sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Poemas do livro "Do real imaginado"


Alumbramento

O universo se aninha
à minha filha
que ainda não nasceu.
Dar-lhe um nome
é gerar nos feixes amnióticos
o espaço paralelo
dos símbolos.
Palavra-genética
como o liquor da biosfera
e o colostro da Via Láctea,
que não eu, mas a mãe
(condão de verbo
sobre todas as coisas)
deve amar
até pronunciar.

Dualistas

há fúrias que seqüelam a vontade
mesmo do mar; ignaro, sanho e estrujo,
arrebento-me ao meu tempesto jade
e contra mim descanso a tempestade
e parto em mim o polvo-subterfujo;
sou, sem saber, o mar e o marujo;
sempre em turvas fraturas, a verdade,
e tanto mais valente, inda mais fujo
e tanto mais covarde, inda mais rujo,
minha vítima própria em dualdade;

sonhei-me um mar com foz: em caramujo
: afloro a fundo a íntima metade


A imaginação e os cristais

Nossas células-tronco,
lago anterior à clara,
banharam milenarmente plácidas
as gradações de medula;
a imaginação eclodiu sobre as gemas
como se a água nos criasse
para ver-se.

O que meu corpo
sonha
agora?
Que fulgor se grota
ao leito túrgido
das simulações?
Quantas eras
até consumar-se, noutro demiurgo,
a palavra da qual apenas

sou uma existência?



Brinquedos

Não estava acostumado
com televisão,
e o Falco foi massificado:
um precursor do Rambo.

Desembrulhado, porém,
o herói era estático
como plástico
e o menino sofreu
de publicidade.

II

A boneca
ou o Soldadinho de Chumbo
têm que realidade,
agora que só os lembramos?

Que palavra de verdade
dizer ao Saci de pano
com quem numa gaveta
topamos?

III

Primeiro, sente o cheiro
da caixa: patchouli
envelhecido.
Retira a Emília de pano,
e cuidadosamente
absorta
lava-a: corrige cada
pequeno furo
ou imperfeição:
perfuma-lhe
e enlaça o cabelo.
Quando era criança,
falava mais que a boneca;
hoje, apenas chora,
chora, chora cuidadosamente,
e a Emília de novo lhe sorri.

Transamazônica

Nem fotografia tenho
do lugar onde a infância
floresceu e passou;
certa vez,
já vinte anos depois,
estive às pressas,
trabalhando,
numa cidade próxima:
a setenta quilômetros
de minhas lembranças,
e não as conheci.

Hoje, que chove, e a palavra
(espaço sem tempo)
torna, de fato, una
a estrada que me criou
e a que me reconciliaria,
levanto na memória
(tempo sem espaço)
esta poeira-poema;
e a seiva, finalmente, dos olhos
se assenta como um cristal.

Edson Coelho de Oliveira

henry burnett/entrevista

Entrevista feita por e-mail com o cantor e compositor paraense Henry Burnett, que atualmente é professor de filosofia em São Paulo. Estudioso de música, o artista utiliza o cabedal teórico (é doutor em filosofia) e prático para traçar interessantes análises da música brasileira de ontem, hoje e sempre. Vale conferir.


1 - A MPB está jogando sua tradição na lixeira ou o que de fato é bom não aparece na mídia?
Henry Burnett - A MPB mudou, se metamorfoseou, já não representa apenas um estilo musical como era há algumas décadas. Quando pensávamos em MPB, os nomes canônicos eram imediatamente lembrados (Tom, Chico, Caetano, Djavan, Gil etc.). Hoje é preciso incluir nomes e estilos diferenciados e, às vezes, antagônicos. Mas tem o lado paradoxal disso: quando o ouvinte médio pensa na sigla como um estilo, como sinônimo da tradição da canção popular, ele ainda pensa nos nomes de Caetano e Chico, o que é ainda pior, pois gera essa aparente impressão de crise da criação em música popular. Como se não houvesse novos poetas-cantores, o que é um equívoco.

Eu não sei se tudo isso relativiza positivamente nosso cânone, o que acho é que está diretamente ligado com dois fatores: a indústria cultural e a globalização. Se você ligar a MTV em qualquer país do mundo, verá as bandas mais importantes do pop mundial geradas a partir do modelo global, que são as bandas da MTV americana, dos EUA; e aí a grande questão: as bandas dos mais diversos países são iguais às do modelo, portanto não se pode utilizar apenas dos meios de comunicação de massa para saber o que de fato se passa no interior das culturas mundo afora, porque a globalização acabou com qualquer vínculo entre boa música e indústria cultural. Ainda assisti a um programa semanal chamado Chico & Caetano; imagina agora hipoteticamente um programa similar, com os grandes músicos do mundo inteiro convidados, sábado à tarde, chamado, por exemplo, Lenine & D2! Impossível, não? Bom, o D2 tocou no encerramento do Big Brother, cena difícil de imaginar se ele ainda fosse do Planet Hemp. Basta pensar que um artista como Chico Buarque talvez fosse desconsiderado se estivesse sendo lançado hoje, como de fato acontece com a sua produção mais nova, a despeito de toda a badalação que rola quando ele vai gravar. Ele mesmo declarou isso na Folha de São Paulo, que ninguém quer saber o que ele está fazendo, só querem comprar a caixa com a “obra completa”, ou seja, os discos antigos.

De fato, o que é bom não aparece na mídia. Lenine é uma rara exceção, mas pergunte na rua se alguém sabe quem é - é possível que pouca gente tenha ouvido falar, porque a pulverização absurda que aconteceu na última década modificou toda a estrutura de criação e distribuição. A saída ainda é um mistério, e nem sei se há saída. A resposta mais imediata são os independentes, eles ditam os rumos agora, o que torna o Lobão quase um profeta. Ele chamou atenção pra isso há muito tempo, que o funcionamento da indústria fonográfica ia implodir; pois implodiu!

2 - Como você analisaria essa relação inevitável da música com a indústria cultural (rádio e televisão)?
Já disseste que é inevitável... bem, acho que o século XX é tanto o século das grandes conquistas da humanidade no campo técnico como, a reboque dessas conquistas, o da consolidação da decadência geral antevista por um autor como Nietzsche; nós somos o produto mais bem acabado da degradação de valores, dessa vida moderna medíocre, do tal niilismo que Nietzsche caracterizou com tanta propriedade, incluindo-se na esfera dos decadentes e criando uma obra central – até hoje – para a interpretação da modernidade.

Sua obra estética ainda tem grande força. Não adianta tentar justificar a mudança de
paradigmas e as transformações da arte, me parece que há pouca coisa a fazer num campo como o da canção popular hoje em dia.

Os mass-media, os meios de comunicação de massa, sempre foram um produto do próprio capitalismo, portanto, não se poderia esperar deles conivência com o prejuízo, quer dizer, não combina indústria cultural e boa música, principalmente a que não vende, ainda que nós tenhamos projetado os maiores cancionistas no interior da propagação televisiva da década de 1960, eis aí a grande questão diferencial da canção popular no Brasil, só aqui e em alguns poucos casos isolados – como Bob Dylan nos EUA, Léo Ferre e Brassens na França, Neil Young no Canadá – ela tem esse estatuto de grande arte, e essa coisa de ter nascido dentro dos mass-media.

Como depreciar um Djavan, que tem tanta entrada na mídia? E como entender que uma multidão de adolescentes cante versos como: “Por onde vou guiar o olhar que não enxerga mais/ dá-me luz, deus do tempo/ neste momento menor/ pra eu saber teu redor”. Isso é “Horizonte distante”, do Marcelo Camelo. Não dá pra ignorar essa interpenetração positiva da música com a indústria e é preciso pensar no valor de uma banda como os Los Hermanos para a própria história da canção no Brasil. Pouca gente da geração deles escreve tão bem. A música popular no Brasil tem um problema para quem se mete a fazê-la: ela é reduto de não-músicos, de diletantes na maioria, mas de poetas da palavra cantada em seu mais alto padrão.

Isso gerou, dentro do Rock, por exemplo, caras como Renato Russo, Cazuza e agora um Marcelo Camelo e um Rodrigo Amarante, que a gente fica tentando classificar, se é MPB, se é Rock, essa cagação toda; vamos ouvir um disco como “4”, só isso. Mas arrisco dizer que, num futuro próximo, eles serão muito representativos dentro do estilo canção no Brasil.

Agora você vê, não é fácil fazer música popular nesse país; um cara estuda música nos EUA por anos, volta ao Brasil e escreve musica com extrema competência técnica, revestida de altas doses de modernidade eletrônica e harmônica, como faz o Jairzinho, e só conseguir a pecha de chato, como a gente ouve tanto de outros músicos sobre ele (em off claro). A tradição exerce um peso histórico imenso sobre as gerações novas. Só se salva ou se afirma quem dialoga com esse passado, mesmo que para combatê-lo, como o Marcelo D2, que nega o passado cantando samba.

E você tem o “caso” Maria Rita. Digo caso porque o que se cita quase sempre é que ela é filha da Elis, e tem essa coisa necrológica em cima dela, de que ela é a sombra da mãe. Claro que tem uma utilização dessa condição de filha, mas ela canta muito, fico impressionado, ainda que eu ache que ela optou por um caminho um tanto quanto conservador na concepção musical geral dos discos; mas é lindo mesmo assim. Quero dizer que não basta ser filha da Elis pra ser a Maria Rita, é preciso ser antes ela mesma.

3 - Chico Buarque disse, há alguns meses, que, nessa onde de regravações, o mercado não se interessa nem pelo que ele faz de novo, imagina os novos compositores. Como você vê este processo?

Não há de fato interesse nenhum por parte do grande público por um compositor de canções que venha na esteira de um Chico Buarque, as novas gerações jamais terão um ídolo com essa consistência na mídia. Mas por quê? Porque ele é único e insubstituível? Sim, é! Mas não só por isso, porque ele é um mito de verdade, se é que isso existe.
Porque um crítico como o Pedro Alexandre Sanches (http://pedroalexandresanches.blogspot.com/) afirmaria que vê num Vítor Ramil a evolução do Caetano, quer dizer, se o Caetano tivesse seguido a trilha ascendente que, supostamente, pára em "Circuladô", de 1992 (isso é bem polêmico, ainda mais depois do “Cê”)? Simples: porque o Ramil é tão talentoso quanto o Caetano? Eu acho que sim, mas você acha que não! Beleza. Eu acho muito perigosa essa mitificação do passado. Mas o Ramil é um poeta dos melhores. Note que o Caetano que está aí, vivinho da silva, é execrado hoje em dia, pouca gente dessa moçada nova suporta ouvi-lo mais (ainda que o “Cê” esteja abrindo a guarda da moçada), mas ele é um mito, um medalhão; me lembro com muita clareza do momento em que ele tinha um papel central para os jovens, era um modelo. Olha, vou te dar uma declaração: eu só faço música porque um dia eu conheci a obra do Caetano, não posso negar isso, nasci da audição das canções dele. Até hoje, não tenho muito senso crítico em relação à obra dele. Voltando: a impressão que tenho é que a posição que o Ramil (não) ocupa hoje no mercado fonográfico está diretamente ligada com o momento histórico, com a indústria cultural e a globalização de que eu já falei, só isso. Os compositores existem, mas não há nenhum interesse em investir neles, paciência.


4 - O escritor chileno Antônio Skarmeta disse, recentemente, que a grande contribuição do Brasil para a arte mundial do Século XX foi unir, no “segmento” popular, poesia de verdade e música de qualidade. Como você vê este binômio música/ poesia hoje?

Eu não conheço toda a tradição cancionista mundial, mas podemos tomar a declaração de uma cara como o Skarmeta como uma afirmação séria. Mas não precisamos ir longe, no livro Zé Miguel Wisnik, Sem Receita (2004), você encontra essa especificidade da canção brasileira muito seriamente discutida, acho que o ensaio se chama “Global e mundial”. Ele mostra a ligação da canção com a poesia culta, quer dizer, da grande poesia de Drummond, Bandeira e João Cabral, e principalmente a expressão de pensamentos que atingem a estatura de uma Sociologia às avessas.

O exemplo da canção "A Terceira Margem do Rio", do Caetano e do Milton, é muito significativo; dois cantores populares interpretando o maior escritor da língua portuguesa, o Guimarães Rosa, numa canção. Ele chama de “a gaia ciência” o saber que emana das canções no Brasil, numa referência ao livro homônimo de Nietzsche, ele diz assim: “A singularidade da canção popular brasileira tem nesse exemplo [a canção do Caetano e do Milton, CD "Circuladô", 1992] a demonstração de uma de suas conseqüências inusitadas: em que cultura, ou em que país, pode-se perguntar, o cancionista popular chega a ser o sujeito de uma interpretação vertical de seu maior escritor [Guimarães Rosa]?”. A letra do Caetano Veloso, escrita sobre a música de Milton Nascimento, versa sobre um dos contos mais conhecidos de Guimarães Rosa, homônimo da canção, e que faz parte do livro Primeiras estórias.

É de fato uma coisa ímpar. Não é à toa que um cara como o poeta Bruno Tolentino, que passou muitos anos longe do Brasil, tenha voltado e ficado puto de ver letras de música do Caetano nas provas de vestibular, ou seja, ele não entendeu nada e atacou às cegas a “pobreza” do Brasil perto da Europa. Dizer o quê? Eu só acho importante fugir um pouco da dupla Chico e Caetano, buscar os outros autores e escrever sobre eles, deixar de incensar esses caras. Ainda que não se perca de vista que é neles que a ligação entre a música e a poesia se dá no seu plano mais alto, ainda que eles sejam antípodas.

5 - Você faz pós-doutorado sobre cultura brasileira. Como é a relação do teórico com o criador (o compositor e letrista)?

Não é exatamente sobre cultura brasileira, a não ser que você entenda a canção (como eu entendo) como um domínio da cultura. A pesquisa é sobre os efeitos da indústria cultural sobre a canção popular no Brasil, uma coisa difícil de tratar, um trabalho muito exaustivo, porque ao mesmo tempo em que estão acontecendo as coisas nessa área, eu já estou escrevendo sobre elas, é uma coisa meio às cegas, por isso também o formato do ensaio foi escolhido, porque eu posso exercer essa liberdade de pensar sobre coisas que estão muito próximas da minha vida, ao mesmo tempo em que consigo manter o rigor necessário que uma pesquisa exige.

Agora, a composição de canções e o trabalho teórico – principalmente esse mais ensaístico – são igualmente criações. Mas tenho quase certeza de que vêm de lugares diferentes da cabeça. Eu não consigo compor sem que isto esteja ligado com a minha vida, ou melhor, minhas músicas são a extensão da minha vida, assim mesmo, o que não é nada profissional; eu não sei o que faria com uma encomenda de uma trilha sonora, por exemplo. Já os meus textos teóricos são meu ganha-pão, meu trabalho cotidiano, minha labuta. Resolvi em Belém que ia estudar Filosofia para preservar a música que eu queria fazer. Mas como eu sou Hedonista, tenho um prazer imenso nas duas coisas, eu direcionei minha vida para que fosse assim. Quando não estou lendo e escrevendo sobre música, pego o violão e faço canções. Com a cabeça ou com o corpo, estou sempre ligado ao mundo pela música. Quero fazer isso pra sempre.

6 - Você já tem quase vinte anos de estrada. Lançou um CD quando estava no início da carreira, e, no final de 2006, o segundo, “Não para magoar”. Como anda este processo? E como você definiria seu trabalho musical?

É engraçado lembrar isso, 20 anos! É um fato que eu não processo direito, porque passa muito rápido e eu sempre acho que ainda não fiz nada. O primeiro CD ao qual você se refere se chama “Linhas urbanas” e foi lançado, se não me engano, em 1996. Quando eu penso nele não posso deixar de me lembrar do primeiro livro do Nietzsche, O nascimento da tragédia, livro que ele passou o resto da vida negando, revisando, mas que continha um dos momentos mais intensos do seu pensamento. Fora a abissal diferença entre as obras, eu penso que estou naquele disco, sou eu, muito jovem, inexperiente, sem saber nada, mas querendo fazer de qualquer jeito; foi ótimo tê-lo feito, porque quase 10 anos depois eu ainda me sinto imaturo pra fazer outro, o que significa que eu amadureci. Acho que vou revisá-lo sempre, quem sabe eu atinjo o equilíbrio entre minha falta de talento e o meu amor pela música.

Faz algum tempo que o exercício da composição pra mim é mais importante que assinar um contrato, que viver na estrada tocando, embora eu goste muito de fazer isso e não me negasse a fazer, muito pelo contrário, eu talvez largasse tudo por isso. Mas como eu já disse, eu não consigo compor nada sem que esteja ligado com minha vida, o que mostra minha superficialidade como artista. Eu sou o que são as canções, sem mais nem menos. Mesmo quando o texto não é meu, é uma sensação melódica minha. Como acontece com teus poemas musicados por mim. Eu, sinceramente, não sei se sou bom compositor; fui subestimado a vida toda por alguns músicos, elogiado por outros, então não sei mesmo se tem algum valor o que faço, tenho uma insegurança enorme sobre isso. Mas sei que não sou nenhum talento nato.

Quanto aos planos, tenho hoje algo em torno de 50 canções graváveis, e quando digo isso penso nas que podem resistir ao tempo, sobreviver a mim. Então gravei 12 dessas canções num CD simples, fazendo o que eu acho que faço melhor: me acompanhar ao violão junto com os meus amigos, esses, sim, uns puta músicos: Renato Torres, Maurício Panzera, Artur Alves, Príamo Brandão, Charles Matos, Iva Rothe, Márcio Jardim. E programo, provavelmente ainda em 2007, um CD junto com a Florencia Bernales, argentina que esteve em Belém comigo, que é uma cantora muito emotiva e melancólica, e com quem tenho profunda afinidade. Meu CD solo é bem autoral, meu lado escritor e melodista; com ela eu pretendo fazer um CD com as nossas parcerias, minhas e tuas, possivelmente gravado entre Belém e Buenos Aires. Tem ainda um projeto de gravar minhas parcerias com o Renato, num esquema acústico de voz e violão, que é o que nos encerra de fato. Não precisa mais.


7 - Para além da filosofia (da informação), em que morar em São Paulo e Rio de
Janeiro influenciaram sua música?

Diretamente, em nada. O que eu passei a ouvir depois de mudar para cá não se distanciou do que eu já ouvia e que me emocionava e tocava profundamente quando morava em Belém. Claro que eu ouvi muita coisa depois de mudar, mas não tem a ver com o fato de estar nesse tão falado eixo Rio-São Paulo. O que mudou foi que eu passei a ver como eles aqui olham para o Norte, para a música do Norte. Às vezes mal sabem diferenciar Norte e Nordeste. O Lúcio Ribeiro, da Folha de São Paulo, que é super-“antenado”, depois de viajar para o Pará às custas do Governo do Estado saiu com essa: “Algodoal recentemente recebeu luz elétrica, mas parece uma Ibiza nordestina”.

Mas isso dá bem a medida desse “olhar-sudeste”, o repórter é um cara que escreve sobre música eletrônica e tal. Está na Folha (que se arvora a ser o melhor e maior jornal do País) e o sujeito tem essa capacidade de desconhecer a própria especificidade de cada parte do país, escreve umas bobagens de efeito porque acha que ninguém vai sacar?
Admiro a força de vontade que, por exemplo, o Ney Messias teve na condução da Funtelpa (Fundação de Telecomunicações do Pará, que promoveu o festival em Algodoal), mas aí precisamos estar prontos para o confronto, como diria o Ernani (Chaves, professor de filosofia da UFPA) “etnocêntrico” dos nossos amigos do Sudeste, que não sabem diferenciar Belém de São Luís! Lembro que o Ney me fez uma pergunta no programa "In Concert", que era mais ou menos assim: se eu não achava que o futuro da música paraense estava na fusão dos ritmos folclóricos, típicos, com a música eletrônica. Eu disse que não.

Antes de colocar uns loops em cima dos curimbós, eu preciso entender o que isso acrescenta ao que já é bom e intenso, para não ser apenas uma “atualização”. Outra coisa é usar a música eletrônica num trabalho como o do Clepsidra, que exige os ruídos porque foi pensado para interagir com eles. É igual um DJ das bandas de cá que faz uma coisa chamada “MPB para dançar”, pega o Tom Jobim e enfia umas batidas eletrônicas em cima, um cocô, um desserviço. O futuro da música paraense está vivo nas pessoas que fazem música na cidade, sem se preocupar em agradar e querer parecer moderno. Eu só queria que os projetos oficiais descentralizassem, ampliando a imagem da música paraense para além dos nomes estabelecidos.

Pra finalizar: hoje eu diria que morei no Rio (até o final de 2006) porque minha música se nutre da decadência, e no Rio gente vê isso no dia-a-dia. A decadência é um dos lados da condição de “cidade maravilhosa”. Agora São Paulo, onde vivo, outro grande centro de excelência e decadência.


8 - Quem você destacaria entre os novos compositores, surgidos nos últimos seis, sete anos?

Muito difícil, por causa da fragmentação e da dificuldade de encontrar os caras novos, além do mais não esqueça que o tempo de maturação atual de um compositor se conta em décadas; o Lenine surgiu há uma década para o grande público, mas faz o som dele há muito mais tempo, mais de 20 anos tocando no circuito underground do Rio. Mas eu destacaria o Camelo e o Amarante, o Junio Barreto, o Totonho, acho que ainda dá pra incluir o Vítor Ramil, apesar de já rodar há décadas pelo país. Tem muita gente boa fazendo música, como nunca antes. É ruim ter que citar.

9 - Você mora longe, mas sempre vem a Belém e mantém contato com os compositores paraenses. Como vê a chamada MPP hoje?

Eu saí de Belém a primeira vez com 27 anos, um bicho do mato, mas quando eu piso aí enraíza imediatamente e eu nem precisaria voltar mais, poderia ficar em Belém para sempre. Mas sei que não posso fazer isso por enquanto, seria ingênuo e eu não faria as coisas que quero fazer justamente quando resolvi sair daí. Mas tenho grandes amigos na chamada MPP (não muitos). Eu acho que a maioria da MPP é auto-referente, e isso sempre me incomodou. Eu não posso entender, e me forço a fazer isso às vezes, por que “Belém, Pará, Brasil” é uma canção reverenciada. Essa canção é péssima, cheia de clichês e bobagens (se eu estiver errado, me corrija); e o que é pior: é mal utilizada. Lembro o dia em que os trios baianos cruzavam a avenida, acho que a Doca, e no meio de uma micareta prestou-se uma “homenagem” ao Pará. O trio parou em frente ao palanque do prefeito e cantaram essa música, quando o trio passou “voltaram” para a Bahia; puta que pariu, que tristeza, se eu fosse o Edmar teria vergonha desse momento deprimente. Mas é simbólico.

Um dia ainda quero perguntar isso a ele, que sempre me pareceu um cara inteligente e
esclarecido, o que ele acha “extra-oficialmente” disso tudo. A impressão que dá, olhando de fora, é que a canção dele foi cooptada no interior dessa ligação cara entre o Estado e a cultura em Belém. Ligação que envolve a todos, indiscriminadamente. Por necessidade, muitas vezes.

Quem teve força para se impor diante do comércio musical baiano foi o movimento brega, que tem na banda Calypso seu grande trunfo nesse momento. Sem falar nos caras do brega mais clássico, o Anormal do Brega, o Wanderley Andrade, esses caras todos. E tem os meus favoritos, do “flash brega”: Mauro Cotta, Alípio Martins, Haroldo Reis, Edson Coelho!!!!! Como esquecer o melô do chá-la-lá? Eles são a produção comercial mais competente do Pará, agora claro que vem outro equívoco a reboque: sentir “orgulho de ser paraense” porque a Joelma e o Chimbinha vão ao Sabadaço da Bandeirantes é triste. O que eu achava o grande barato do brega era justamente a auto-ironia, eles riam de si mesmos, se divertiam e se sacaneavam, alguns ainda fazem. Agora eles são os representantes musicais do Estado, né? Deixa eu ficar quieto antes de me chamem de reacionário e chato.

Imaginar que o Calypso e o Wanderley Andrade nos representam musicalmente no lugar do Ronaldo Silva e do Waldemar Henrique é o mesmo que imaginar que o Asa de Águia e a Ivete Sangalo representam a Bahia no lugar dos Novos Baianos e do Dorival Caymmi, basta ter o mínimo de acuidade pra perceber – sentir? – isso. Um equívoco caro pra todo mundo. E se você critica isso, ainda pode levar a pecha de conservador. Mas tudo porque temos aquele problema triste: não se pode criticar o Pará, falar mal do povo que joga lixo na rua e emporcalha a cidade, da política tacanha, do nosso provincianismo cultural, porque aí somos traidores, inimigos do Pará. Tudo fica na mesma, diante do inevitável: não conseguimos nos auto-imolar em nome da nossa mudança. Claro que todos fazem parte do que somos, tanto o Chimbinha quanto o Walter Freitas. É uma pena que os limites sejam cada vez mais frágeis.

Mas tem uma turma nova fazendo música que é impressionante. Quando fui com o Clepsidra participar do Festival de Verão da Funtelpa em Algodoal, vi o pessoal novo e a guinada que eles deram, me senti um veterano, um tio... O rock sempre foi impressionantemente forte em Belém, o Ná Figueredo é um cara super importante, ele tem uma percepção maravilhosa das coisas de Belém que não cabem na propaganda da Paratur! Ele apóia a boa música há muito tempo. Essas bandas novas chamam atenção no Brasil inteiro, isso é muito bom. Não vou criticar a visão antropológica que o Hermano Vianna aplica quando destaca o tecnobrega etc., ele acha que é preciso entender o movimento brega; bem, eu achava que entendia desde criança quando aprendi a dançar nas festas em Santo Antônio do Tauá, e não acho que se possam apreender essas coisas intelectualmente apenas, isso é vida. Acho que ele e outros caras daqui têm um deslumbramento cego pela Amazônia, e agora incensam o tecnobrega de uma forma estranha, que mais parece falta de opção.

Mas hoje, repito, é preciso entender e respeitar tudo, mesmo que seja ruim. Eu me divirto ouvindo brega, canto aqui nos botecos o "Rupinol", mas quando vi a Joelma na Bandeirantes, pensei: o povo do Pará deve estar orgulhoso agora, será que eu não estou entendendo o que é o Calypso, será que a Regina Casé está certa quando fala naquele quadro do "Fantástico" que nós temos preconceito com a música da periferia, é ali que vive a verdadeira música popular? Eu acho que não se pode achar que é bom e respeitar porque foi nascido do povo. O samba também foi e é sublime em muitos momentos. Tem alguma coisa que não encaixa aí.

10 - O grande problema dos jovens artistas hoje (de qualquer gênero) seria furar o bloqueio imposto pelo mercado? Como fazer isso sem, de alguma forma, bancar um "jabá" para os veículos?

A produção independente é a fatia mais forte da indústria fonográfica hoje em dia. Ela já furou o bloqueio do mercado. Até um Djavan hoje é independente. Isso só vai crescer, enquanto isso a indústria fonográfica pega uma cantora da pesada e transforma na Ana Carolina. Não condeno a moça, deve ser legal ganhar dinheiro às turras. Cada um faz o que pode e o que sabe. A Mônica Salmaso, por exemplo, faz o que sabe.


11 - Nas décadas de 60 e 70, sobretudo, a música brasileira era ao mesmo muito criativa, arte de fato, e também "popular". O que houve?

Ela ainda é arte de fato, e ainda é popular. Insisto que esse passadismo não se fundamenta em nada, apenas na impossibilidade de se ouvir o novo. Ouça o Junio Barreto, é um cara muito bom. Sabe o que eu acho, que as pessoas não têm aquele tempo do ócio mais, então não conseguem sentar e ouvir música. É triste, mas o Adorno dizia que a indústria cultural operava uma coisa chamada “regressão da audição”. O ouvinte recebia a música, reconhecia imediatamente tudo, ou seja, não ligava para nada novo, decorava e saía cantando. Com o tempo, tornava-se impossível para esse ouvinte gostar de qualquer coisa que ele não pudesse relacionar com outra que ele já tivesse ouvido; eis o ouvido regredido (estou fazendo um resumo tosco de um tema difícil de um dos maiores filósofos do século XX). Estamos no auge dessa incapacidade auditiva.

12 - Onde se podem ouvir algumas de suas músicas (internet)?
Eu deixei algumas faixas disponíveis no meu blog (http://henryburnett.blogspot.com), dá para ouvir e baixar. O CD “Não para magoar” pode ser adquirido pelo endereço eletrônico
www.ladodedentro.com.br.

13 - Já se disse que o Brasil não é um país de escritores (a despeito de Machado de Assis, Haroldo de Campos e Guimarães Rosa) e sim de música, música popular. Você concorda? E o que se está fazendo com essa nossa maior característica cultural? Os governos (Ministério da Cultura, secretarias estaduais e municipais de cultura) não teriam que interferir para garantir a continuação/evolução do processo?

Quem disse isso? É um absurdo, né? O primeiro livro que eu li foi “Cadeira de balanço”, do Drummond, roubado da estante da minha tia Lucy, na casa da Padre Eutíquio. Não parei mais, vira obsessão. Com a poesia, não, posso dizer sem vergonha que só me senti apto para a poesia aos 30 anos, foi quando consegui entrar no negócio, claro que não parei mais e hoje leio mais poesia que prosa.

Mas é verdade que a música popular no Brasil é uma coisa muito grande, muito importante, em que país cantores populares dão origem a tantos estudos acadêmicos como aqui? Ter mitos da cultura na música popular é impressionante. Você fala de Chico e de Bandeira com a mesma proporção, naturalmente, ainda que muita gente ache o Chico menor; bem, também há quem ache o Bandeira menor também, ele mesmo, não? É a prova de que nunca se deve ouvir o próprio autor a respeito de sua obra.

Antônio Moura chega à existência

O melhor de “Dez”, primeiro livro de Antônio Moura (1998), é o explosivo poder de palavra; no segundo, “Hong Kong e outros poemas”, esta voltagem verbal atingiu de tal forma o “poético” que produziu momentos antológicos na contemporaneidade brasileira (“Almoço na relva”, “Numa estação do metrô”); em “Rio Silêncio”, lançado quinta-feira passada em Belém, a palavra, por assim dizer, dá lugar ao pensamento e Antônio não só se confirma um autor raro, como inaugura em si outro poeta.

A mais imediata distinção entre prosa e poesia é a potência verbal. Em seus dois primeiros livros, Antônio foi poeta por excelência. É como se a musa entregasse o mesmo poema, pronto, a muitos bardos e ele fosse um dos poucos a dar-lhe uma última limada: “Casulo sonoro/desenclausurado/para teu olvido”; “a noite ostra//cobrindo de fina camada branca/a cama da branca/ninfo-suicida//ornando/(flores de gelo) de branco a branca/ante-sala da morte”.

Falar num poema só de medulas é dizer primeiro Mallarmé. Nunca cada sufixo, cada radical, cada letra espaçada foi tão importante numa obra. Mallarmé é de fato uma matriz à qual nenhum poeta moderno está infenso. Antônio Moura é mallarmaico sobretudo no sentido em que, em dois livros, a própria palavra foi o centro de sua poesia. Não é exagero afirmar que atingiu pelo menos dois dos mais intensos momentos de palavra das letras brasileiras: “Onde a voz é tão soprana que/sua ponta de diamante trinca/o céu”; e

“uma gota de ave

- excremento -

abre n’água
círc círculos
concêntricos”

Em “Rio Silêncio”, esta potência verbal foi tão contida que, quando irrompe, parece uma concessão do poeta: “seu hálito [do Crepusculu] refundindo, nas cinzas, um pássaro de carvão/que levanta vôo com duas brasas encravadas,/o sol e a lua, em cada uma das asas”. No terceiro livro de Antônio Moura, o auto-deleite da inteligência cede lugar aos riscos do pensamento, da erudição. Antônio agora penetra, conscientemente, em todos os temas essenciais do homem. A morte (“Quando a luz cegar o seu fio/de navalha que corta tudo em/claro e escuro...”;), o tempo (“Quando um destes tempos frios passar por ti,/ou por ele, pássaro, passares, pressente a morte,/que naturalmente não cessa”), a transitoriedade da vida (“A juventude – um temporal”), o milagre e o mistério de existir (“Um entre, onde ficamos em/convívio: pai, filho, espírito, espanto/quando um a um de nós caímos/no tumulto do mundo”), o mistério e a beleza do Universo (“Onde o vazio é um estar cheio/de nada, e onde tudo não passa/de espaços entre as estrelas, vida,/morte, numa única centelha”), o amor (“idioma/dos pássaros que vêm se aninhar/na frase entretecida com folhas e/gravetos trazidos pelas mãos do vento/até a copa em flor de nossa solidão”), a própria poesia (“Escrever para supraviver/por um momento, ou ser/inteiramente num instante/em que passado, presente/e futuro se fundem/numa chama única e transparente.” Dentre os temas, a figura do viajante, do transitório, é marcante desde “Dez”, o primeiro livro (“passo//e palito as carnes/do morticínio”, “desfinco as setas desferidas/contra os calcanhares//e parto//meio manco, de um lado”); percorre “Hong Kong e outros poemas” (“Para/trás/está/emaranhada/a floresta”, “Raio parta/o vento leste/se não leste/isto: ... Sedentos de poeira/os cadarços da partida”); e, em “Rio silêncio”, acompanha o curso inexorável do tempo: “Um dia para atravessar – sol/entre duas noites imensas”, “Entre estrela e miséria, o rastro/do viajante risca o caminho”. E, como consumação dialética a este caminhante, surge o tema da casa, também recorrente no último livro: “Ventre-casa de onde saímos/para entrar na casa-ventre de/quatro paredes onde chegamos”, “Vivemos partindo de uma morada//que se ergue em todo lugar com/telhas de nuvem e paredes de vento//Não há o que abandonar quando, /caracol inverso, levamos a casa dentro”).

O Século XX foi experimental por excelência, e, mais profundamente do que o vale-tudo de certas tentativas, talvez o que melhor o sintetize seja a limpeza verbal. Pound, Blaise Cendrars, Drummond são alguns que nunca admitiram um único floreio em sua obra. “Caso do vestido”, clássico de Drummond, as crianças amam do início ao final, pela altíssima intensidade (elaboração) de limpeza verbal. Borges (dos gênios da poesia em seu século, o que menos atuou sobre a linguagem) tornou-se puro pensamento, tanto que a refinada limpeza verbal parece ter por missão não atrapalhar o refletir. Produzir metáforas após estes gigantes é incorrer num risco considerável, mesmo para quem tem um furioso poder verbal. Construir é dizer com a linguagem, não apenas por meio dela; e aí não raro a linguagem torna-se o principal conteúdo. Como limitar um construtor no terreno da filosofia? Como dizer, investigar, revelar, pensar - e construir? Sobretudo: para além de elaborar, como fazer crer que, por trás de metáforas e nomeações, há um ser atormentado com a fugacidade da quinzena e preocupadíssimo com a morte infame? A meu ver, este é um desafio nem sempre vencido em “Rio silêncio”. Não há, talvez, um único poema no livro que não implique numa transfiguração, numa “metáfora”, e isto, se tem o mérito de criar um ambiente misterioso nas peças, em algumas passagens soa como um grande cantor que semitonasse.

Mas voltemos ao paradigma da limpeza verbal, Carlos Drummond, que num século de vanguardas formais encontrou seu lugar na poesia cantando a si mesmo: “me dispo”, “me exponho cruelmente nas livrarias”. Drummond sobreviveu a tamanha contramão por aliar o sentimento (contido, limpidez verbal, medida de seu tempo) a um alto poder de elaboração (aliança que uma estudiosa chamou de “Magia Lúcida”). Acreditamos em Drummond, não há como duvidar da verdade e do poder de fogo de poemas como “Nosso tempo”, “A máquina do mundo”, “A mesa”. O Drummond nos poemas é, sob o ponto de vista da verossimilhança, uma personagem “real”, fidedigna. Quanto ao estilo, é direto, sem nomeações: mesa é mesa, não madeira gemida, vida é vida, não artéria cósmica, rua é rua, não uma colméia poluída ou desencontrada. É possível ler um livro inteiro do itabirano e não encontrar uma única ocorrência do gênero. E, naturalmente, o seu estar no mundo, o seu viver de homem comum, o seu confessar-se é a expressão do homem moderno, o testemunho, o poema de verdade universal.

Minha principal crítica à metáfora é que ela é bonita, mas fácil; se você for nomear alguma coisa, escolha direitinho, transcenda pelo menos a simples nomeação, ou não será perdoado. Antônio defende os próprios riscos quando se declara um cultor do jogo metafórico. Traduziu, por exemplo, Jean-Jospeh Rabearivelo por este (também) desvelar uma região que, “tocada pelo encantamento da metáfora”, “alucinatória”, “provoca uma quase alteração miraculosa da percepção” (prefácio a “Quase-sonhos”, livro de Rabearivelo que verteu para o português). Em entrevista recente, Antônio disse ser a metáfora “o momento de libertação e explosão da linguagem, livre das amarras lógicas, o momento em que o ser e a linguagem entram em contato com o mistério”. De qualquer forma, basta ler os versos a seguir para ver que a limpidez drummondiana (sua prosa, por assim dizer) não faria mal a certos trechos de “Rio Silêncio”: “É o recém-nascido crucificado na madeira do nãoberço/O primogênito das harpias/O saudado por uma harpa de farpas ... O que ganhou um guarda-chuva inflamável/para abrir na chuva de fósforos acesos” (“Cansado, na chuva”); “a lua é um búzio numa toalha gralhazul/gargalhando o destino em crateras ... as palavras de quem não se entende/não são mais palavras, mas sanguessugas na língua”. Como recompensa por estes riscos (manter-se artista é correr riscos estéticos e sobreviver a eles), os melhores momentos do livro surgem quando se dá o encontro entre o poder de palavra (às vezes concretizado na “metáfora”, de valor ontológico, e não simples abstrações), o sentimento de estar no mundo e o pensar sobre isso. Como no poema “Pai”, cujo final é publicado a seguir.


“(...)
Quando eu do fundo da sombra te chamava
e tu, ingênuo, sem saber que me buscavas
com uivos e olhos possuídos pelo gênio oculto
que a tudo atropela pelo seu intento:
o de trazer, através de um sopro, um vento,
um ser para vagar cego entre cegos
num labirinto de ecos e sinais secretos
onde também é – por um sopro,
um vento – desfeito a qualquer momento
Pai, nada a fazer senão estender
a mútua mão do perdão diante
dos propósitos indecifráveis da natureza:
Tu, por, inconsciente, me fazeres,
desamparado, entrar no tempo
Eu, por te fazer, sem escolha, meu instrumento.”