segunda-feira, 11 de maio de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


20 - Esportes: superação

Os desfiles das escolas de samba têm um lado kitsh, exagerado, às vezes caricato na grandiloqüência: faz parte da catarse, de nosso extravasar desregrado, da “carnavalização”. O desafio a se temer, na abertura dos jogos Pan-Americanos do Rio, era a transposição descontextualizada, para o estádio, desse lado quase bizarro do carnaval. Pois o samba, elementar, seria o mestre da cerimônia.


Arrisco que o samba é a maior contribuição do Brasil para a cultura planetária – ao menos do Brasil por ele mesmo, pelo povo. A maior contribuição do “brasileiro”.

Sem exageros: a dança samba é tão complexa que revoluciona a relação entre o corpo e os ritmos. Como diria Tom Jobim, o que balança na música é Brasil, Estados Unidos, Caribe, Cuba. “O resto é valsa.” Só o Brasil, no entanto, sintetizou, no corpo, correspondência tão profunda entre um ritmo (samba) e uma dança (samba). Não há dúvida, leitor: primeiro, divida, na imaginação, a orquestra de quinhentos músicos percussivos, os tipos de instrumentos, as funções harmônicas e os naipes de batuque; agora divida (isole), para facilitar a vista, em várias partes o corpo de uma passista em ação: braços, pernas, quadril, cabeça, pés; observe cada parte sambar isoladamente - os cotovelos, o sorriso, os artelhos; agora junte as partes aos poucos - pés com pernas, omoplata sambando com pescoço; e aprecie então o corpo inteiro em harmonia, cada centímetro coordenado, tomado pelo samba (a orquestra desatinou), dança do sangue, samba.
Era o Pan do Rio, mar e montanha, cidade negra, morena, Zona Norte, Zona Sul, “mané é mané”. Superação, alvoroço em ebulição. (Bossa é saber pisar.)

“Superação”.

Nenhuma palavra cabe melhor ao atleta, a não ser a palavra “biótipo”: “superação”.

Hortência não seria um mito do basquete, se não tivesse a constituição genética rara; tampouco, se não treinasse horas e horas dia após dia, mês após mês. Vontade, disciplina, garra, valentia – fraturas, tornozelos torcidos, tendões rompidos – biótipo e superação, eis justamente por que amamos os atletas, mais, por que chamamo-los de heróis.

É comovente o aplauso, nas ruas, aos que se aproximam do final da maratona, o corpo a se esvair para ter energia, feixes de dor, todas as regiões do cérebro prestes a pegar fogo: o grande atleta é aquele que, diante de si, a cada passada, a cada segundo supera desafios gigantescos. Daí nosso transbordamento.

E é preciso voltar alguns milhões de anos no tempo, e recordar que o corpo mais veloz, ou mais forte, ou mais “inteligente” (o dos atletas) é justo o tipo de corpo que resistiu à seleção natural das espécies: que sobreviveu à guerra incessante pela vida. Nos esportes, projetamo-nos, de forma inconsciente, naqueles nascidos para viver mais.

Sobre os desafios da cerimônia de abertura, a carnavalização se deu na medida certa (“tropical”, altissonante), sem botar a fantasia na frente do samba, sem botar o samba na frente dos esportes. Belo momento: a alma dos atletas estrangeiros jamais esquecerá o compacto corredor brasileiro feito de pandeiro, surdo, tamborim e o corpo dos nossos nunca esquecerá o momento em que o samba ecoou tão poderoso que é como se acabasse de eclodir (ou explodir) na natureza.

4 comentários:

Sara Fidiró disse...

Adorei esta mensagem.
E muito bela.
Parabéns pelo blogue que está um mimo.
Um beijinho

Anônimo disse...

c´est si bon.

Anônimo disse...

A passista move-se e a palavra dança...no ritmo...(percussão/passista)
Sei por que não...mas lembrei dos "quibundos" do Bruno de Menezes.
Legal.

Anônimo disse...

Leia-se quimbundo onde lê-se quibundo acima.