segunda-feira, 27 de julho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


30 - O centro de Belém

Em entrevista recente, o professor Benedito Nunes comentava a necessidade de as cidades terem um centro: lugar de encontro, convívio, integração. Um lugar de todos os cidadãos: com prazer, auto-estima, respeito. Neste sentido, domingo passado as ruas de Belém, no Arrastão do Pavulagem, e depois a Praça da República, no show do Arraial, foram o centro de Belém. Um centro que se movia na medida em que o povo.

Quinze mil rostos nas ruas, todos os corpos, todos os sorrisos. Devassos, pobres, intelectuais, devotos, artistas, ricos, talentosos, pernas-de-pau, a Praça da República tornou-se toda a cidade.

O elemento aglutinador era a cultura popular - forma de expressão e auto-afirmação do povo -, capitaneada pelo boi-bumbá. Aqui valem duas palavras sobre o bumbá, a partir de considerações do maestro Julio Medaglia sobre o samba: tal qual o samba (no carnaval, as baterias são orquestras de batuque para quatro mil dançarinos) o boi-bumba é uma música coletiva, feita para agregar, não individualizar, para ajuntar, interligar, daí repetir a batida, a mesma para todos, em qualquer lugar da praça, reforçada pela dança: samba que é ritmo sintetizado numa caixinha de fósforos e é também dança, como o reggae e a valsa, ritmos sintetizados em dança, correspondência corporal, sons e movimentos repetidos, aglutinadores. Talvez pensou o leitor que essa necessária repetição empobrece os arranjos e as melodias; no entanto, basta dizer que Paulinho da Viola, que dá de dez no Chico Buarque em tradição, mereceu da vida essa história: mostrou o samba “Foi um rio que passou em minha vida”, ainda na avenida, logo após um desfile frustrante da Portela no carnaval - e quem ouvia já memorizava, e a música passou a se reproduzir, e a tristeza pelo desfile falho se extravasava naqueles versos, e das ruas o samba saltou para os ônibus, e invadiu bares e metrôs, e simplesmente se tornou um clássico instantâneo: cantada pela cidade horas depois de mostrada a algumas pessoas. E “Foi um rio...” é uma das melhores letras/melodias da MPB.

O grupo Arraial do Pavulagem não apenas toca boi ou lundu: é uma síntese de lundu e boi: sonoridade compacta e personalíssima - a despeito das batidas clássicas -, apurada em vinte anos de estrada: a partir da livre iniciativa de cada músico, atingiu-se uma digital sonora como poucos grupos hoje no Brasil. E, a muitos belenenses, o Arraial transporta para instantes clássicos da memória, canções que arrebatam, primeiro, pela melodia bela, que toca o sentimento da música, o estado da música; e são motes do que, outrora, aglutinou sentimentos intensos em nossas vidas, isso desde que votar em Lula contra Collor foi estar à beira de uma revolução. Os sonhos políticos são bem diferentes agora, se é que são sonhos, mas uma coisa é igual tipo na universidade: as meninas. Índias, negras, negras, índias, brancas, ruivas, intensas, revolucionárias; na praça entupida, qualquer um pode ser Ovídio, e se interessar por todas as mulheres que existem, desvelando em cada uma peculiaridades e ardores.
Não sei se era já a própria embriaguez, ou se a Daniela vai me matar hoje ou depois de ter nosso filho (mês que vem), mas o fato é que as meninas eram as mesmas do passado, então como não olhar, espantado, deslumbrado com o fenômeno que parecia um espelho numa dobra do tempo: como não reconhecê-las, vinte anos antes, da universidade, depois das aulas, o bilhar com cerveja, o Bar do Parque fervilhante de artista e prostituta? (Mulher no bilhar não precisa nem ser Ovídio.)

Enquanto houver tanta pobreza, não existirá um centro, digamos, democrático. Nosso centro está onde o povo está.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


29 - Um outro real

No filme “O Exorcista”, um padre-psicólogo esclarece a consciência da Igreja quanto a possessões demoníacas e a algumas visões santificadas: depois da descoberta do inconsciente e de doenças como a esquizofrenia, “sabemos que muitas dessas visões não passaram de delírio”. Na esquizofrenia, a pessoa desenvolve uma vida paralela - a do delírio - e nela acredita, e as lembranças são reais. De tal forma que, quando se descobre doente, uma das maiores dores é saber que muitas memórias são ilusões.

Você certamente já viveu momentos tão intensos, tão mágicos, ao ponto de, depois, o tempo ter passado tão rápido que tudo se tornou uma espécie de sonho. “Parece que não foi real”, dizemos de rosto afogueado, ainda hipnotizados por uma pausa reconfortante da vida. Esta crônica seria sobre tais momentos, mas confesso uma intenção do arromba.

A casa de Tarcísio é também um ateliê-galeria. As cores são extravagantes, os móveis são estilizados, a iluminação é extremada (“mais clara que o dia”). Ali, mesmo o que não é artístico torna-se, por osmose, por evocação, por simbologia. Assim, o armário é autêntico - abriga discos, livros, anotações. Mas, cercado de tantas telas, de tanto sugestionamento, deixa de ser objeto: vira objeto, como numa instalação. E assim as cadeiras, o porta-CDs, o cinzeiro - tudo se transforma, se metaforiza - personificações.

As coisas nos são se as somos - tornam-se vida não paralela, mas superposta à nossa de cada dia, vida nova, mas sem nada de ilusão, nova vida real, que não é delírio, mas imaginação. Sábado desses, num encontro em casa de Tarcísio, aconteceu algo que torna ainda mais tênue a distância entre essas todas dimensões. Em determinado momento (você não terá vivido isso?) tive certeza de que estávamos numa cena, como no teatro, mas sem ter consciência de que representávamos. Continuávamos nós, cinco pessoas senhoras dos atos, mas obedecíamos ao roteiro, a uma marcação, como num ato. Ora, se o texto não existia, preenchia-se a lacuna com a intuição: o texto não fora escrito, apenas imaginado, e chegava até nós pela memória da arte (a cena recordava-se em nós), arte que é subjacente, inconsciente como um segundo espírito, uma segunda alma, e assim (inspiração) é sempre a senhora das próprias obras. Éramos iguais às coisas em importância cênica, trans-figurantes, supra-reais, tornando verdade uma imaginação inexplicável, do campo da “irrealidade”, e que, naquele momento em que se deixava surpreender, não poderia ser negada.

Esta é uma crônica sobre a memória, mas não chega a ser um convite para que o leitor corra a uma galeria, a uma biblioteca, a um teatro. O convite é outro.

Anotem com cuidado isso, meus fraternos: o que não esqueceremos, o que nos marca, o que lembraremos como num sonho (de dor ou prazer) é que justifica a nossa vida, “prefira um minuto de intensidade a mil anos de banalidades”. Quantas vezes, por pura preguiça, passamos um domingo igual aos outros, quando percorrer ruas desconhecidas poderia gerar novas lembranças, quando ir à videolocadora e descobrir um clássico poderia mudar nossa vida, quando pegar o carro e almoçar numa cidadezinha próxima poderia gerar uma sensação nova.

Cada um de nós é um feixe de tempo, e quando multiplicamos por dois, o tempo em feixes adensa-se, e quando multiplicamos por mil, o tempo materializa-se, concretiza-se, potencializa-se, e quando multiplicamos por milhares, o tempo produz um estágio estranhamente puro de imaginação.

Abrindo o jogo: se nunca foi, vá, hoje, ao Re-Pa no estádio do Mangueirão. Você, um dia, poderá até duvidar se foi sonho. Mas jamais esquecerá.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


28 - “Sem conflito, não tem teatro”

Teatro, a arte da vida. No tablado, o ser humano é a tela, a partitura; ali, o ator – coração, pâncreas, mãos - é que é o principal elemento da obra de arte.

Em pouco mais de uma semana, morreram três personalidades do teatro brasileiro: Raul Cortez, Gianfrancesco Guarnieri e o diretor paraense Luís Otávio Barata. Pessoas que entregaram suas vidas para outras vidas - no palco, e, doação recíproca, com a platéia.

Luís Otávio, companheiro de uma geração relevante do teatro paraense (Walter Freitas, Geraldo Sales, Cacá Carvalho...) segue a nos guiar bem para este outro universo: a cena - o ator, a vida –, Romeu e Julieta, dois perdidos numa noite suja.

Já repeti dez vezes que a metáfora é que nos tornou humanos. Olhávamos a lua, e como não a entendíamos, dela nos aproximávamos com uma metáfora ou um mito: e a lua foi o rosto de pessoas mortas, ou de uma deusa da chuva; nossa primeira relação com o meio – com o “real” – foi assim pura imaginação. E não mudou muito.

Se víssemos por trás do que chamamos “realidade” - por trás do ser humano - constataríamos que quase tudo é fachada. O “real” é um código de conduta, um terreno neutro, onde mentimos para não matar uns aos outros.

A cena é uma máscara, não uma fachada; o personagem não é um real enganoso, mas uma “persona” que não tem como mentir ao público; tão real que substitui a “vida verdadeira”, a encenar os mesmos dramas e alegrias, esperanças e desolação. Entrega do palco – o autor que incorporou cada personagem, o diretor que formatou o tempo e a emoção – e da platéia: transportada, vivificada num âmbito paralelo, desligada das emoções que já conhece; renovação, purificação do ator – catarse – e do público. “Sem conflito, não tem teatro”, diz o grito de guerra do palco; “a arte da vida”.

Vencer a falsidade do real com a realidade da imaginação; e, pela onipresença da arte, superar o maior dos desconhecidos: não há, como caçoaria o próprio Luís Otávio, espetáculo mais paralelo que o de depois da morte.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


27 - Metáfora e verdade

Reuniões de família parecem sempre acontecer no passado. Delicioso é reviver, pela memória dos mais velhos, episódios esquecidos e contar também as aventuras. Mas sob um risco considerável: descobrir que certas lembranças, caras, não correspondem à realidade.

Por anos contei, com sucesso, entre amigos, certa história mágica da infância; domingo desses, em oportuna reunião com parentes até de outro Estado, alguém desmistificou tudo: minha história não era tão mágica, pelo contrário: jamais tocarei no assunto, muito menos agora.
Por que às vezes guardamos, como verdadeira, uma “versão” dos fatos? Por que, mesmo adultos, transformamos, sem perceber, fantasia em realidade, e vivemos não mentiras, mas “verdades não-reais”?

Talvez tal “adaptação” não seja só pra fugir da dura realidade, ou apenas pra contar uma história mais rara, “mágica”, de heroísmo. Não é simplesmente um mecanismo para se realizar, no presente, pela memória, o que não se realizou no passado: é mais do que usufruir, como “realidade nostálgica”, o que um dia foi sonho e hoje é invenção.

“Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, sentencia o ditado: ao menos para a mídia, para o vizinho, para os anais. Mas como uma inverdade pode tornar-se verdade para mim, eu que vivi outro fato? Como modifiquei a história original e, em mim, verdadeiramente, a história modificada tornou-se a real - sem má-fé, sem intenção ou “proveito” aparente?

Afirmo, leitor: não é só para ter uma história mais interessante, ou tão somente mudar os fatos pra sobressair-se na narrativa. É que somos (para além do que imaginamos) determinados pela fantasia, pela irrealidade, pela impossibilidade.

Na época da pedra lascada, a metáfora nos criou ou a criamos? Teóricos da linguagem descrevem que nos tornamos humanos quando, milhões de anos atrás, fitamos em volta e em vez de ver, digamos, uma pedra lascada, vimos um amuleto ou uma cunha: vimos uma metáfora, raiz da fala, tronco da abstração, e foi a fala e suas linguagens que nos tornou humanos e depois inventou as maravilhas da matemática.

A metáfora – o ver outra coisa, o aproximar-se de um objeto a partir de semelhanças – nos é constitutivo, assim fomos engendrados, “somos metáfora”.

Sim, mas por que a metáfora vira “verdades não-reais” ou simplesmente mentiras? E em que momento?

A metáfora originou-se do humano – ainda nem existe noutros bichos - e também nos deu origem. Com isso, grande parte dos hábitos e culturas vem, de forma indissolúvel, da fantasia (toda palavra é nomeação: antes de ser definição). Os pilares do mundo que desenvolvemos - a pedra polida, o silício – foram ordenados sobre simulações: “somos” e continuamos metáfora.

Arrisco dizer que vivemos a transição de realidade-simulação para realidade-virtual. A pedra deixa de existir, o dinheiro, o esquilo. E, em vez de um escape para o mundo das idéias, do pensamento, mergulhamos em bytes, animações, ilusões multicoloridas. A metáfora torna-se “real”. Veja-se o sucesso estrepitoso do jogo second life, um universo virtual em tudo igualzinho à: realidade.

Percebe? Em vez da realidade em carne e osso, preferimos a mesma realidade em second life (segunda vida).

Essa “irrealidade do real” demonstra, em parte, porque, nas memórias, modificamos os fatos, puxamos a sardinha para certas brasas: “criar” é da natureza humana, compulsiva, irrefreável.
Além do que, num mundo “irreal”, metáfora é poder - especulação, poesia, calúnia. É, para o bem ou para o mal, “conhecimento”, instrumento de sucesso. De tal maneira que, no cotidiano, “ocultar a verdade” é um expediente indispensável para a harmonia de seres e poderes.