segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


52 - Medo das palavras

O palavrão é o patinho feio dos dicionários. A diferença entre o palavrão e o cisne da fábula é que o primeiro é quase sempre, de fato, feio de constranger e o Patinho Feio do Christian Andersen era, afinal, um cisne. Bem, o palavrão também não é nenhum patinho, está mais pra águia ou urubu, e vive longe de ser o personagem – ou linguajar – adequado para uma narrativa infantil. Como este começo, portanto, fracassou, tentemos outro.

A tv pode mostrar – sexo, sexo, sexo – mas não se pode falar sobre. As crianças de 0 a 6 anos – que formam ainda a personalidade e têm a memória melhor que a dos elefantes – podem assistir, depois das 18 horas, a vários triângulos sexuais encadeados na tv, mas não se fale disso na sala. Metade da grana gasta com publicidade é para construir apelos sensuais, e nem precisava tanto. O que mais a censura represou, por séculos, nas palavras (o sexo) a emancipação feminina botou nos eixos em duas gerações. O estranho é ainda termos mais medo das palavras do que da coisa em si, poder assistir, mas não falar.

Para mim, o principal motivo desta quase incongruência é: falar implica em confissão.

A ciência já deixou claro: não estamos aqui para ser felizes, ou pensar, mas para nos reproduzir. O “resto” é o humano, suas profundidades complexas, complexos: transformou em pecado o gesto “mais natural da natureza”: aquele que assegura a perpetuação da espécie. O pecado é uma tentativa de sufocar na mente o que não se sufoca no instinto. Todo mundo quer, mas não se pode: e se criaram mecanismos do tipo vergonha, pudor, corar, recalcar, sublimar. Não interessa se o mundo sabe o que carregamos no íntimo, desde que não sejamos confrontados com o que de fato pode esclarecer tudo: a palavra. Como somos todos culpados (atire, você sabe, a primeira pedra quem não morreu por amor) a programação explícita da tv ao menos resolveu a necessidade de expressão do corpo. Falta resolvermos o humano, os verbos.

Calma, leitor, que não vou insuflar nova revolução feminina, desta feita pelo domínio do palavrão. Aproveito pra observar que a queima dos sutiãs como marco feminista é meio brega, salva pela força simbólica da liberdade inaugural: considerando-se os milênios de repressão, tirar o sutiã em massa foi como abrir comportas hidrelétricas. Felizes tempos, os nossos, brasileiros, em que a bagunça dos sentimentos ainda sobrevive à baderna corporal. Chegamos ao corpo, ao vídeo, galãs e mocinhas transando às 18h, mas o Eu continua misterioso, obnubilado por uma redoma, por um muro, uma comporta – de cuidados, de zelos, de carga cultural, de hipocrisia.

Tenha ciência disso: o que mais ocultamos é que é a verdade; o de que mais fugimos é a verdade; o que mais evitamos, o que não verbalizamos: eis a verdade. Chegar à verdade é mais simples do que se ameaça: feche os olhos, e responda em dois milésimos: o que você mais quer? A primeira coisa que vier é a verdade. De novo, em dois milésimos: se você fosse de fato livre, o que faria neste momento? A palavra que você não diz, por iniqüidade, por timidez, por fineza, é a verdade. Com Clarice Lispector: quando aprendo uma palavra, conheço mais a mim mesmo. De quais palavras vivemos fugindo? O que ocultamos, o que negamos, o que reprimimos, o que comportamos em nós? Sempre a verdade, a liberdade.

Encarar as palavras de frente é a última odisséia sexual. E estamos bem longe do porto: a verdade é simples, mas não é possível, e assim a liberdade, aquela que não se explica, mas todo mundo entende.

4 comentários:

AS FALAS DA PÓLIS disse...

10!
Show de bola!
Lembrei do Reich.

Anônimo disse...

vontade louca de falar... mas ... tenho medo das palavras !!!! eu que sou mortal até a alma!!!

firmafortedocerrado disse...

A saga da reproduçao.... gostei dessa. Embora esteja longe de admitir que esteja prestes à iniciar a minha. Talvez pelo determinismo que venha a ser camuflado por uma dessas palavras que você citou( pudor, vergonha...) ou simplesmente por escolha. Salve SAlve

Anônimo disse...

ainda bem que ainda se pode fazer!