segunda-feira, 15 de junho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


24 - Amazônia

No clássico romance “A selva”, o português Ferreira de Castro afirma que o amazônida se contenta com pouco, o mínimo já “faz a Tróia dessa gente”. Por anos, tal sentença me doeu, como se, mais do que constatação sociológica, fosse quase uma leviandade de estilo, algo preconceituosa.

Oito décadas depois do livro, pesquisa do IGBE sobre Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) atesta que os 13 municípios da ilha do Marajó estão entre os mais pobres do Brasil. O governo do Estado encomenda, em seguida, uma pesquisa qualitativa em todos os 143 municípios paraenses, e 87% dos marajoaras se declaram felizes. O pior IDH do Pará é o mais feliz do Brasil.

Muito pouco “faz a Tróia dessa gente”, o Ferreira de Castro cutuca a minha cabeça, e há pelo menos duas razões básicas para esse “conformismo”: a convivência com a natureza e a herança índia.

Quem for a Barcarena pela Alça Viária se surpreenderá com o volume dos três rios transpostos pelas pontes estilizadas. O mesmo acontece na travessia para Colares, a água determinando todas as atividades, e a caminho de Soure ou Cotijuba. Imagine de um helicóptero ver a ilha do Marajó, um continente de 50 mil quilômetros quadrados; agora derrame tanta água no entorno dessa área que tudo se vá alagando, todas as partes baixas, formando outras ilhas gigantes, como Mosqueiro, desdobrando rios desmedidos, como o Pará, produzindo as únicas praias de água doce do globo.

O marajoara não tem só um contato profundo com a natureza; é unha e carne com essa água megalômana e fértil: vai, de canoa, da água doce para o alto mar, pescar, e, num bom barco a motor, navega como um prático o desmesurado mundo que tem por medula o rio Amazonas: os furos e rochas, os bancos de areia. Há essa realização no pescador marajoara, orgulho, auto-estima.

Uma integração com a natureza que guarda íntimas qualidades índias, até pela forma ancestral da pesca. Canoas, arpões, matapis, tucupis, palavras-objetos vivas, mais o amplo vocabulário-hábitos-sentimentos-sensações incorporado de vários dialetos indígenas. Uma relação de subsistência, sim, longe dos serviços públicos, mas com uma tranqüilizante perspectiva índia quanto à natureza e ao tempo. Entre as pessoas mais felizes do Brasil, escarneceria Ferreira de Castro, pode-se morrer de tédio, nunca de estresse.

Basta elencar alguns números da Amazônia para dimensionar perspectivas e dificuldades: concentra 20% da água doce do planeta, 20% das espécies de animais e 20% das vegetais; tolera alguns dos mais reacionários males sociais do Brasil, como o trabalho escravo e os assassinatos de encomenda por questões agrárias; é uma das três palavras mais faladas do mundo, cobiçada, estratégica; o Pará tem ferro para ser explorado por trezentos anos; menos de 4% dos paraenses acessam internet regularmente; o Estado abriga milhares de assentamentos rurais de complexa e demorada solução, além de um passivo ambiental literalmente devastador; e grande parte do povo enfrenta um dos piores IDHs do Brasil.

O mundo cobiça tanto a Amazônia (mesmo desconhecendo-a, como a maioria dos brasileiros) que ações de fato transformadoras começam a chegar à região.

Muitos países enriqueceram explorando, quase à extinção, os recursos naturais; o desafio da Amazônia é explorar sem destruir; o desafio é o desenvolvimento sustentável, mas quanto tempo demorará com tantos problemas a resolver, problemas que não começaram ontem, não acabarão amanhã? A resposta é de cada um, mas, sobretudo, dos governantes, nesse momento em que a História passa tão palpável à nossa frente.

Na era da comunicação, logo o menino de Afuá vai desejar o mesmo que o garoto de Londres; “a Tróia dessa gente” fica para além dos trapiches com nomes índios; não dá mais para viver de brisa.

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