quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Uma Casa Em Viagem: "Digressão do pensamento"

Uma Casa Em Viagem: "Digressão do pensamento"


lindolindo. dá para tocar o mistério, orvalho sideral do interior. nosso interior.

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


41 - A poesia do cotidiano

O professor Sérgio Antônio Sapucahy da Silva, que no Souza Franco chamávamos de maestro, puxa-me a orelha: “Não esqueça a poesia do cotidiano. Foi o melhor que a crônica nos deu”.

Penso logo em me defender, afinal a poesia do cotidiano já foi escrita e tenho obrigação de tentar outra coisa. Mas o puxão de orelha arde.

“Poesia do cotidiano. O que é, onde está?”

Vou aos livros: Drummond, Rubem Braga, Nelson Rodrigues; sim, mas, nas obras, como sabê-la? Seria a modulação das palavras? O humor? São as histórias, tipos imprevistos?

Drummond é o homem comum. Rubem Braga, o estilista que não tem pressa, mas nunca parece lento no espaço da crônica. Nelson Rodrigues: o épico no cotidiano.

O que têm em comum? Primeiro, a excelência da linguagem (literatura); também a originalidade e a intensidade imaginativa (Drummond publicou como crônica centenas de mini-contos); bem, como divisar, mesmo, essa tão específica poesia do cotidiano?

Não sou tão burro, só que não tenho a chave da questão. A questão! Que tal reformular: poesia “no” cotidiano?

A poesia, somente.

Volto aos livros: dentro do ônibus, Clarice Lispector descreve as peripécias de um sagüi (macaquinho) de forma tão vivaz que, de hora pra outra, somos arrebatados por um universo quase mágico, de carinho, de idealização, de imaginação: poesia. Drummond disse que sua melhor poesia virava poemas, já a melhor poesia de Rubem Braga virava crônica. Manuel Bandeira casou observação com palavras “brasileiras”, e suas crônicas, muitas vezes, rivalizam em sabor “modernista” com a poesia de Mário de Andrade. A poesia do cotidiano seria, então, apenas a poesia, a grande, a boçal poesia, descrita como “a mais difícil das artes”? (Distante de mim, portanto, escorraçado até do cotidiano.)

Mas, espera aí, não há desistir diante do primeiro estruturalista da linguagem: o que é, afinal, poesia?

Pra não criar confusão, vamos aceitar: a intensidade verbal é sua mais imediata prerrogativa. Quanto mais elaborada a linguagem, mais poesia; poesia, portanto, é palavra.

Poesia é também sentimento, emoção, revelação, e reside aí sua própria definição: deleite, encantatório, melancólico, “musical”. Sem emoção, portanto, a poesia de certa forma nega-se, tanto que João Cabral tornou-se único ao fazer justamente isso: despoetizou.

E o que dizer do pensamento? Como se explicar a Aristóteles, se, no poema, não resplender a reflexão, a visada ontológica do milagre do nosso drama? Não vou nem dizer “filosofia”, mas sem profundidade emocional não há mesmo poesia (circunstância que igualmente me tira do páreo).

Pensar, sentir, ter uma linguagem para expressar: eis a poesia do cotidiano? Espera aí, isso é uma crônica, não um poema. Onde é que o poema, digo, a poesia, em vez de virar um poemagrandearte, vira “poesiadocotidiano”: vira crônica?

Pound, mestre do Século XX, definiu o poema como “uma conversa inteligente com o leitor”. Arrisco que a crônica é uma conversa saborosa com o leitor.

Vejamos: a ambiência clássica está declarada, é o cotidiano, ou o que o cotidiano produz de raro: o dia-a-dia como diferenciador e norte de um gênero que se pretende à revelia de Fernando Pessoa: poesia que só se mostra ao olhar do cronista, prosa cujo maior esmero não é o enredo ou a forma, mas o sabor, culinária entre os ingredientes do cotidiano e os verbos. A “poesia do cotidiano” é a “poesia da crônica”: que só pode ser atingida pelo estar a crônica (ainda que o cronista seja poeta). Frases do sabor da rua, a inventalínguas.

E o “cotidiano interior”? E a as “questões do cotidiano”?

Bem, não sou mestre da literatura, de qualquer forma confio que a poesia pode estar ao lado de qualquer um: e até minhas não-crônicas se redimem na própria Belém, baía do esplendor amazônico, cicatrizes e nascentes, vazios estupendos e estupefatos em que a alma trabalha a travessia.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


40 - Bicicletas

Não sei se o leitor avistou um tipo de pessoa que aponta de bicicleta no alto das ladeiras, e desce sem controle, ganhando velocidade, até que bota o pé no asfalto e freia com a sola do sapato (ou do pé mesmo), e para a centímetros dos carros em disparada. Bicicleta completamente sem freio, adrenalina social.

Certa vez, um casal percorria a cidade nessa situação: a magrela não tinha freio, nem garupa: e a esposa do ciclista ia no varão, dificultando a necessidade de ele brecar com o pé: esporte urbano em dupla de alto risco sobre duas rodas. A Feira da 25 é point: os distintos curtindo a ladeira sem freio - as bicicletas a ponto de se desmancharem à frente dos carros -, tão acostumados que não se tem notícia de acidente.

Tenho cá minhas aventuras com bicicletas. Morávamos na Transamazônica e, para ganhar as primeiras bikes, eu (8 anos) e meu irmão Edinaldo (9 anos e meio) capinamos toda a roça de pimenta-do-reino (3 mil pés). As bicicletas que o pai deu como prêmio eram “semi-novas”, mas que festa! À época, nosso quintal prolongava-se na floresta, e a cidade próxima, Altamira, parecia mais distante que os 75 quilômetros de poeira. No isolamento, engatávamos a aventura de jogar bola nos vilarejos vizinhos (a 30 quilômetros), um time inteiro de bicicletas inverossímeis.

Tempos depois, em Castanhal, eu já com 16 anos, percorri de bike muito lugarejo, e jamais esquecerei o presente de minha irmã Beth: uma bicicleta de marchas - aquelas catracas e coroas especiais -, raríssima à época no município. Três meses depois, roubaram a jóia da frente de uma loja de discos, onde eu ouvia Lou Reed, Bob Dylan e Amado Batista.

Em Castanhal, também convivi de perto com a ciência de ter uma bicicleta aos pedaços. A catraca, por exemplo: as molas eram improvisadas com pedacinhos de sandália Havaianas; as agulhas e conexões se resolviam com arame de caderno escolar; já o freio (sim, o freio) funcionava com varetas em arame de construção civil. Um troço assim iria, de hora pra outra, deixar alguém na mão, ou na estrada, já que o futebol ainda nos levava longe; como socorro, o time tinha uma pequena caixa de ferramentas, com três chaves e apetrechos que não ouso discriminar.

Meses atrás, comprei uma bike incrementada, andei duas vezes, e fui alertado sobre assaltos em certos bairros - os que mais me interessavam. Presenteei a bicicleta, e me consola o fato de que o trânsito sobre duas rodas - sem freios - é perigoso como o dos carros. Pior é na estrada: quando ultrapassamos bicicletas sob as estrelas e começo a falar da infância, e minha esposa (implacável, criada em apartamento) finca o pé no acelerador, a praia já perto de mar doce.