terça-feira, 19 de janeiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


50 - Cenas de Buenos Aires

Os prédios dos bairros centrais de Buenos Aires são um pegado no outro, parede a parede, quarteirões e quarteirões de arquitetura com cara e charme de cinqüenta anos atrás. Quarteirões blocados, o vento gélido se canaliza nas ruas, num arrastão que lembra os gumes prolongados da cana-de-acúçar, só que invisíveis. Até o café ali na esquina, minha cara estará marcada como um capataz por canaviais do Século XVIII.

Os argentinos têm uma relação de amor e fúria com o cabelo – os jovens, os atletas, os engravatados, os apresentadores de televisão. Por vezes, pela rua, lembram lindos carneiros urbanos, a cabeleira loura assanhada em muitas direções ou cortada de formas estilizadas, os sérios senhores de sobretudo e pastas encabeleirados, as crianças, os adolescentes, e nas mulheres a cabeleira salta dos 27 para os 60 anos, na média-idade todos os fios sofreram interferência de cor e formato. Para tanta demanda, uma peluqueria a cada esquina.

Melhor não comer arroz em Buenos Aires.

A Galeria Pacífico poderia ser chamada de shopping, se o prédio não fosse – desculpe a frase – uma obra de arte, com afrescos nas abóbadas e uma arquitetura que transforma a construção, de material pesadão, numa espécie de fortaleza leve como a pluma. Comprar ali é se relacionar antes com formas criativas, várias exposições, instalações, o Centro Cultural Borges, Miró: gratuita, sem filas, a mostra de Miró reúne 63 desenhos e gravuras, em que se vê a manifestação do inconsciente, característica do surrealismo, depurada por um mestre não só de um movimento, mas da pintura: no artista espanhol, a forma não surge da linha, mas é a própria linha, e a pintura não se forma da cor, é a própria cor: uma mancha, uma gota. “A conquista da liberdade é a da simplicidade”, teorizou Miró. “O objetivo extremo é o quadro ser resolvido numa única linha.”

Faz uns dez graus, temperatura ideal para a feira de San Telmo, antiguidade e arte, uma das melhores pedidas de Buenos Aires. Deparamos os primeiros violões, pintores, cantores. A voz atravessa épocas e rincões, temperamentada a frio, noites inóspitas nos pampas, solidão que precisa ir até as estrelas. A música argentina toca tão fundo o sentimento da melancolia que, quando transcende, não se transforma na própria música – Bach – mas vira poesia. E não é só um instrumentista ou compositor: o povo, a cultura.

Na Argentina, os vendedores e garçons têm a aparência “bem cuidada” dos turistas. San Telmo é uma pausa cheia de harmonias: os portenhos se mostram orgulhosos do que são a turistas felizes em viagem, relaxados, a querer conhecer e respeitar o outro. Na pequena praça (o frio repousado nas peças antigas das dezenas de barracas) o casal se prepara para dançar: o “Tango Índio”. Incrível: a dançarina tira a calça jeans à vista de todos (é como ver uma aeromoça de toalhas): já traz, para o ofício, meias pretas sob o colant decotado, de sensualidade agressiva, plena do que se seguiria. Ela então põe sobre o colant a saia preta, o sapato de saltos altíssimos e firmes e começa a se aquecer, ainda sentada a testar os sapatos: e o tango salta-lhe por dentro do corpo, desperta não como uma brisa inicia a tempestade, mas já aos arrancos, pequenos choques impetuosos em braços e pernas que desafiam a vontade como se tivessem vida própria, apenas usam o corpo da dançarina como “cavalo”.

Duas garotas índias aparecem – uma de uns seis, a irmã de uns nove anos – com pequenos bandoneons à tiracolo. Aproximam-se da dançarina, recebem carinhos, riem estupendamente, como duas brasileirinhas. Antes do show, umas palavras sobre o “Tango Índio”. O dançarino, alto, mais encorpado pelas botas longas, fala das diferentes levadas e formas de tango, e demonstra com palmas e nos pés, e vai ao aparelho de som, e mais uma vez demonstra as diferenças, na instrumentação, e apresenta as roupas típicas do meio em que a dança começou, mantas, pantalonas, e mostra o punhal tão argentino, “usado para trabalhar ou defender-se”. Fala rápido e com carisma, pede uma salva de palmas irônica para as pequenas irmãs índias, “grandes artistas”, que três vezes o interromperam com risadas. A dança vai começar.

Ambos se movimentam de longe, como se fosse inevitável tanto a atração quanto o afastamento: o tango é a dança da tentativa de dominação entre os amantes. Os corpos se encontram, em choques, e, em vez de um conduzir o outro, se enfrentam, se desafiam, e se insinuam e roçam, mas, sempre que um parece enfim vencer, o outro sai-se, reverte-se, para logo lançar-se no jogo de fogo em que a suavidade se derrete para forjar um punhal.

E, como no poema de João Cabral sobre a dançarina espanhola, veja, a mulher do tango é a égua e o cavaleiro, às vezes não sabe se monta ou é montada, mas no tango a companheira tem um partner, que, literalmente, tenta apoderar-se da fêmea passando-lhe a perna pelas costas como por sobre uma sela (se a perna passar completa, a alazã estará perdida) e, quando parece que a perna transporá a linha da fatal dominação, a mulher escapa, mas não como se fugisse, escapa com um movimento de perna que parece o desmontar de um cavalo: o cavaleiro estava prestes a dominar a égua, mas ela é que desmonta.

Nenhum comentário: