segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"

45 - Jabuticabinha

Desde que ela nasceu, quatro meses atrás, giramos-lhe em volta como num planetário, desmedidas gravitações em torno de minúsculo sol. “Solzinho que brilha de madrugada!”, boceja a mãe, e já alerto o leitor de que esta é, mesmo, a saideira crônica sobre Dara.

“A Vida do Bebê”, manual pediátrico, parece um tijolo de seis furos – para servir de travesseiro. Lemos que os nenês, aos três meses, têm pesadelos e acordam assustados. Pesadelos? Diz a mim, Dara Damaso de Oliveira, de onde virá essa tua necessidade de se purgar, senão da manipulação, de caprichos ultra-minúsculos, instruída por maravilhosas avós? Todo pai de família sabe – duas avós ao mesmo tempo sobre a mesma criança é caso de Conselho Tutelar. Sempre digo que não sou do interior, e sim do mato, e não lembro de ter tido lá pesadelo aos três meses.

Fofosa, sonosa, manipulosa, traquinosa, chorosa, cocosa, musicosa, banhosa, friosa, shortosa, meiosa, pulseirosa, brincosa, jaboticabosa. Na verdade, o primeiro adjetivo depois do nascimento foi indiosa, porque os olhos inchados e o cabelo muito preto confirmavam antepassados parauaras; o primeiro improviso que lhe pespeguei foi “lindiosa”, mistura de linda com indiosa e geniosa, exemplar força da natura. Logo os traços índios tornaram-se morenos, e os apelidos e adjetivos se foram renovando. Lembro de “Abelhinha”, pela redondez da face e dos olhos e pela vivacidade; de “Sem-cerimônia”, por defecar cheiros terríveis, e todas as mulheres da casa festejarem, e a pobre da bebê rir escancaradamente, aprendendo o que é o apogeu; e, para encurtar, teve “Magali”, a personagem comilona dos quadrinhos, pelos olhos redondos, pestanas marcantes e por um cacheadinho no cabelo do lado esquerdo de quem olha. Nenhum apelido foi tão bem-sucedido quanto Jabuticabinha.

No início, os olhos de jabuticaba sorriam como a boca sem dentes, junto com as mãos e as pernas; abelhinha lindiosa carequinhosa manipulosa confirmando a existência de todas as pessoas; e ganhando forma em nossas vidas: Jabucabinha logo variou-se em Jabuticabosa, Jabuticabinhazinha, Jabuti’cabinha’zinha, Jabuticabojososa, e os termos viraram diálogos (“Ela tá jabuticabosa?”, “Claro, e rindo!”) com verbos exclusivos, às três da manhã (“Jabuticabou?”, “Total!”), e aí tento eu acordar, sentar na cama apoiado à parede, três travesseiros às costas.

A figurinha foi crescendo, e haja independência, página 203 de ”A Vida do Bebê”, frutinhas, sopinhas. A mãe já leu até à 302, como se antecipasse os capítulos de uma novela. As mães (avó é mãe em dose dupla, veja você) estão loucas para dar papinhas, sopinhas, misturebazinhas, caldinhos de feijão rajado. O carapanã picou a testa da princesa - pediatra! O doutor Haroldo Menezes olha a bebê e fica atordoado: “O que vocês estão fazendo aqui?”; elas perguntam se pode isso, se pode aquilo, e o médico, enérgico, “não, não, não!”. Ao sair do consultório, procedem como se ele dissera “sim, sim, sim!”.

As avós já chamam a abelhilosa de “Zabuticabózisa”, e ao telefone a mãe pergunta trinta vezes por dia: “E a Jabuticabinha? Oôoo, minha linda! que fofa! E comeu?”. Num dia não muito distante, o olhinho jabuticaboso passou a ver as coisas, os movimentos, e a ser dominado pela própria visão: a ser jabuticabado. Para tudo a pirralha virava os olhos, até para trás, giro de 360 graus, crente que sustentava mesmo a cabeça (“Ela zá lealiza opelações complecxas!”), e por falar em sustentar a cabeça careca, virou “Lagartinha humana”, a única da natureza, e assim a Jabuticabinha jabuticabou-se, e a nós, e agora ri também com mãos e gargarejos e lágrimas de crocodilo, e todos nos quedamos à adoração, postados em silêncio, risonhos e embasbacados, jabuticabados.

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