terça-feira, 2 de junho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


22 - O gigante desentranha-se



O Brasil é, ao mesmo tempo, a negação, afirmação e revolução de si mesmo. Define-se como pacífico e cordial, mas tem algumas das cidades mais violentas do mundo. É uma das maiores economias e sacrifica um dos povos mais pobres. Tem uma imensa massa de analfabetos e é o 13º maior produtor de ciência. É um país do terceiro mundo e contribuiu com alguns dos maiores artistas para o século XX (Villa-Lobos, Guimarães Rosa, Niemeyer). É um “país que não lê”, mas tem alguns dos grandes poetas musicais (Aldir Blanc, Chico, Caetano); aqui um poeta consagrado pela academia tornou-se ícone em letra de canção (Vinícius) e é improvável, em qualquer outro país, que um letrista popular tenha, como Noel Rosa, tanta importância para a afirmação de uma língua e de um jeito de ser.
O Brasil latente, “país do futuro”, o “gigante adormecido”, esse já foi verificado e constatado por autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Todos os brasis que abrem esta crônica estão, de certa forma, contemplados em suas origens por nossos sociólogos. O Brasil que sente o futuro cada vez mais próximo, quase no presente, o gigante que desperta, esse é que não parece se justificar pelo próprio passado, não parece previsto em nenhum tratado: desentranha-se de si mesmo, segue fora de controle, mas sentindo não no corpo, e sim nas mãos, uma força tão pujante quanto estranha, ainda que se confirme a negação, afirmação e revolução de si mesmo.
Os casos a seguir ilustram, sem dúvida, o mesmo velho Brasil; mas acrescentam algo de maravilhoso e diabólico, pululâncias do ser que começamos a ser:
- O reitor de uma universidade acusou o povo da Bahia (onde quase 100% da população ou é negra ou tem íntima ligação sanguínea e cultural) de primarismo intelectual, exemplificando com dois símbolos da cultura afro: o toque do bloco Olodum e o berimbau (“baiano só toca berimbau porque tem só uma corda”, disse o reitor - em nossa chamada “democracia racial”, o nazi-fascismo);
- A menina que foi asfixiada e, desacordada, jogada do sexto andar de um prédio (estão presos pelo crime o pai e a madrasta, de classe média alta);
- Elegemos presidente um intelectual de padrão internacional e, a seguir, um operário, nordestino, “pobre”, “feio” e sem um dos dedos da mão esquerda;
- Acabamos de ser classificados, pela primeira vez na história, como um país seguro para investimentos (o que nos abre um mercado de 17 trilhões de dólares) e somos o maior “fornecedor” mundial de prostituição infantil;
- País que desenvolveu a melhor tecnologia para extrair petróleo de águas profundas, o Brasil torna-se, com a descoberta de uma gigantesca reserva pré-sal, potência mundial nessa fonte que se esgota (já o somos em água doce e dominamos como nenhum outro a tecnologia do biodiesel, o que nos torna triplamente estratégicos para o futuro);
- O Brasil-Santos Dumont, que inventou o avião (revolucionando o século XX), é referência mundial na fabricação de boeings; e, no entanto, institui cotas para negros nas universidades, porque não encontrou outra forma de compensar a escravidão de antes e depois da Lei Áurea;
- Fama de povo mais alegre, mulheres mais bonitas, sexo livre, a natureza mais exuberante – o mesmo Brasil que transforma a biodiversidade amazônica em carvão e que é tachado de bazar do sexo (“carne”) mais barato;
- Aqui, a “fresta” (como, num tribunal, os advogados aproveitando brechas na legislação) incorporou-se à cultura, à personalidade, à identidade do povo, legitimando o “jeitinho brasileiro”.
O Brasil desperta mais confiante, mais arrogante em seu gigantismo, mais generoso em sua multiplicidade de tudo. Surge agora de si, de seu amálgama-unidade, e não da anterior “mistura estratificada” de raças: mais maravilhoso e irrecuperável (“o Brasil não é um país sério”) e vergonhoso do que pensáramos.

6 comentários:

ines pereira disse...

Caro Edson, quando fui sua leitora de crônicas no jornal,já tive oportunidade de ler e comentar seu excelente texto postado hoje.Este país (verso e reverso) em sua grandiosidade, emerge pradoxalmente "O Brasil que sente o futuro cada vez mais próximo... a negação, a afirmação e a revolução em si".Relendo hoje parece saído agora do teclado...e assim o será quando daqui a alguns anos seus filhos o lerem.
Parabéns por este excelente texto e pelo conjunto de seu livro que certamente ficará ótimo.

edson coelho disse...

inês, agradeço imensamente sua atenção ao meu trabalho. não raro, você pega a veia de poemas e crônicas, com comentários certeiros e surpreendente. parabés a você pela inteligência, cultura e argúcia, e tenha a certeza de que continuarei na luta para merecer sua leitura. obrigado.

ines pereira disse...

Quer ler umas divagações literárias vá em www.subton.blogspot.com
obrigada

Anônimo disse...

Curto, completo e direto. Gostei

firmafortedocerrado disse...

Curto, completo e direto. Gostei

firmafortedocerrado disse...
Este comentário foi removido pelo autor.