segunda-feira, 3 de junho de 2013

Irrealismo mágico

As asas e a lágrima

A chuva revirava a noite do vilarejo;
ao longe, as bandeiras que restaram do São João, 
cores plastificadas entre árvores retorcidas;
muitos viram, pressentidos: semelhavam bandeiras
desprendidas, mas eram asas, um par de asas
arrastando-se em chumbo pelo ar devastado.
Alguns até tiveram o impulso de sair à chuva,
ajudar, talvez, mas como? Ninguém estranhou
quando as asas, num esforço arquejante,
se arrojaram à frente, transpassaram a janela
e planaram por instantes, pousando sobre a mesa
na casa de madeira. Em segundos, dezenas de pessoas
se admiravam em volta, silenciosas, sem medo,
e as asas evocavam um ser humano, mas sem corpo,
estavam exaustas, a respiração trêmula, prostrada,
e queriam descansar, mas sem olhos. A água lhes escorria,
penetrando a madeira da mesa, e se notava a pele gretada,
como que percorrida por um deserto, cabelos, não penas,
ralos, finos, sobre a pele membranosa, e o silêncio
se aconchegou ao trepidar da chuva, e as asas dormiram,
palpitando na mesa. A dona da casa envolveu-as
num lençol, e pôs sobre o colchão na própria sala,
e em silêncio todos se deslumbraram,
e o silêncio se alteava com o esmaecer da chuva,
e quando tudo era silêncio, um temor se instalou,
como se, de hora pra outra, algo extraordinário
se sucedesse – bom? ruim? Quase todos velaram
por toda a noite, o temor silencioso, e aos primeiros
raios as asas se mexeram, e se desvencilharam do lençol,
não tinham olhos, mas estavam serenas, e percebiam cada
pessoa presente. Minutos depois, numa vibração
que se aproximava de muito longe, cada um começou
a lagrimar, sem razão - pareciam tocados pela mesma
lágrima, e escorriam a mesma dor, mas não - a lágrima
era a mesma, mas a dor era de cada um – como num
chamado: deixa a dor entrar, pelas mãos, pelos braços,
deixa a lágrima percorrer o corpo e a ela afluírem
os desenganos, as frustrações, teu sofrer resguardado,
teu brilho pilado, teu calar heroico, e depois do corpo
o pensamento cabisbaixo, o sentimento deixado para trás,
e antes do corpo, antes da pedra, da seiva, a dor primeira,
gêmea da luz, a dor que a própria vida arrasta
como asas presas a invisíveis grilhões, asas-grilhões,
a dor que suturou o universo do teu corpo
antes do fogo fundir na água o mineral do nascimento:
deixa a lágrima rolar a dor que nunca conhecerá
a si mesma.
Embebidos da lágrima, todos despertaram para as asas
repentinas, esvoaçantes, alçando-se rumo à janela
e se desvanecendo em sereno ensolarado, para espanto
das crianças.

2 comentários:

Anônimo disse...

Edson...li teu texto! E a lembrança de outros textos se misturam com o teu, e a memória conserva muitas recordações que abrem a claridade! Vejo o diálogo poderoso com outro texto, um grande cosmo dentro de outro, pra se brincar de pensar e desnortear a inteligẽncia, porque ler um texto é deixar rodar a roda do encantamento.

Parabéns!

:* inês

edson coelho disse...

e o encantamento é sempre movido por outra roda,a do mistério - todo encantamento é uma espécie de mistério aflorado. valeu