segunda-feira, 6 de abril de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


15 - A Mãe da Cidade Velha

Não era à tarde de um domingo ou feriado, quando a Cidade Velha repousa na própria substância e só o tempo é visto nas ruas. Era madrugada de sexta-feira, e alguns points do bairro fervilhavam: rock, MPB, reggae. Após a fama do quadro (óleo sobre tela), alguns afirmaram ter visto a senhora retratada, mas as informações foram tão desencontradas que pareciam invenções. O único ponto em comum era a estranha roupa, de séculos atrás, as formas rendadas e coloridas captadas com precisão pelos pincéis. Os lugares e horários eram contraditórios – alguns descrevem a senhora admirando a igreja do Carmo no mesmo minuto em que foi vista perto do bar do Rubão; e mais: para uns, aparentava mais de cem anos e, para outros, era uma jovem de vinte vestida para algum espetáculo.

A tela em questão não é um mosaico, mas híbrida, misturando lugares diferentes da Cidade Velha, numa paisagem ao mesmo tempo nova, harmônica, e, para quem conhecia as figuras ali misturadas, também surpreendente e “incomodativa”. Os estilos igualmente se misturavam – os entreespaços de Dina Oliveira, a cor-textura de Jorge Eiró, o assombro angulado de Paulo Ponte Souza, a impiedade de PP Conduru. Como o autor da obra não se revelava, mas era certamente conhecido, dado o alto domínio do métier, uma enquete na televisão evidenciou o nome de Emmanuel Nassar. Procurado, Emmanuel deu uma sonorosa gargalhada e negou veementemente, apontando “defeitos” no quadro, “meio careta”.

A cidade não falava noutra coisa, a tela foi parar na internet e virou matéria nacional no “Jornal Hoje”. E, como cada um vê o que quer, confirmavam-se todas as contraditórias versões: a aparência primeira da retratada era de senhora, mas logo se argumentava que as mãos eram jovens, ou que as pernas eram de anciã, e que os cabelos não eram peruca, mas de fato brancos e lisos, como de uma índia albina. Também se disse que a personagem da tela nunca existiu, e tudo não passava de uma brincadeira articulada e disseminada por três ou quatro pessoas. Como vemos o que queremos, algumas circunstâncias, por demais “organizadas”, pareciam tudo confirmar: olhando bem, perscrutando, revelando detalhes, muitos concluíram que os lugares onde a pessoa fora vista eram os mesmos que apareciam (de forma explícita ou “disfarçada”) na tela: o conjunto que tem ao centro o arcebispado e o Museu de Arte Sacra (onde a retratada fora vista por um pescador de Igarapé-Miri); a rua Siqueira Mendes, chegando ao Carmo (onde dois jovens viram-na admirando as casas e a igreja - mas se descobriu que os rapazes haviam tomado ácido e a história ficou desacreditada); o Forte do Castelo (ali o segurança viu-a já a sair, e ia tão reflexiva que ele nada indagou da presença fora de hora: na tela, o Forte foi representado em verde, não que fosse tomado pelo mato, mas como se os canhões fossem clorofilados); a rua Gurupá, perto do Boteco do Rubão (onde um casal gay de músicos-estudantes foi o único a notar a presença inusitada); o Ver-o-Peso (onde uma feirante viu-a lagrimando, e ainda quis ajudar, mas a senhora abriu um sorriso e se dirigiu à beira do rio); e a beira do Guajará (onde ela prostrou-se no chão e chorou, sendo assim representada pelo anônimo pintor).

Passados quase 100 anos, resta pouca esperança de solver o mistério, confirmando-se apenas a data da feitura da tela, ou de sua conclusão (“23 junho 2008”) e o título assinado embaixo pelo próprio autor: “A Mãe da Cidade Velha”.

2 comentários:

Barbara disse...

Isto não é apenas uma descrição de caso.
Tem uma poesia na dúvida, no mistério, no nome dos lugares e no perfil da cada pessoa-personagem envolvido (a).
Mãe da Cidade Velha.
Mãe de tanta coisa!
Ah Belém...
Edsom, pensei que tivesses me abandonado.
Que bom que não!

edson coelho disse...

imagine, querida, abandonar a inteligência e a sensibilidade. belém é doida-doida, mas na relação com outras coisas. parabéns para você.