quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


54 - Reaver todo o tempo

Uma das realizações humanas mais extraordinárias é a formulação (pela filosofia, pela arte e pela ciência) do, digamos assim, mito do eterno retorno. Imagine: tudo o que agora acontece se repetindo, rigorosamente igual, em determinado estágio do espaço, daqui a milhões de anos. O argentino Jorge Luis Borges, no conto “A escritura do Deus”, trata de um homem aprisionado, Tzinacan, cuja divinidade, Qaholom, no início do mundo teria previsto todos os males e ruínas e deixou uma forma de saná-los: uma frase, que pronunciada recriaria/restauraria tudo, sentença que conteria toda a obra do paralelismo entre o tempo e o espaço. Borges quase nos faz crer que tal frase existe, afinal um deus “só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhuma voz por ele articulada pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo.” Ao final do conto, o prisioneiro descobre a sentença total: cifrada nas malhas dos tigres. Pronunciá-la seria tornar-se onipotente, tornar-se o próprio Deus, mas Tzinacan, mesmo senil e encarcerado, nobremente não a pronuncia: “Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo, não pode pensar num homem, em suas vulgares ditas ou desditas”. Imagine, leitor, pronunciar uma frase e poder absolutamente tudo...

Mais fantástico do que a formulação poética ou filosófica é ter a física prometido a concretização do retorno: não apenas nos livros, mas no real, o universo se repetiria de cabo a rabo, e, a meu ver, o único problema aí é que demoraria demais considerando-se ser uma repetição: os exatos bilhões de anos transcorridos até fechar o ciclo-reinício. Vou fazer uma pergunta humilde: e se este retorno estiver se dando agora, se a atual vida já foi vivida desde o começo dos tempos, se formos uma reprise como um reflexo no lago? A resposta mais agradável é a possibilidade de intervir no universo, de lhe acessar o passado e o futuro, pois que estes estão em algum lugar, preservados, e, portanto, é menos impossível descobri-los. Encontrar uma máquina, uma conta, uma fórmula, uma sentença, e instaurar a navegação pelo tempo, tornar real o mais recorrente sonho dos poetas. Honestamente, eu não hesitaria em dizer a palavra, a sentença, eu entraria na matemáquina, eu aproveitaria a fresta e atravessaria as eras a despeito de minhas vulgares ditas ou desditas. Aliás, se é pra sonhar, eu gostaria de escolher, selecionar - apenas alguns fatos e pessoas de passado e futuro, algumas sensações raras para depois lembrar.

O que você, leitor, escolheria para re’ver, re’viver?

Noutra extensa demonstração de humildade, enumerarei algumas coisas de que não abriria mão. Em agradecimento ao Borges, eu assistiria à imagem em que “Adão descobre a frescura da água” no Paraíso. Antes, porém, eu observaria um pouco da formação das espécies, e presenciaria o surgimento da fala e das primeiras palavras. (Tenho quase que certeza de que a primeira palavra foi “mãe” e o filho estava com fome ou em perigo). Pena que Helena e Tróia provavelmente foram inventadas, mas passaria um tempo conversando com Homero, se ele aturasse. Submeteria poetas como Dante e Rimbaud à minha maviosa presença, e aproveitaria todos os minutos entre as décadas de 1910 e 1930, quando estavam no auge Fernando Pessoa, Pound, Lorca, Eliot, Joyce e Maiacóvski. Também viveria de novo muito da minha vida (uns 3%) e daria um salto tremendo para o futuro, primeiro duzentos anos, depois dez mil, depois um milhão de anos. Disso tudo eu selecionaria, para depois lembrar em 2006, as sensações de felicidade de alguns bilhões de pessoas, o segundo mais intenso de cada vida, e os ficaria curtindo em série, encadeados, como se eu, e não Platão ou as conjecturas dos teósofos, fosse a memória do universo.

Um comentário:

Anônimo disse...

MARAVILHOSO o texto!!!

O texto é um dos melhores que já li do senhor, só ele junto com mais alguns já valerão o seu livro, reintero meus desejos de sucesso ao seu empreendimento literário.
Há muito a máxima: " Não existem coincidências" é evocada a cada vez que o homem espanta-se com o novo. É a certeza de não-onipotência.
Gosto de pensar que o tempo não existe, é fixo e que nele me integro, neste sentido ... as manhãs são sempre as mesmas ... eu não!!! Assim ignorando o tempo ( o real) guardo nas gavetas milhões de sensações, seu texto me fez rever tudo o que guardei, selecionarei horas desse dia para rever isso! Massa seu trabalho em "Eterno Retorno". Parabéns ao senhor. Abraço fraterno
ines