segunda-feira, 22 de junho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


25 - Paracuri

Semana passada, fui, como jornalista, ao Paracuri (entre a Pratinha e Icoaraci, uma das áreas mais pobres de Belém) e senti-me no mínimo em Marajó. O pescador Daniel Romão nos conduziu numa rabeta (tipo de canoa motorizada, muito veloz) e em dois minutos estávamos, eu e o fotógrafo Gilmar Farias, no meio de uma pequena mata, onde se destacava o traço esguio dos açaizeiros. Descer da rabeta era dificultoso, pois chovia e à beira-rio o chão cobria-se de lama, e ainda havia que se equilibrar numa palmeira-pinguela. No clarão, três casas espaçadas, entre árvores e sem energia elétrica (a água é encanada) onde vivem famílias de pescadores. Na maior, de um único e grande cômodo, moram nove pessoas. Naquela manhã molhada, a morrinha se espichava nos recém-acordados, outros estavam espertos há horas, à beira do fogo. Pegaram um porco na própria área (conviviam, soltos, espécimes variados de patos, galinhas, cachorros) e os caldeirões de água quente o pelariam dali a pouco. Faria companhia a outros três, cevados durante treze meses, para os quinze anos de Jéssica, filha de um dos pescadores.

“Político só vem aqui pra pedir voto”, acusou Daniel Romão. “Eu já disse pra um candidato que acabou na Assembléia: depois da eleição, sei que tu não vara mais aqui”. A referência não é a propósito da política, que aqui não cabe, mas de “varar”, tão paraense: atravessar, mas não à beira de remansos: cruzar em linha reta, enfrentando cipós e galhos. E também, nas cidades de interior, andar não pelas ruas, mas através dos quintais, entre-cercas (na ilha de Algodoal, muitas cercas, de tão entreabertas, existem para demarcar o terreno, não para impedir a passagem dos conhecidos), “De repente, ele varou em casa”, ouvimos amiúde, denotando não apenas o inesperado, mas que alguém percorreu uma boa distância (amazônica) antes de chegar. Vara (de árvore cortada) ilustra bem essa lida com a natureza, o que agora remete a um poema do paraense Antônio Moura, em que o “vento varão vara (vira vara e penetra na) a selva”, “fauno/a/fauna”, erotizando a expressão a partir do velho despudorado vento, tão íntimo de quem convive com veredas. À beira do rio Paracuri, nessa época de temporais, andar é pisar nem que seja em fina camada de lama, lisíssima, e o melhor é acocorar-se, estender as mãos para as chamas, e ouvir sobre o ofício da pescaria e daquele contato tão direto com a natureza.

O aniversário de Jéssica seria celebrado na Sacramenta, dois dias depois, em casa de familiares, e veio à tona o suíno que, amarrado e agora quieto, talvez se conformara com a própria sina. Sete anos antes, capturavam-se porcos na beira do rio, “e eram selvagens mesmo, o sabor da carne era muito diferente”. O camarão também dava mais – até vinte quilos por maré (sempre à noite); hoje não passa de cinco quilos, nos melhores dias. A poluição (o rio Paracuri é o esgoto de três residenciais) prejudica, de forma direta, milhares de famílias em várias áreas de Belém, mas este não é nosso assunto. A reportagem era sobre a pesca na área urbana da capital e Daniel Romão decidiu nos levar até a ilha de Outeiro, na rabetinha. Dois garotos (um de catorze, outro de oito anos) completaram a lotação e contornamos, pelo rio, parte da orla de Belém, defrontando carcaças de navios, grandes embarcações, balsas (gigantescas plataformas de ferro), rebocadores, lanchas, catamarãs, as gaivotas imóveis sobre as estacas compunham esculturas expectantes. Perto da praia do Cruzeiro, engatamos uma parábola até Outeiro, que parece tão perto pela água, e na ilha conhecemos famílias semelhantes às do Paracuri, mas com melhores condições de pesca (barcos, várias redes, em vez de um simples matapi para alguns litros de camarão) e era igual o tipo de prazer, de paixão pelo ofício, e de alerta: “Há cada vez menos peixe; joguei uma redinha aqui perto, hoje, e não arranjei nem o da ‘broca’. Meus irmãos foram para a Vigia”, lamentou Ronaldo Vale. “A poluição está dominando a baía”, mas não há que se insistir aqui nisso. O assunto agora é ter caído por terra minha pretensão de conhecer Belém, os segredos, as grutas, de ser maior que a cidade (provocando apavorantemente o tédio) e descobrir que não, que precisamos é nos despir da preguiça e da boçalidade. Só lamento não ter ido ao aniversário da Jéssica.

2 comentários:

ines pereira disse...

vou guardar a foto pra voar e pousar num anoitecer desses.A inspiração correu solta não foi?..."e o melhor é acocorar-se, estender as mãos para as chamas, e ouvir o ofício da pescaria..."
imagino um "novo" romance regionalista,( já está na hora), um novo autor com espírito de Pará.(Amazônia).Olha que tens mão certeira pra essas
coisas.Percebeste já?Isso de água é a tua cara, como se estivesses plantado nessa paisagem.De todos os textos postados, referentes aos"regionalismos" esse pra mim é o mais genuíno.É isso aí! em frente e certeiro!!!!
cabra bom

Barbara disse...

O aniversário da Jéssica deve ter sido bom, mas eu quero mais essa casa da foto, quero mais o Belém do Pará ou o Pará inteiro.
Que coisa mais bonita, ler teus "causos" é coisa boa, a gente viaja junto.