quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


48 - Bares e aparelhagens

Com paixão – não interessa qual – é inútil discutir. O apaixonado até acha que pensa, que toma decisões, mas apenas age, obedece, obcecado pelo objeto de loucura. Depois da morenês índia, da culinária e do futebol, o que mais endoida o paraense é a música.

Imagine um garoto de doze anos que descobre a vocação: lidar com sons, animar festas, fazer dançar. Observe-o numa rotina em que ouve música pelo menos 16 horas por dia – tudo é com música - comer, estudar, ir ao banheiro. Qualquer grana que role, discos, discos, discos e equipamentos. Some este garoto com milhares de outros. E, décadas depois, terá algumas das maiores massas de som do planeta, as aparelhagens do tipo treme-terra, tupinambamente paraenses, arrasas-quarteirão da Amazônia – com a poluição sonora correspondente.

Todo povo tem no mínimo um Deus, uma língua, um álcool; de cana, de arroz, de malte, de cevada com lúpulo (como resistir a “lúpulo”?); o álcool é a droga da humanidade, aceita socialmente, pessoas sérias bicando um uisquinho, até o presidente Lula bebia em público – identificando-se com o povo, fazendo uma média, mas o marketing virou contra o marqueteiro Duda Mendonça. O Brasil é emocionalmente uma bagunça - há cenas de sexo à tarde na tv; no horário de verão, os programas são passados, por exemplo, em Belém uma hora antes que no Rio de Janeiro; beber na frente dos filhos é hábito da família nacional.

As religiões e o “humanismo” passaram milhares de anos a nos ajudar a controlar o instinto sexual; e a publicidade – o sexo como mote e a liberação feminina com a naturaleza – detonou tudo em menos de vinte anos. Hoje é sexo e sexo, as crianças junto, sem proteção, sem diálogo, por isso adolescem sem a menor maturidade emocional. O sistema criou situações degradantes, humilhações, monstros como o da violência, e não consegue controlá-los, e em vez de resolver pela causa, rende-se ao Godzila do processo que se perpetua deglutido os irmãos.

Salvam o cidadão as manifestações do prazer - carnaval, boi-bumbá, forró; coisas do povo para o povo, que às vezes dependem do poder constituído, e de repente o poder não apóia mais samba no carnaval; e depois de criar o Alien do álcool (a conta publicitária das cervejarias rivaliza com a do governo federal), depois de nos seduzir com nosso próprio destilado (de cana) e, sobretudo, depois que nos acostumamos com essa dragagem, digo, com esse dragão, depois que nos envolvemos, que virou estilo de vida, eis que o poder decreta que não se pode mais, depois da meia-noite, ir ao bar da esquina com nosso monstrinho de coleira.

Na verdade, muitos podem sair, sim, de casa, e beber até de manhã, desde que em locais específicos, que atendam a uma série de exigências. A verificar-se quem os freqüenta, se constatará o óbvio – que os de maior poder aquisitivo preservarão intacto o lazer, enquanto os mortais serão atingidos na rotina: porque o poder público não encontrou outra forma de enfrentar um problema social.

De início, discutia-se apenas como reduzir (com urgência) os índices de barulho na cidade (a mais barulhenta, por cultura, do Brasil); em seguida, concluiu-se que fechar os bares reduziria também os índices de violência; e não se teve dúvida. (Em que veio dar a paixão de nosso menino apaixonado por sons, e logo agora que a música do Pará nunca fez tanto sucesso, nunca vendeu tanto, pois justo hoje decidiram silenciar a cidade: e não se pode celebrar, de ouvido, tal feito num bar, onde a maioria dos músicos se formou.) É certo que Belém já investiu (e precisa investir) muito em turismo para abrir mão de uma “noite” acalorada; mas tô preocupado mesmo é com a temperatura de nossas íntimas baixadas.

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