sábado, 25 de fevereiro de 2012

Aproximação da morte


Após descer, lento, dois andares, Leonardo pisa nas lajotas amareladas do térreo – e falta energia. “Mal sinal”, pensa sem hesitação, e se encaminha devagar para o portão do pequeno edifício. Na rua, desiste de pegar um táxi e avança cabisbaixo pela calçada esparsamente iluminada.

A festa na casa de Dinah reunirá uns dez amigos loucos, mais umas vinte pessoas que Leonardo não conhece; “Você precisa sair, se distrair um pouco”, Dinah insistira; “Gente demais”, ele considerara até o último minuto, quando se vestiu em segundos e desceu, lento, as escadas. Fecha a jaqueta contra o peito, sem correr o zíper, e com os braços cruzados olha a selva de luzes na movimentada avenida à frente.

Ao pé do farol, para, sem qualquer motivo, e olha distraído, sem se fixar em algo; o semáforo fica verde, ele continua parado como num lapso de decisão, e então avança rápido, e de novo para, após atravessar a rua; descruza os braços, surpreendido na própria estranheza, fecha o zíper da jaqueta e anda rápido, como se se descobrisse atrasado.

O frio produz uma névoa ilusória na avenida, Leo cruza com pessoas sem lhes distinguir as faces, segue rápido sem saber por que, obedecendo aos desígnios do próprio corpo. Dobra na esquina, rua menos movimentada, uma velhinha anda curvada sobre a bengala, olham-se, ele se sente incomodado, de novo sem razão aparente, ela ri tranquila, Leonardo apressa o passo, resiste à vontade de olhar para trás, como se devesse algo à anciã. A rua parece ainda mais estreita, ele atravessa mesmo com o sinal verde, um carro buzina, Leo cruza de novo os braços e caminha com a cabeça erguida.

À frente, uma caixa de papelão se mexe, seria um mendigo, não, um bicho, rato?, não, um gato – uma gata, e cinco filhotes recém-nascidos. Leonardo para à frente da caixa, sem descruzar os braços, e olha para a gata sereno, quase a sorrir, ela fita-o atenta, mas sem temor aparente. Ele põe as mãos nos bolsos, vira-se para continuar, para, olha a gata ainda uma vez, e sai devagar, erguendo os ombros para proteger o pescoço do frio.

Agora olha para o chão, de novo sem se fixar em nada, “O céu é uma poça de origens, uma abóbada de sonhos sanguessugosos”, pensa num fluxo, “O nome da Terra é amor, amor da matéria para a matéria, o nome da Terra é furor, furor das estrelas que queimam nas linhas das mãos”.

Leonardo apenas ri das frases desconexas, mas avança devagar, olhando para o chão, “os postes são os pesadelos dos corvos”. “Bilhões de anos se arrastam nos meus passos, o rosto de minha garota parte sempre à frente do meu desejo.” “Eu vou rir, rir de chorar, quero apenas tuas mãos acenando como uma resposta à beira da viagem”, “O destino é este, teus olhos parindo olhos no toldado de minhas ilhas”. “Os prédios estão cansados de esperar, as ruas seguem minha sombra e a névoa lagrima as estações repisadas pelas flores.” “Preciso parar de me seguir, sem nunca alcançar.”

Leonardo se percebe andando rápido, os olhos quase fechados, as mãos em gestos involuntários, improviso de dança, “gestual de boca que foge para sorver dos desvios, respiro luxuriante de mariposas espavoridas”. O prédio de Dinah. Leonardo tem a sensação de música alta e luzes ofuscantes. Para. Tomara a decisão, subirá, portanto. Mas se contraria.

Ele puxa de volta o portão destravado pelo porteiro, acena sem distinguir o homem por trás do vidro, e retorna, devagar, tentando reter o fluxo de palavras que o atravessava.

“Te amo como aos grotões de terra vermelha, a água rompendo os veios até os galhos dos teus cabelos, deixa eu fosforescer na noite do teu riso-asa, meus dedos tingem tua boca de roxo dissolvido, meus olhos te encontraram pertinho do big bang e nunca mais pararam, meus olhos são o tempo, e teu espaço chora de ano em ano...”

Leonardo faz o percurso de volta, sem perceber, “a visão pulsa como o sangue, pulsa o amor, a amizade, vou transbordar meu sangue como um arco-íris movediço, uma arara estrelada e soturna”. “Eu te amo – outra vez, derramar meus dedos, minha linguagem”; “de novo, te amo – escorrer meus sentidos até ti, acetinar a pele da ostra com água-viva, assomar de teu corpo como uma serpente que te liberta no umbigo da praia, no bojo do búzio que repetia teu nome desde a minha partida”.

Leonardo anda rápido sem perceber, ergue a cabeça, à frente está de novo a velhinha, a bengala – parada em frente à caixa de gatos. Leonardo reduz o passo, hesita, avança devagar, como se precisasse proteger-se de algo. Aproxima-se, a mulher não parece notá-lo, então levanta brusca a cabeça e olha diretamente para ele - que para, estremecido; ela ri com dentes desbotados e olhos brilhantes, a gata esganiça-se, ameaçadora, Leonardo fecha por instantes os olhos e avança rápido, quase correndo, tudo turva-se, precisa voltar para casa.

Não olha para trás, não fita ninguém nos olhos, avança como numa vertigem, desvia-se de carros com estardalhaço, a energia já voltou na estreita rua, o prédio revestido de pequenos losangos pretos e vermelhos. “A vida é um enorme medo lutando para não ser medo, disfarçando-se como uma cobra, cascas de medo ao caminho.” “A vida é um pavor sem clarividência, baço, amorfo, o tempo se estende ao longo da avenida e te espera numa esquina... A vida vai fechar teus olhos e gargalhar em frente a uma caixa de gatos mortos...”.

Leonardo tira as chaves do bolso, quase corre agora, chega ao portão, as mãos nervosas; “A vida é uma sentença que dura o teu nome, a vida vai te alcançar e embalar entre as oliveiras, e te ceifar em talhos de estrias sobre o barro poroso”.

Leonardo fecha o portão com estardalhaço, avança pelas lajotas de amarelo ocre, esmaecido, os lanços de escada – antes do primeiro degrau, ele entende – como se as palavras, as frases que lhe vieram em fluxo, se transformassem numa compreensão da vida, das coisas à volta: uma borboleta marrom terroso voa para ele, gira, e logo outros insetos, em torno, grilos, baratas, borboletas, à terra, ao ar, não há dúvida, pressentem algo nele, como uma harmonia da matéria que ele não pode compreender, como uma explicação do tempo que ele não alcança, ou perdeu para sempre entre os temores da memória: um dia, hora, um minuto que é para todos, um segundo de esclarecimento do todo, bichos, insetos, o mistério logo acima, após quantos lanços da escada?

Leonardo prepara-se para subir, por um momento, lhe vêm o rosto de Dinah e os de vários amigos, degrau a degrau até o momento de unidade, de integração, os insetos não subirão com ele, sabe, e uma insinuação de sorriso vinca-lhe um canto da boca, sorriso não de aceitação, mas de resignação. Por sobre o muro, ao longe, no alto, a lua nunca foi tão linda.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Para retocares a maquiagem


A água te permite
desde antes
das estrelas explodirem.

És minha Eva das Cavernas
e descobres o fogo.

(Plêiades ciganas
pernoitam em nós
como caravanas.)

Tua sobrancelha, centelha
de tróia,
incendeia o milharal.

E ao espelho de neon,
o rosto todos os rostos
cuida de cada era de mulher:
nesse banheiro, poderias até chorar.
O leve sorriso ergue a cabeça
e o blush capta o peixe
que emerge de profundidades cegas;
ris alto
e iluminas
o
s
a
l
t
o
.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Re'Natal

Súbito, o menino acorda.
Noite, luzes - e uns homens. O menino corre, luzes ofuscantes, galpão, os homens se aproximam, túnel, o menino se desvia de carros, shopping, se encolhe entre milhões de rostos, entra numa loja de óculos, os cinco homens passam, bermuda, terno, camiseta, jeans, boné, na discoteca, jovens fantasiados, o menino vê brilho, brilho, corpos, corpos, todos com máscaras, deserto, o menino corre, os homens estão mais perto, um falcão voa ao lado do menino esbugalhado, parque de games, o menino joga de capacete, telasonçasruascasasprédiosnavesmarcódigosredes, estrada de terra abandonada, o menino corre furiosamente, os homens levantam poeira, todos de bermuda e sem camisa, Belém, Porto Alegre, São Paulo, Nova York, o menino pilota uma nave, se conecta a um cardume gigantesco, conhece milhões de pessoas num segundo - ruazinha antiga... o menino diminui o passo, pela primeira vez em semanas... também os homens querem recuperar o fôlego, chuva... tudo parece diminuir de ritmo, a agonia – alívio... o menino dobra numa rua estreita, os homens não podem vê-lo, mas prosseguem devagar, braços relaxados... a chuva acalenta o corpo encharcado, casinhas centenárias... o menino sabe que os homens, árabe, brasileiro, chinês, espanhol, inglês, também pararam, na ruazinha oculta, a roupa molhada e suada... os perseguidores o seguiram, mês após mês, correram com ele, foram a única companhia... agora, olham para baixo - o menino sabe, sente o mesmo, por alguns instantes é como se se fitassem de perto - andam devagar, dobram a esquina, o menino reaparece à frente... a chuva cessa, ouve-se um pipoco e as luzes da rua se apagam – o menino e os homens param, e andam rápido, outra vez desconfiados, então param - o menino não se volta, sereno, olha a escuridão, ouve mínimos sons - anda em direção à praça vazia, também não tem luz, os homens o seguem calmos - se o menino se virasse, poderiam se distinguir as feições - uma lâmpada se acende com estralo, todos se voltam, são ofuscados pela luz da lâmpada refratada no laguinho da praça - o menino concentra os olhos andando, tenta fugir aos raios, não consegue - para, ouve, avança para o lago com os olhos quase fechados -volta-se, e os homens desaparecem como se fossem miragens – anda rápido até sair dos raios, contornando a lagoazinha - dois peixes saltam, o menino ergue a cabeça, ri, olha atento à espera de novos peixes - a água tá bonita, cheirando a chuva - ele olha a água simplesmente, sem pensamentos, sem mágoas, encantado - nem nota o resto de manjedoura num canto do lago, desfeita pela chuva - curva-se e molha a mão, uma folha cai perto de outra, um inseto voa em direção à lâmpada, algumas luzes se acendem na praça – a água está imóvel - súbito, o menino acorda.
Noite, luzes - e uns homens. O menino corre, luzes ofuscantes, galpão, os homens se aproximam, túnel, o menino se desvia de carros, calcula num flash velocidades e direções, concentrado entre caminhões, pressionado, fugindo, tão concentrado que tem uma visão, quatro imagens, rapidíssimas, mas nítidas, reais: jovens fantasiados numa discoteca – falcão – ruazinha antiga - a luz de uma lâmpada contra ele, refratada pela água – o menino corre, corre, mas agora vê tudo com clareza, como se andasse, os prédios, as atividades, um menininho louro, um guarda de trânsito - diminui o passo, sente vontade de saber, de perguntar, por que corre, por que nunca acaba, e, num impulso, o menino para - o que acontecerá? -, os homens param.