segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"

CARICATURA DE LEO MARTINS
8 - Romário, o de mil gols

Suponha que a pequena área seja um vagão de trem, abarrotado de homens aflitos. Ninguém, como Romário, encontrou espaço de sobra nesse vagão. “Eu não tô ali pra jogar bem, tô ali pra fazer gol”, disse o próprio, com propriedade: Romário não é Pelé, que ajudava a organizar o time, recuava, avançava em bloco, taticamente: Romário só sabe fazer gol. Nesse sentido, é o maior “especialista” – o maior esteta - em gols da história do futebol.


(Diz-se que a onça é a grande caçadora da natureza. A cobra não é uma caçadora, é apenas mortal. Sobre Romário - serpente com arranque de jaguar - as vítimas jamais esquecerão de como, na hora do ataque, a adrenalina amarga na boca seca.)

O Baixinho tornou-se o segundo maior goleador da história extremado em três prerrogativas: o inventor do espaço, o finalizador que jamais estragou o belo com dribles inúteis e o predador mortal, do qual, leitor, parece emergir, quase de forma sobrenatural, de dentro do homem um outro bicho, dissimulado, perverso. (Romário é mesmo a arrancada jaguarina com a picada ensurdecida dos venenos.)

1.000 gols. Permita voltar algumas semanas no tempo, e reconstituir com mais justiça o domingo passado.

Tarde 11 abril 2007, Maracanã: Está para começar o Vasco X Botafogo em que Romário testará, pela sexta vez, o próprio destino. Teve já cinco jogos para marcar um só gol, unzinho, o último: o milésimo, e este não veio. Trezentos e setenta minutos acuado diante do propósito de conquistar, mais do que uma marca, um símbolo - e passou em branco! Por isso, antes desse sexto confronto, Romário está jururu como uma coruja ao meio-dia - ou se tornará símbolo ou os deuses da bola lhe tirarão de vez a pele. O Vasco x Botafogo é eliminatório para a semifinal do campeonato carioca. E basta dizer que hoje os deuses da bola não terão dó: oito gols no tempo normal - 4 x 4 -, nenhum de Romário. Pênaltis: se o Vasco vencer, nossa fera terá pelo menos mais um jogo (a semifinal) para tentar o último tento; se perder, estarão eliminados do campeonato e o milésimo ficará para depois das férias, longe do clima de festejos e da mídia planetária. O matador que emana a frialdade das serpentes depende da letalidade dos colegas para viver. E o Vasco perde.

Sei que o nome de Pelé já aflorou várias vezes à boca do leitor, então vamos deixar Romário sozinho em campo, após a derrota nos pênaltis para o Botafogo - desclassificado, frustrado, talvez se sentindo humilhado, o gol 1.000 adiado: olhar perdido entre as luzes, varando-as não em raios retos, de encontro à torcida, mas para dentro de si: o futebol, que lhe tinha dado tudo, aplicava uma lição arrasadora antes da inevitável sagração.

Sim, Pelé virou símbolo aos 29 anos (1.000 gols) e deixou o símbolo para trás – seguiu devorando os goleiros (Pelé é um lagarto, como Ronaldo), e conseguiram contar até 1.289. Pelé emprestou magia de gol a bolas que não entraram, e ganharam nome próprio - os maiores “não-gols” da história; e é dele o mais extraordinário lance da história do futebol, o drible da vaca no goleiro Mazurkievscs, Copa de 70, quando esquece a bola – e ela é por todos esquecida –, contorna o arqueiro e fuzila de primeira - e aquela filha-da-mãe não entra. Mais do que símbolo, Pelé é um mito dessa era da comunicação.

Maracanã domingo 20 maio 2007: O futebol combinou com o tempo e quem apostar na serpente vai acertar na cabeça. Primeiros 45 minutos, 2 a 0 para o Vasco, nenhum de Romário. Início da segunda etapa, pênalti, e o próprio tempo cria um lapso – o lapso que entrará para a História – e tudo pára para que Romário seja ungido no panteão em que só Pelé pisou. Depois dos mil gols, Romário será citado ad eternun em qualquer enciclopédia de futebol. A marca dos 1.000 é um portal, um passaporte mágico como nos livros, e ali, igualmente a Pelé, Romário vai ingressar com um gol de pênalti, na mesma cidade, no mesmo lado do campo, no mesmo lado da trave, talvez na mesma altura sobre a velha grama. Como se o próprio tempo repetisse um jeito de fazer as coisas.

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