Foi isso mesmo: na noite da tarde em que a Déa me deixou, fui comprar droga no Jurunas, estacionei na encruzilhada e invadi cego o Beco do Relógio: e desabou um toró fulminante, e fiquei preso na boca. Eu amargado de paixão, debatendo política com o traficante e fissurado pra fumar a parada. Fumei um com ele. Quando voltei à rua, o carro que eu emprestara dum amigo se alagara até as canelas; decidi esperar sob o telhado duma igrejinha. Pensando em Déa, acelerado, perto do pânico, o crânio vai trincar por ela, o peito vai amanhecer com dor nas costelas, uma escuridão desabava em mim com blocos de concreto, com plataformas de catedrais, num planeta de areia que se revezava em si mesmo como uma ampulheta, um planeta exclusivo de tempo fechado onde Déa me deixava e não levava nem um disco, nem um livro, me deixava completamente, o planeta desabando em si mesmo, sempre de ponta-cabeça, preso no adeus.
Pelo resto daquela noite, fumei bagos do veneno, obreiros bichinhos do mal, colônias de desejo estragado; nunca mais ias desabar sobre mim como uma cachoeira, me limpar com teu corpo; eu deveria chorar logo, chorar de empapar o nariz, como um bêbado.
E chorei. É o que ela me convenceria a fazer. Deve estar nas Tábuas da Vó Índia: “Seja semente, Déa”.
Chora, rapaz, faz uma faxina no coração, baldes de saponáceo pra quando mentiste pra ela, rodo pra quando ficaste com a cantora, creolina pra quando cheiraste pó, DDT pra tua consciência em geral. Chora pra caralho, rapaz.
Meio-dia, nada de sono, escreve outro hai cai, mostra, rapaz, que estás tão iluminado quanto a medula imaginária do Universo.
Os dias seguintes à tragédia se enterraram no script, lentos, cabisbaixos, alheados.
Prostração.
Manda um ritmo aleivatório, rapaz, mostra que estás tão deslumbradamente fodido como Nietzsche.
Quantos dias uma pessoa consegue sobreviver morta? (Apaga isso, rapaz, tenta um ano sabático.) Eu tava ficando doido, Déa, Déa.
Nos países por aí, pode-se convencionar o auge do movimento hippie (sexo livre, natureza, desapego material) em 1969-1970: Woodstock.
No Brasil, 1974 é um bom ano: Secos & Molhados com Ney Matogrosso cantando quase nu, gay, o corpo pintado, e alta qualidade artística afrontando o general mais escroto da ditadura, o Médici.
Em Belém, frontão da Amazônia, esse destemperamento sexual coletivizado atingiu um pico em 1979: festival Feira Pixinguinha, que apresentou fenômenos da composição paraense.
Aqui é que é: em Belém, esse pico sexual se estendeu por vários anos, como uma planície de delícias acima das Agulhas Negras. Vamos então convencionar que era 1985. Não: é 1985. Outubro.
Nesse fim de tarde, centenas de jovens, professores, artistas, putas, intelectuais, convergem para o Bar do Parque. No meio dessa Belém, olho o jovem que eu fui, faz trinta anos, num ônibus indo da perifa para o Centro, rosto confiante, sorrisos involuntários, primeiros meses na Universidade, poeta que já faz músicas com ídolos da cidade, eu sonho tão forte que não sei se é sonho ou a realidade se tornou mágica: vale a pena sonhar em Belém. Para este garoto, a cidade é real, tem asas, a cidade sou eu, trago Icoaraci pela Augusto Montenegro, trago as transversais com seus clubes periféricos, onde a lambada e o brega começam a virar exibição de dança, trago a feira da Terra Firme, onde ainda não se fala só em violência, trago o Guamá e os becos de contrabando, a proximidade com os portos, trago o Benzinho, onde as putas dançam boleros palmilhando todo o salão, trago o Lapinha, uma das maiores e posudas boates das Américas, com admirável “plantel” de travestis, trago a Marambaia e os igarapés com futebol, Belém-pulsão, é isso, é sexo o que me faz rir no ônibus, não há uma só virgem entre as novas colegas da Universidade, ao contrário do segundo grau na escola pública.
Antes de descer do ônibus, já na Assis de Vasconcelos, o rapaz que eu era confere, mais com a memória que com a visão, o conjunto formado, no mesmo espaço, por Praça da República, Teatro Waldemar Henrique, Bar do Parque e Teatro da Paz. Respiras diferente, garoto, ao pisar o asfalto, doido por vida, doido pelo tempo, meu peito se incompassa ao me ver atravessar a praça, acalentado pela noite e sem maiores solidões, passo em frente ao Waldemar Henrique, ali nos apresentaremos na próxima semana, música, poesia, daqui o Bar do Parque é como o mar de Borges: antes de ver, o viajante sente uma agitação no sangue.
O Bar do Parque é mesmo apropriado. No final do Século Dezenove, a invenção do automóvel demandou pneu. A matéria-prima tava na Amazônia. A era da borracha tinha tanto dinheiro que gerou um fausto parisiense em Belém com um teatro à altura: o Da Paz. Trouxeram para dirigi-lo nada menos que Carlos Gomes, maior compositor brasileiro do Século Dezenove. A bilheteria original do teatro, em 1878, é o quiosque do atual Bar do Parque.
Amanhã, o Círio à Virgem de Nazaré, mais de um milhão de devotos nas ruas de Belém; hoje, aqui, a Festa da Chiquita, encontro profano de todo mundo, carimbó de raiz e as bichas mais loucas da história animal.
O jovem que eu sou averigúa o quiosque e cumprimenta de longe dois colegas, e aproveito para olhar daqui, de trinta anos depois, esse Teatro da Paz.
Parece que a cena primeiro foi pintada, pinceladas densas, com nódulos e relevos, depois é que se animou: ao fundo, o Teatro, fechado, as colunas portentosas de Olimpo, o mármore das escadas tomado de jovens; à esquerda, balizando a tela, a amendoeira e parte do largo tomado de gente; ao centro, o Bar no quiosque, tendo ao fundo palmeiras imperiais; à direita, o túnel de mangueiras, sem fim, também balizando a tela. Quase todo o resto do espaço é ocupado por rostos, cabelos, sorrisos, cervejas, garçons, mochilas, travesti, os olhos, milhares, brilham como sonhos, profusão. Assim, congelado, tudo está submetido ao Teatro da Paz, tudo faz parte do teatro, integrado, parece moldado no teatro, modelado com a mesma massa, a mesma tinta densa, harmonizado à estrutura arquitetônica da construção, os hippies, clowns, juventude.
Quando este quadro se movimenta, no entanto, o que sacode o dial é a Belém de infinitos ritmos, influências populares, raças, classes, épocas, uma Belém que está viva, que respira mudança, que se lava de rebeldia nos estertores da ditadura militar, que tem 370 anos de História reunidos não em torno do Da Paz, mas do Bar do Parque, do qual o teatro agora é coadjuvante: eis a periferia, nem que seja na marra; os artistas, em peso; todos os gays da cidade; a classe média "descolada" (??); os loucos; a lambada e o brega, assim de viés; o samba; os músicos sinfônicos; o molejo dos sons caribenhos; trezentas bandas de rock; as putas junto com as universitárias; os turistas do Círio e os paraenses que moram fora e vêm pra comer maniçoba - Belém está aqui, pela primeira vez o garoto que eu era topa com uma capital tão vasta, colorida e cheia de possibilidades sexuais.
O garoto que eu era: olho-o tão de perto que ele é capaz de se ver trinta anos depois: ele pegaria em armas pelo povo, como dezenas de jovens aqui. Ele dedicaria meu tempo a causas humanitárias, a guerrilhas à maneira de Guevara. Sou Maiacóvski, François Villon. Tenho entusiasmo e coragem. Chamo os amigos de "gato" e "camarada", chamo as moças de "menina". Reconheço uma galera na escadaria do Teatro, alguém ao violão, é um parceiro recente, fizemos duas toadas. Me aproximo, cumprimento todos com a cabeça e o sorriso, e algo extraordinário acontece.
Há de haver algum indicador, no sangue, nas árvores, nos calangos, que nos antecipe o instante em que deparamos uma paixão de cigana.
Ela: Déa. Morena e índia, esguia como uma águia, quieta e aguda, calada e confiante, interiorana e ponta de lança, Déa, sem dúvida estava em alguma nuvem, eu não soubera ler. O rapaz que eu fui está fascinado, sente que teve a vida transformada, mas não entende por que; deixa eu te olhar, Déa, daqui, de trinta anos depois, olhar a paixão cara a cara se formando - o que me vês?, o que te vejo? Este garoto se sente não devassado, ou espionado, ou compreendido, mas apreendido por ti: tu és eu misteriosamente, como se tivéssemos tomado ayahuasca, te transformas em mim, me capturas, assumes meu instante, me mimetizas de dentro pra fora. Um dom? Ou nós somos almas gêmeas? Um dom, se todos olham pra ela, tão gentis, e ela nem parece tão bonita. E o que ela pensa? Que o jovem que eu sou é inteligente? É bom? Que é de esquerda? (Mas aqui todo mundo é de esquerda.) Que é confiante? Confiável? Revolucionário? Chegamos a Déa: este jovem é revolucionário? - não esteticamente - ele mataria e morreria por causa do povo?
Pois o que diferencia esta Festa da Chiquita das que virão por décadas é isto: somos os últimos revolucionários num sentido cristalino da existência: somos ao última geração a defender que conquistaríamos na bala a governança popular de um continente.
A ditadura acabava. A guerrilha do Araguaia eternizou em sangue o sonho de heróis mal explicados. Nós mesmos seremos um enorme sonho mal explicado.
Mas a centelha anticovardia, a brasa da coragem, a labareda duma morte por justiça nos ilumina a todos e talvez Déa olhe para mim e pense que sou revolucionário, sim, ao menos por mais uns meses. Meu amigo do violão, Gilberto Ichihara, faz uma pausa e nos apresenta. Déa. Tadeu. Te dou um selo na boca, hábito de muitos jovens; não gostas, e ris amarelo; "Já conheço o Tadeu", dizes firme, me fitando; "Já li um poema teu".
Para mim, um dos maiores temas humanos é o instante em que uma mulher tímida decide se relacionar com alguém. O instante que funde personalidade, sangue, sonho, sexo. Deixa eu olhar pra este rapaz junto contigo, Déa: ele todo é poesia e paixão. Ele é da terra, mas só ama transvirado no ar. Ele é da raiz, mas a música é a dona de suas mãos. Ele será deslumbrado como um fio de mel varando tua persiana. Mas quem é bêbado pela poesia estará sempre só.
E vamos, sim, olhar para ti, Déa dos meus pulmões, nascemos entranhados um do outro, e sabemo-lo sem saber, na sensitividade, na intuição, como duas infâncias se encontrando no futuro. O que sei sem saber: que o teu olhar interiorano é igual ao meu quando fita árvores antes de amanhecer. Que vieste de muito longe e nunca vais morrer. Que há três coisas intoleráveis na existência, a injustiça, a mentira e a deslealdade. Estou fascinado pelo que tens de único (e se converteu num olhar, e gerou os gestos de um temperamento), mas só entendo isso agora, trinta anos depois: farias sempre a revolução. Farias sempre a tua revolução porque és a tua revolução. E aqui preciso dizer: a revolução de nós outros, as centenas na praça, já acontecia: fizemos arte. Sonhamos. Amamos com fúria. Fincamos a bandeira vermelha no centro da folha em branco. As ruas de Belém foram nossas companheiras, no Guamá, no Benguí. Essa foi a revolução que compartilhamos com elas, essa foi a revolução que fomos: viver sem medo; e a intensidade não passa como um sonho.
Uma das razões é a música.
Na escadaria do Da Paz, Gilberto Ichihara manda sua "Da Costela", clássico entre os músicos e cantores.
E me permito editar o tempo, nessa noite para a memória:
A voz impressionante de Mário Morais, potente, afinada e emocionada, em versos mágicos como "piriquitambóia, jararaca, já te encantarás em noite de lua e te amofinarás". Mário também canta “Verdoenga”, de Walter Freytas, memoráveis versos e estranha melodia. “Bela candeia que sou/bruxuleou leei mato macumbei/nove Marias de véu /me vieram benzer/por causa do céu”.
“Verdoenga" era uma das duas músicas de Walter no disco daquela Feira Pixinguinha, lançado em 80. E, cinco anos depois, aqui na Chiquita, Walter festeja a gravação de seu “Tuyabaé Cuaá”, um dos grandes discos do século vinte.
Nessa noite rara, de combinação, chega Antônio Carlos Maranhão, o melhor letrista daquele festival, contra a ditadura: "Dança essa valsa/mesmo sem par, dança em festa de civil, ó, dança, com orquestra militar”.
O jovem Edir Gaya apresenta a que considerava sua primeira música, "Às crianças latinas" (se espalharia pelo Brasil, no repertório do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra): "Quando cai a noite sobre os Andes, vem a luz de mil estrelas velar pelo sorriso adormecido das crianças”.
Chega o indefinível Albery Albuquerque, também no disco de 80, futuro inventor de novas formas musicais a partir dos sons de animais e também fundindo música e física geométrica.
Chega Pedrinho Cavallero, Almirzinho, Tony Soares, Ronaldo Silva, passam Paulo André e Ruy Barata, vem o cantor da noite Luiz Guilherme (em breve ele vai estourar um brega que será cantado há décadas no Pará todo, "shalalá, shalalá-lalá-lalalá").
E tantos outros passam, e ainda que não cantem soam na roda de violão, Salomão Habib, Manoel Cordeiro, o ainda adolescente Henry Burnett, e artistas plásticos como Emmanuel Nassar, cada vez mais destacado no Brasil.
Eu estava tão feliz que era como se a arte, em si, principalmente a música, resolvesse todos os problemas do país, só porque era apaixonante como aquele outro dom, o futebol. Em certo momento, saíste da frente dos meus flertes e apareceste por trás de mim, e me enlaçaste sem nada falar, e apareceu o Nilson Chaves, e deslumbrou todo mundo com "Pássaro de fogo", depois Vital Lima mandou sua “Amor de Lua”, sucesso nacional com Emílio Santiago. E me cheiraste as costas, através da blusa, como a confirmar pelo cheiro se eu merecia teu espírito fabuloso. Começa a programação oficial no palanque. O apresentador é Eloi Iglesias, pansexual à altura dessa noite, rouco de tanta madrugada e estourado em Belém com o brega-doidão "Pecados de Adão". Eloi apresenta o primeiro candidato ao concurso "Viado de Ouro", um cara louro, malhado, dois metros de altura, montado numa plataforma de vinte centímetros, sambando – sambando, não, esquartejando tudo, braços, pernas, cabeça, peruca, tudo pra lados diferentes, e o Iglesias, pasmo com a apresentação: "Entenderam o que é um viado?".
Então eu e Déa damos os primeiros beijos de verdade, discretos, contidos, mas profundos, íntimos. A coisa mais legal é encontrar os amigos da Universidade, o que eu mais queria era ficar só contigo, e conversar, e assim fomos parar na Praça da República, a galera se sarrando apoiada nas mangueiras, deixas eu pegar nos teus peitos, enfiar a mão por baixo do sutiã, nada entre minha mão e teu peito, nada, me esfrego em ti, te esfregas em mim, mas não permites que eu toque em tua vagina, nem mesmo por cima da saia. Eu já tava todo galado, desmemoriado, quando pediste para demarcar a posse da proletária: "Posso deixar uma marca no teu pescoço?", e eu simplesmente ofereci o lado da jugular como a um vampiro, e chupaste pressionando com as mãos até a veia tufar dentro da boca, queimando minha pele.
A outra coisa indelével dessa noite, a estrela, para sempre: a MPB. Criança, eu morava na floresta amazônica e uns hippies (fugindo da ditadura nos grandes centros) venderam ao meu pai uma vitrola com discos de MPB, coletâneas. Caetano. Raul Seixas. Roberto Carlos. E também, desde pequeno, a poesia me uniu com a música brasileira, Chico, Aldir, Paulo César Pinheiro. Desde criança, mas nunca quanto nessa noite na Chiquita. Todos os que pegaram o violão cantaram alguma música que o Brasil canta até hoje. Ver aqueles personagens históricos, dividir com eles os primeiros versos, o impacto da relação com a Déa, naquele dia a MPB se tornava não apenas eterna em mim, mas nos fundíamos, e dezenas de canções construiriam no meu cérebro castelinhos de neurônios: bloquinhos chamados MPB, bloquinhos curinga, bloquinhos melé, se relacionando com os demais blocos de neurônios da existência, toda a vida influenciada, determinada, consolada, exaltada, permeada pela música, quantas vezes os bloquinhos de MPB, reunidos pela intuição, tomaram por mim decisões inconscientes: aquela Chiquita foi como um símbolo, Woodstock, Secos & Molhados, Feira Pixinguinha: a noite em que a MPB eternizaria em mim, sem ressentimentos, todas as lágrimas que eu verteria por desejo, todas as esperanças que eu derramaria com imaginação. A realidade agora era determinada pela arte. E assim a noite que te trouxe te levaria.
Pouco antes da nossa primeira transa, cinco dias depois, eu me perguntava como se fazia sexo com uma mulher tão inalcançável.
Mas te encarregaste de (quase) tudo.
Lambeste por dez minutos meu pescoço queimado por tua chupada na Chiquita; pediste para eu chupar por um tempão teus sovacos, as dobras dos teus joelhos, tuas omoplatas; chupei tua xana com tanta delicadeza que senti se separarem, na minha boca, as etapas invisíveis da fabricação do mel; quando finalmente me chupaste, meu pau já transfundido com tua xota, pensei que chuparias pouco, afinal eu era merecedor, mas ficaste um tempão, chupavas como em frente de uma câmera que eras tu mesma, vinte minutos me chupando tal a uma pedra doce, delicadamente, devaneada, e em nenhum instante me fitaste.
Alguns meses depois, o rapaz que eu era te encontra à porta do ginásio da Universidade. Será exibido, clandestinamente, "Je vous salue, Marie", do Godard, proibido no país pelo presidente Sarney porque Nossa Senhora engravidava, e aí naturalmente paria. Os organizadores temiam uma invasão policial, com quebra-quebra, gente machucada.
Me beijaste de raspão, agitada, entramos, sentamos perto dum corredor entre cadeiras, de vez em quando levantavas, conversavas com alguém da organização, parecia mesmo que desejavas o enfrentamento com o pelotão de elite. Tento duas vezes falar do filme, Godard, Nouvelle Vague, nem me ouves. "Estás perdendo tempo", me vingo. "Não vai acontecer nada hoje." Me fitaste, o que significa mesmo o que eu disse, e pausaste: "A ditadura: o comportamento; os hábitos; as instituições: não terminam quando tiver eleição. Pode esperar. De qualquer maneira, desse jeito aí, são os últimos dias que a polícia tem pra bater. Vão aproveitar, não seja ingênuo".
Vimos o filme, do qual só entendi metade, sem incidentes, mas sem entusiasmo: Godard não derrubaria Deus diante das massas, até porque sua Nossa Senhora trabalhava num posto de gasolina.
Mas derrubou a ti.
"Olha, eu não tô muito legal, não vou ficar pro forró", avisas, de forma inapelável. "Amanhã. Depois das sete, lá em casa", e sais sem esperar anuência.
Fiquei incomodado, mas o forró me animou.
Passei o dia seguinte com uma vaga apreensão.
Ao te encontrar, à noite, me beijaste e lambeste, massageaste meu pau por cima da bermuda e levaste minha mão para tua vagina molhada, sem calcinha debaixo do vestido preto, folgado. Massageaste e chupaste por vários minutos só a cabeça do pau, aí me beijaste a boca, esfregando saliva, ou seja, esfregando meu pau na minha cara. "Hoje vou realizar teu maior desejo. Não, não: meu cuzinho de novo eu não dou tão cedo." "E o que é?", "Chupa meu cu, que eu te digo", “O quê?", "Sério, chupa meu cu que eu te digo". Esfregaste a cabeça do meu pau na tua vagina, num rompante apertaste muito o pau inteiro, com as duas mãos, "Chupa meu cu", disseste", "e faço o que tu quiseres", e te deitaste de papo pro ar no sofá, arreganhada, e não apenas lambi como chupei teu cu, vigorosamente, enquanto dizias frases inspiradoras como "Sente cada prega com todas as regiões da língua, doce, amargo, salgadinho", ou então com texto de filme pornô, "Lambe meu cu, lambe meu cu, isso, enfia a língua, lambe meu cu". Olho para Déa agora em cima de mim, o rapaz de poesia e paixão, voyerizo-nos, e compreendo que ela não só fala, realiza as palavras mais indecorosas, que evitava até pronunciar: e entendo que foi ali que se libertaram as palavras também em mim, foi ela, foram as mulheres que acabaram as diferenças entre poesia e pornografia.
Na tarde do dia seguinte, sobre a mesa na sala da casa dela, um bilhete pra mim. "Fiz sua matrícula no Benedito Nunes e no Nietzsche. Marquei tuas passagens pro festival em Minas. Tão aqui na mesa. Tadeu, eu não vou. Não vou pra Minas, não vou pra Cuba. Tô indo pra Santarém. Não me procure. Se você não entender isso agora, se já não tiver esse entendimento em si, não tente entender depois. Também não tente entender o tanto que chorei antes e o tanto que vou chorar depois de hoje. Tenho minha própria maneira de nos eternizar. Adeus, Tadeu."
E acrescentou embaixo:
"Meu amor."
Passei horas de um lado pra outro, à tua busca. Voltei à Universidade. Peguei emprestado o carro. Acabei no Jurunas, ilhado na boca de fumo.
Trinta anos depois, um bar projeta astros da música de trinta anos antes. O “Bar do Mário” (Morais), o mesmo de “piriquitambóia” no mármore do Da Paz. Bar de habituês, músicos, escritores, atores. E me reconheceste, Dine, amiga da filha do meu amigo, sim, nos encontramos no aniversário dele.
Estava nas mangueiras, nas formigas, nas lâminas de néon, mas não li que a paixão ia mostrar de novo quem é que manda na vida.
Dine, metade da minha idade, e isso era o de menos, qualquer pessoa, qualquer uma, na minha situação ligaria o farol vermelho e vazaria, mas eu te convenci a almoçar placidamente do outro lado do rio, na ilha do Combu.
Tudo em ti gerava miríades de desastres, a carne firme, firme mesmo, intumescida até na sola do calcanhar, tudo faiscava como besouros no jambo, tudo em ti era elétrico e parecia acontecer segundos antes de acontecer, teu sorriso era como se saísses de um rio, teus olhos eram um filme de Charles Chaplin, tudo em ti cantava, tudo em ti dançava, tudo sofria vibrações no teu entorno, porque nunca a carne foi tão espontânea em meio aos girassóis, nunca a boca de uma mulher se abriu tão parecida com uma dália, nunca uma sereia foi tão livre e soou com tal voz de cristal moreno - claro e levemente rouco -, cristal firme e suave como granito submetido à lua. Nunca em minha vida eu fui tão reichniano quanto na tua frente no Combu. Sem drogas. Não usavas droga. Um pouco de vinho, raramente. Não, não hoje. Tinhas desenhado minha figura na parede da caverna.
Naquela tarde até eu lia o que aconteceria com meu corpo, minha alma, meu instante e minha eternidade, não havia um só objeto que não tentasse evitar o pior. Exceto eu mesmo, que decidi também não beber, para ser uma companhia mais agradável.
A tarde encontrou a noite na luz difusa do meu apartamento. Fumei um pouquinho de maconha e falei uma verdade tão cristalina quanto a tua própria voz, Dine.
- Eu morreria por ti. Matar, não, não quero conviver com isso. Mas eu me mataria por ti.
Me olhaste fixamente, não sabias por onde começar a entender.
Teu rosto se fechou como numa profecia.
- Se eu te dissesse que posso ter uma doença incurável? Transmissível sexualmente. Você transaria comigo?
- Até morrer - não titubeei.
Me olhaste tão profundamente que eu poderia ficar cego; e falei, denso:
- Você não faz ideia do tanto que sou capaz de viver o agora.
Riste, espojada, e transamos como se fossem os 400m medley, e depois disseste que não estavas doente, mas que cada “cruza” nossa poderia ser a última.
Cruza.
É igualzinho à música do Chico, "que noites de alucinação passo dentro daquela mulher".
Após alguns meses, nós aprendendo "que o amor vai longe assim", me pediste em namoro. E, dois dias depois, terminaste tudo. Ias partir com uma turma de teatro e agroecologia. E namorar duas recém-amigas, primas entre si.
Cada bilhar de São Brás diz "Eu avisei", cada violão da Pedreira samba "Eu avisei", cada quintal da cidade lamenta, "Nunca ninguém ouve".
E vou pros ritos, experiente, com a missão cumprida: cabisbaixo, soturno, iluminado, prostrado.
Edito as memórias quando ando pra te esquecer, Dine: misturo as semanas, como a cidade mistura as épocas nas ruas: na Almirante, te lembro indo pro rock, meses atrás; dobro na Humaitá e te materializo de sambista, uma semana antes; aí pego a Rômulo Maiorana e topo contigo de saia branca, no início do namoro, treslumbrante com a camisa da Tuna que eu presenteara.
E uso para te esquecer a mesma mania que usava para te lembrar: ando pelas ruas repassando versos clássicos da MPB, um depois do outro, Capinam, Joãozinho Gomes, Noel, Adoniran, se você fosse sincera, você era a mais bonita das cabrochas dessa ala, pisavas nos astros distraída, eu sei que vou te amar, tum-ta-tá, são rãs e sapos, há entre o tempo e o destino, tuas lamas, algas, almas que amalgamas, tudo veloz, distrair o cérebro, o amor da gente é como um grão, todo o bem que nós tinha era a chuva, era o amor, eu vou rasgar meu coração pra costurar o teu.
Poesia.
E também Dine passou.
Eis a pura verdade, mas essa história ainda não é real: por que a contei pra você?
Como Manoel Bandeira, tomei, hoje, outubro de 2017, um café que eu mesmo preparei e fiquei pensando, humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei. E as mulheres que amei me levaram a ouvir música, internet. Elis, sentada no chão, encarnando “Atrás da porta", em lágrimas, a mulher abandonada e revoltada, "me vingar a qualquer preço/te adorando pelo avesso". E, associação dos castelinhos MPB do cérebro, Baby Consuelo cantando “A menina dança”, num sítio hippie, espevitada, elétrica, espontânea, livre, sem culpa, ela parece estar nua, é isso mesmo, Baby está nua como uma índia, como uma rã. Estava claro que Elis era a Déa e Baby Consuelo, a Dine. É como se todas as mulheres do Brasil se encontrassem em mim.
Eis aí. Uma frase que passa sebo na imaginação, quase uma blague. Tudo foi, então, brincadeira, lúdica elucubração de ouvido?
Não, eis o conto: o porquê contei a história para mim.
Tem uma hora que você diz pra sua vida, pra sua imaginação, faça uma luz, esquente uma água, invente um uísque, você consola a imaginação, você apela, você gruda na imaginação com medo de perdê-la, e você se aconchega à imaginação como com o cão entre as cobertas. Você justifica a imaginação como um filósofo, você a transpõe como um poeta. Você é o mestre de obras da imaginação. E esse meu humor, um fugitivo. Tem uma hora em que toda vida olha para a própria obra (uma empresa, uma fazenda, uma cooperativa) e se interroga: cumpriste a pena? Olho minhas palavras, pequenos concertos da sensação, e digo com esperança “a pena de vocês não era plantar para a fome do tempo, confiem, as canções existem, lembrança que a madrugada aspira na brisa, o sonho da verdade, o sonho da beleza, poema: vocês existem”. Talvez Déa achasse que nunca revolucionário, se eu nem mesmo era real.
Naquela noite, na Chiquita, a arte roubou o fogo do meu espírito para acende um caminho. E até hoje venho recolhendo sílabas, doídas, incapazes, estraçalhadas, frágeis, inquebrantáveis. Tão pegadas à realidade que ontem fui dormir insurgente (pensando na nova ascensão do fascismo) e acordei nesse cubículo de saudade.