desde então, Drûnio morava no retiro para os encontros com ayauasca oficializados pelo tio Lânsor, perto da aldeia tubinambá. Em visita à aldeia, mestre Lânsor e Drûnio ficaram 24 horas em companhia dos índios e conheceram os turistas; o mestre convidou-os para, já em Belém, dois dias depois, se reunirem num sítio em Águas Lindas. Os turistas aceitaram e foi durante esse encontro - um jantar - que Aiva se sentiu em paz como poucas vezes na vida.

A comida estava deliciosa e aconchegante, e depois, ao ar livre, o céu chegou tão perto da mata que as estrelas estalavam como cigarras. E os convivas ingressaram em estranha harmonia – os rostos nítidos e eufóricos, orgulhosos pela aventura cumprida entre os índios e ansiosos por voltar para casa, para o conforto que só nossa cama tem.

Ao sabor da última torrada, Aiva pensou que reencontraria o grupo no hotel, dali a pouco, antes de todos irem para o aeroporto – e, súbito, lhe veio à mente não o rosto de alguém que ia viajar, mas o de Drûnio Sarevo. Drûnio, o de que menos se lembrava, a quem dirigira menos palavras, o único que não olhara fundo nos olhos; Drûnio, garoto a quem tratou sempre com educação, sem espontaneidade, relaxamento, sem um contato mais amistoso de carinho ou emoção. Aiva tinha 23 anos, falava cinco idiomas, morara em vários países. Montou uma agência de turismo com uma amiga paraense que conhecera em São Paulo e, quando recebiam grupos especiais de visitantes, atuava como guia. Nunca acontecera, na vida, evitar o olhar de alguém, muito menos fugir, muito menos de adolescente; de início, pensara que, se o fizera, fora para não constranger Drûnio, sempre arredio e quase assustado; mas via, então, que o receio era com ela. Aiva sorriu corada, invadida por um susto de quinze anos, e limpou a guardanapos os dedos de manteiga crocante. Pela primeira vez, apaixonada.

quarta-feira, 25 de março de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


13 - Matinê

Ambos têm treze anos.

Danilo via Marisa de longe, no colégio, discreta; logo passou a desejar que não fosse comprometida. Hoje, pela primeira vez, engatam um papo descontraído. E eis que aparece um adolescente de óculos fundo-de-garrafa, e já chega beijando a gata.

Danilo despenca do céu, e só aí percebe como Marisa o consumiu nos últimos dias.

Imaginava-a na manhã, no passado, na montanha (onde a escondia), e até no futuro, com três filhos. Como todo apaixonado, Danilo não tinha a menor proteção, e agora aprende da pior forma.

Volta a pé para casa, em fogo. Controlando a vontade de chutar os postes. Anoitece, e ele sente os olhos brilharem de susto.

Tenta ver televisão, um documentário sobre a água; a própria vida, o melhor remédio; pura e boa para tudo, até para Marisa com outro.

Meia-hora depois, Danilo começa a beber água. Tão indefeso, cercado, surpreendido, acuado, sem saída, sem idéia - bebe litros e litros, como se a água, milagrosa, de alguma forma chegasse à dor que ele não sabe onde nem como.

Logo urina sem parar; o xixi vai clareando; as lágrimas finalmente chegam.

Estafado, Danilo prega os olhos, e sonha mexendo-se. Doze horas depois, acorda com vagar - e percebe que urinou na cama toda. Mas se sente bem.

No chuveiro, está mesmo outro, como se tivesse controlado uma gripe.


Pensa em ir ao cinema; desiste, cauteloso: o amor causa febre, e das mais brabas.

segunda-feira, 16 de março de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"

- - - - - - - - - - - - - - - - - "Auto-retrato triplo", de Norman Rockwell

12 - Qual é a sua tribo?

A crise do Eu é por certo contínua, “Eu, o que será?”, mas faz pouco tempo que ganhou a inteira dedicação de um gênio: Fernando Pessoa. Vejamos-lhe: “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?”, “Eu não sou eu/Nem sou outro/Sou qualquer coisa de intermédio...”. Tais questões, em que Pessoa certamente não acreditava, nunca foram tão pertinentes: o que sou eu, no advento da internet? O que sou, sei lá, depois de comparado a milhões de pessoas do mundo, pela tv, computador? Resulto igual? Diferente? Maior, menor? Sou o quê? Será mesmo que a mundialização da informação uniformiza tudo? Serei o Outro?


“O que sou eu?” é a pergunta mais constrangedora da praça. Não que sejamos menos “felizes” ou risonhos do que cem anos atrás, mas hoje nossa felicidade-e-riso é muito mais exposta: comparada, confrontada, assemelhada, reconhecida, popularizada, mostrada, quinze minutos atualizados de fama, no site, fama-compartilhada.

Escrevo ao computador, estou em qualquer lugar, tal qual a bióloga talvez da Austrália. Será? De qualquer forma, depois da tv, do satélite, da Lua, do genoma humano, de Freud, de Shakespeare, das verdades involuntárias, das mentiras, da internet, das seitas, da “pobreza de mercado”, de aceitarmos a mentira do início ao fim do dia (de praticarmos a mentira), depois do acordo de pizzaiolos com a realidade (metade do que vivemos em setenta anos é inverdadeira), depois, enfim, de a credibilidade do nosso Eu ter ido para o brejo, Fernando Pessoa soa verídico, verossímil, legitimado nas atuações literárias quando escreveu sob a personalidade de heterônimos. Mas a realidade não tá nem aí.

Há quanto você se perguntou: O que sou eu?

Há quanto tempo sua filha adolescente, duas horas por dia na internet, se indagou no almoço “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou”?

No entanto, minha filha de 16 anos é 2,77 vezes mais esperta do que eu na idade. Tem os mesmos dramas amorosos, as mesmas ansiedades, e tantas eternas coisas sem saída. Irresponsabilidade, inconseqüência, e angústia, e batalhas interiores de ter que “fazer”, quando o que presta é “viver”, tudo dividido com milhões de amigos, antenizada: óbvio que cada um continuará a ser seu cada qual, a informação é apenas uma ambiência em que somos únicos nos temas perpétuos, amor, sexo, Eu, Outro. E Fernando Pessoa matou a pau: o Eu pode ser simplesmente fantasia.

De fato, nunca foi tanto fantasia, agora que mais pessoas nos vêem, enquadram, revelam-nos - seríamos, apenas, reses replicantes no rebanho consumoso? Somos nosso site, anúncio de nós idealizados? Não, certamente, que a emoção, verdadeira, nos suplanta, então o quê, como definir o que somos, e assim nossa geração e nosso tempo? A resposta ou está antes ou depois da pergunta, não durante, porque quatrilhões me vêem, mas, eu, nunca verei meu rosto.

Esta questão genial não desaparecerá, tão infinita quanto o Universo.

(Um dia vão me clonar e olharei para meu igual e por seis dias me conformarei que jamais serei eu, porque não me verei.)

A crise do Eu é até onde vamos, até onde ousamos - o Eu não tem fundo -, envolvida por tal imbróglio: não ver o próprio rosto faz do Outro intransponível objeto de adoração e competição, de inveja, de projeção, de achar, por exemplo, que o outro é “mágico” porque mora na montanha, quando o é porque nos vê de fora. O rosto é a única questão que restará.

Os de mais de 30 anos adquirimos incrível senso crítico quanto ao presente; não assim quando tínhamos 17. O ser humano já sobreviveu ao gelo, já manteve a cadeia evolutiva por poucos indivíduos, quase extintos na poeira da neve, sobreviveu a todos os Calígulas e aos presidentes de república, como não resistiria aos games intergalácticos, ao Orkut e à volta do Clodovil?

terça-feira, 10 de março de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


11 - A fonte


Compartilho hoje com o leitor um raro momento.

Após morar cinco anos no Rio de Janeiro, eu e Daniela retornávamos para Belém, de carro, em companhia de um casal de amigos (Ângela, carioca, e Don, norte-americano). Em Minas, visitamos o passado e, em Brasília, a hospitalidade do meu irmão Edinaldo e as curvas brasileiras da arquitetura. Adiante, na chapada de Alto Paraíso, milhões de anos jorravam sobre a pedra: cachoeiras. E num deserto - o Jalapão - mergulhamos na própria origem da vida.

No Jalapão (divisa do Tocantins com o Piauí), só tem gente na entrada do cerrado (cidade de boa movimentação) e seis horas depois, no final (pequena vila que vive em função dos turistas). A vegetação, rasteira e monótona, se embeleza com o sabor da aventura. Súbita, topamos a Cachoeira do Lajeado; a rocha que serve de leito ao rio, gasta pela água, lembra tijolos de barro cozido - ao mesmo tempo rosa, coral e vermelha; andando nesse leito furta-cor, deparamos com um precipício, e doze metros abaixo nos atraía o colorido da vegetação e a mesma pedra (agora uma enorme concha coral) a envolver tudo em ecos, luzes, locas. Garanto, leitor: pelo difícil acesso, pelo isolamento, pelo lirismo selvagem e calmo batido pela água, aquela câmara lembrava uma onça: evocava a conquistadora que lá embaixo passeia livre, destemida, majestosa: até hoje (passado o estado de poesia produzido pela viagem) essa Cachoeira do Lajeado é para mim uma onça, sua morada, sua sensação.

Aproximamo-nos da vila-terminal, guarnecida por um belo rio; nas águas, lavadeiras, móveis, crianças em algazarra. Um pequeno de dez anos, negro e esperto, levantou a cabeça para o Jipe, montado num cavalo que bebia na corrente; eu, também menino livre de interior, disse-lhe então: “Nunca reclama nem da tua liberdade, nem do teu rio, nem do teu cavalo!”; e o menino, erguendo o polegar: “Falou!”.

Na pequena vila, uma das refeições mais prazerosas de nossas vidas. E Ângela e Daniela conseguiram consumir: bolsas, chapéus, cestas do famoso artesanato-chic do Jalapão, em capim dourado. No dia seguinte, a fonte.

A nascente fora cercada com pés de bananeira e primeiro apreciamos, a alguns metros, o intenso borbulhar (mistura densa de água impelindo areia). Em volta, a água mais límpida e a vegetação mais vívida de que lembraremos. Entramos no olho da nascente, que, de tão forte, nos empurrava de volta – ficávamos em pé, imóveis sobre a água, sem afundar. Mais do que a sensação do vôo, do domínio da gravidade, naquele momento nos reconciliávamos com a origem, com as plantas, os lagartos: a fonte a nos jorrar para o alto, de novo para nova vida, na melhor metáfora do retorno para Belém, cidade-rio onde para sempre nascemos.

segunda-feira, 2 de março de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


10 - Repente do eleitor

Caro eleitor de outubro,
a pressa não leva a nada;
Bin Laden ficaria rubro
se visse atrás da fachada
dos Poderes nacionais;
diz-se que as leis e as salsichas
são, em sujeira, iguais
e por trás das velhas rixas
somos buchas de canhão
a cada nova eleição.
Eles ficam com o poder,
nós, com a burocracia e o dever;
eles ficam com as passagens,
nós, com o verde imenso das pastagens.
Seremos assim tão burros?
(Outro dia, surpreendi-me aos zurros.)
Preciso de um projeto
que me preserve o teto.

Caro eleitor de repente,
não vá jogar na privada;
ao votar como um demente,
somas à besta quadrada
transfigurações de um crente:
chega de endeusar o voto,
política não é para devoto,
quatro, noves fora, nada.

Eleitor de ocasião,
sou mesmo um bobão:
a listagem das urnas
já vem com nossas urnas:
a esperança auto-enterrada,
a cidade encomendada,
já tudo bem decidido,
o naco distribuído
ao parlamento instruído,
quatro, noves fora, nada.

Votar em quem, eleitor,
tens razão, faço a pergunta:
o que seria pior
do cabelo à oitava junta:
sair de casa cedinho,
depositar-se na urna,
ou dormir o dia todinho
noutra ressaca noturna?
Se de amplas plataformas
cimentaram duas reformas,
quatro, noves fora, nunca.
(Do jogo da vida
não há saída.)

Mas não jogue na privada -
cuidado - a própria urna:
depois de lacrada,
ela pode ser muito mais soturna.