terça-feira, 27 de julho de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Ator(es)

No entorno do Eu profundo
a máscara forma a máscara:
re’encontra um susto, uma lágrima,
certo amor astuto.
Tão próximos que o Eu fresta-se
ao olho do público.

Enceno-me e revelo
no espelho dessa verdade
que te revela e encena:
completos no tempo duplo,
vago, vagas,
sobre a técnica como um náufrago:
consumido e pleno,
ludo.


Lâmpaga

metapoeta
eu-universo que, à luz de um raio,
em si mesmo revela um planeta:
íntima e súbita região
só tocada pelas palavras


A imaginação e os cristais

Nossas células-tronco,
lago anterior à clara,
banharam milenarmente plácidas
as gradações de medula;
a imaginação eclodiu sobre as gemas
como se a água nos criasse
para ver-se.

O que meu corpo
sonha
agora?
Que fulgor se grota
ao leito túrgido
das simulações?
Quantas eras
até consumar-se, noutro demiurgo,
a palavra da qual apenas
sou uma existência?


terça-feira, 20 de julho de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"



É ele, o homem que saiu
à rua.
Nem atravessa o semáforo:
à frente estão os famintos.
Nem pode olhar pros lados,
espreitam-no os seriais e as tribunas.
E o homem não pode ficar parado,
cercam-no os corruptos e as crianças prostíbulas.


De que lado você está

Inacessível ilha, asa de sede,
ou o contrário, voo cercado de mar.
E também, por incompleta a asa,
o coração mutilado de um artista jovem.
Calidoscópio, palavra do que é livre.
À noite, às vezes, o infinito ficava tão lindo
que o podíamos visitar;
era, no entanto, a Poesia
e a própria palavra a negaria.

Banalizamos o que vivemos;
acostumamos, matamos, morremos;
o tempo em nós é certo como no eclipse.

Matei quando, a poesia?
Há beleza nas cidades,
mas a abstração envolve-a de tédio
sem vivê-la;
há pontes estendidas nos sonares,
mas o real é uma sucessão de viadutos;
então, nos cais e trapiches,
o delfim de chapéu declama às moças.

Toda normalidade é gris,
mais quando a barba desilude-se
de manhã;
perpasso ruas cansadas
no diazinho eterno,
rumo ao horizonte pôr-de-sol;
(num lampejo, topei com sereias
e extraterrenas
e pensei que eram sentidos novos
que o próprio corpo
acrescentava aos sentidos);
se chover, a melancolia trará à superfície
as rachaduras das águas
e nas súbitas locas do ar
a poesia permanecerá um pouco,
como as pessoas.

E a plenos becos, mas impávida,
a contemplatividade lembrará
que o sentido da vida é o lado de que estamos,
nesta temporada de objetivos idiotas:
apenas isto, o lado de que estamos:
aceitar ou não ser vulgar.

A chuva chega, com ruflos de ilha.
Migrarei como a crista de um veleiro.
Metáforas desabam raias,
engulo o canto do coração impulsivo.
E ao menos recupero, inenarrável,
um tempo saciado de inacessível.


Manhãs

Somos só a cantata cardeal,
cabala em seda ao tato do menino.
O tempo é simples e belo. Graal
é o mar com seu fole violino.

Somos só o café mais quentinho, a mãe
ficando para trás até o final.
A juventude de cheiros mamíferos
nas orquídeas ferroadas do quintal.

A luz transporta sua tapeçaria
e resta a fábula das sete vidas.
Relógio cuco das idéias rotas.

Somos só as varandas ressequidas,
o saleiro do sol sobre o fastio.
As mãos da avó abertas nas papoulas.

terça-feira, 13 de julho de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Tempo ditado

Livro-solo
e solar;
faço o parto da terra:
flor;
na minha filha
a água mina.


À Neoma



Os binôminos

O tempo somos nós.
Cada homem, feixe de tempo
tecido a outro -
tempo passado
de pai para filho -
cultura de tempo
em frascos,
hordas em ondas migrando -
futuro que é pretérito,
presente que virá;
o espaço somos nós -
impassivados, ignorados, desastrados
pelo tempo inexorável,
tempo que o espaço reproduz,
insaciável do próprio infinito.



Outra mudança

Proceder à transformação
é suportá-la.
Morarei num lugar
que ainda não conheço:
eis a primeira dor da vida;
e sua dádiva, sobre
todas, revelação.
Ao despedir-me
deste apartamento,
nos tornaremos irredutíveis;
mas não como nostalgia
às descobertas -
pela vida vivida;
a memória é a densidade
em cuja duração
o tempo é quase um amigo.


Março de 2005

segunda-feira, 5 de julho de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Tudo o que sobrevive foge, verso
contraverso da natureza havida
em clara, que mina ao reverso
para, morte em lua, repontar-se à vida.

Se sobrevive, foge a sol inverso
num pêndulo de messe inconsentida;
pêndulo de si mesmo, nem o universo
paralisou em si sua saída.

Se sobrevivo, fujo, fendo o real
e a vertigem tange em timbreastral:
chamas graxas roxas no eixo do dia.

O universo chega - expande-se, explode
gerando estrelas sobre o vácuo em ode.
Só forjo em jorro, trânsfuga poesia.



Panfleto gotejante

O que explodia,
há bilhões de anos?

Galáxias em clara
de fogo
e ninguém para encerrar um universo
e inaugurar outro;
ninguém para sonhar o poema da água,
odisséia carbonária e sílabas libélulas.

Hoje, dois mil e três, 2003,
sonho que um dia, ao continuarmos a água
com improváveis matemáquinas,
uma haverá para o passado
na qual voltaremos
através das eras,
olho de poeta
contemplando o tempo
até gerar-se de novo
o primeiro incêndio;

sonho, pois o poema da água
encerramos.




Concebi no rio o poema
e escrevi-o com as pontas das mãos -
nascimento para a água.
Agora,
nessa beira de mar
no Pará
que não é de areia
mas de barro,
surge uma espécie nova
de líquen:
e contemplo na concha dos dedos
minha palavra ainda sem nome.