quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Circunstâncias eternas

Poema de ocasião

Canta, ó musa – ó vida -, a vida que começa
de Lana, eterna no tempo que não cessa.

Primeiro, prova, musa, apura os ouvidos,
verte a imaginação pelos sentidos;

o fluxo do momento, constante,
perpetua a beleza a cada instante

e a passo vai o pensamento
de firmamento a firmamento

- terra incrustada de estrelas -

peregrino relento do talento,
até o espírito dos cristais, mistério
à água flamejada pelos dias;

canta o que serás, eu, o que serias.

Canta, ó vida, a vida de Lana que não cessa,
infinita agora que começa;

(Venha lépida a eternidade
cronometrada das cidades.)

lúdicas, lúcidas emanências
sorvidas de acasos

e o amor aceso como um palco;

toda cor
o sol produz com a mesma dor,

sorve o barro a porcelana?;

a areia que mana emana
              - imana - 
a vida sobre a existência.

Decanta o presente; eu, a permanência.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Inédito sobre a morte

A morte e as mortes

Minha morte não terá o meu rosto.
A morte vem com número de série, generalista.
Mais do que esquecimento, é indiferença.
A morte é cega como uma pá.
A morte é apenas ela mesma,
é sempre a mesma.

Mas há as minhas mortes,
as mortes que sou eu.

A palavra encontrou o brinquedo perdido
e cantei.
Quando matei o amor, quando o amor
me enterrou no peito cavo,
a canção soou como um raio de luz.
Quando a utopia se humilhou
no panteão da oferta e da procura,
a poesia bradou tão fundo
que os jovens voltaram a sonhar.
Quando o tempo sistemático
gretou contra mim sua corrente,
o canto estilhaçou a similitude dos cristais
e a taça da infância se orvalhou.
Esses silêncios, tão diferentes entre si,
é minha a letra nas partituras.
No afogamento por vinagre,
modulo a medula.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Tempo de brinquedo





Há um passado que é memória,
sob o efeito dessa substância, a imaginação.
E um passado causa, imutável:
a roda gira – ampolas se acendem.
A História é um monumento de versões.

O futuro é vislumbre – resultado.
Daqui,
o futuro chora e ri apenas como uma boneca.
É preciso esse fio a obrar o tempo –
caminho, amor –, cavilações eletrossensíveis.

No relógio eletrônico, o presente
dura um milésimo, antes de virar passado.
E em mim? Quantos segundos,
quantos minutos formam o agora?
Certo, a relatividade. O presente
depende da percepção.
É contínuo – mas, em mim,
se define por cenas, como no teatro.
Cena 1 (presente 1): chegas, dizes duas frases,
me beijas, partes;
Cena 2: presente de quantos minutos sôfregos
a lembrar do passado (da Cena 1)?
O presente é uma impressão, uma sensação.

Visionarizar o futuro – digamos,
uma invenção que estará no mercado
em vinte anos. Entre o projeto e o produto,
qual o nome do tempo? Processo.
Há o tempo processo, uma raia de tempo,
tempo-finalidade: imiscuído de presente emoção.

O tempo do sonho - transcorre em que espaço?
Medi-lo em que ampulheta, peneirá-lo?
Se, mesmo nos sonhos contínuos,
em que “controlamos” as imagens,
o sol não vaporizará os odores da areia?

E há esse tempo da arte, à margem:
a peça começa pelo final; narra, então,
a heroína desde a infância;
e, na adolescência, um robô do futuro
visita-a, para impedir que um vilão
destrua a Terra em cem anos.
(Há um cyber-tempo - sem passado, presente,
futuro – percebido, mas sem emoção?)

O tempo da narrativa: não, não é
relativo. Ainda que a peça,
amanhã, não seja a mesma de hoje:
a heroína errará uma fala.



sábado, 29 de junho de 2013

Musicanto














Partitura

“Um instante, maestro!”.
E a música fica suspensa em si mesma,
olhando pelas frestas dos instrumentos.
A música força o peito dos músicos
de dentro para fora. E, na platéia,
causa a impressão de soar
de fora para dentro.
O que acontecerá comigo,
que não conheço o programa,
se o maestro não retomar a audição?
Até quando poderei suportar
essa angústia, que não sei nomear,
suspensa em algum ponto em mim,
que não sei qual, pela interrupção
de algo que estava não previsto,
mas já consumado no tempo
e não se confirmou no espaço:
como um voo que partiu
sem a asa-delta?
A música soa, e nos liberta.


segunda-feira, 24 de junho de 2013

Um poema do Nobel Derek Walcott



Arquipélagos

No fim desta frase, vai começar a chover.
À beira da chuva, uma vela.
Lentamente a vela irá perdendo de vista as ilhas;
A crença de uma raça inteira nos portos
afundar-se-á na neblina.
A guerra dos dez anos terminou.
O cabelo de Helena, uma nuvem gris.
Tróia, uma cova de cinza branca
junto do mar onde chuvisca.
A chuva retesa-se como as cordas de uma harpa.
Um homem de olhos nublados toma-a
e dedilha o primeiro verso da Odisseia.


Derek Walcott, Antilhas (1930)
traduzido por Nuno Dempster

sábado, 15 de junho de 2013

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Galeria: Caravaggio (Cupido)


Irrealismo mágico

As asas e a lágrima

A chuva revirava a noite do vilarejo;
ao longe, as bandeiras que restaram do São João, 
cores plastificadas entre árvores retorcidas;
muitos viram, pressentidos: semelhavam bandeiras
desprendidas, mas eram asas, um par de asas
arrastando-se em chumbo pelo ar devastado.
Alguns até tiveram o impulso de sair à chuva,
ajudar, talvez, mas como? Ninguém estranhou
quando as asas, num esforço arquejante,
se arrojaram à frente, transpassaram a janela
e planaram por instantes, pousando sobre a mesa
na casa de madeira. Em segundos, dezenas de pessoas
se admiravam em volta, silenciosas, sem medo,
e as asas evocavam um ser humano, mas sem corpo,
estavam exaustas, a respiração trêmula, prostrada,
e queriam descansar, mas sem olhos. A água lhes escorria,
penetrando a madeira da mesa, e se notava a pele gretada,
como que percorrida por um deserto, cabelos, não penas,
ralos, finos, sobre a pele membranosa, e o silêncio
se aconchegou ao trepidar da chuva, e as asas dormiram,
palpitando na mesa. A dona da casa envolveu-as
num lençol, e pôs sobre o colchão na própria sala,
e em silêncio todos se deslumbraram,
e o silêncio se alteava com o esmaecer da chuva,
e quando tudo era silêncio, um temor se instalou,
como se, de hora pra outra, algo extraordinário
se sucedesse – bom? ruim? Quase todos velaram
por toda a noite, o temor silencioso, e aos primeiros
raios as asas se mexeram, e se desvencilharam do lençol,
não tinham olhos, mas estavam serenas, e percebiam cada
pessoa presente. Minutos depois, numa vibração
que se aproximava de muito longe, cada um começou
a lagrimar, sem razão - pareciam tocados pela mesma
lágrima, e escorriam a mesma dor, mas não - a lágrima
era a mesma, mas a dor era de cada um – como num
chamado: deixa a dor entrar, pelas mãos, pelos braços,
deixa a lágrima percorrer o corpo e a ela afluírem
os desenganos, as frustrações, teu sofrer resguardado,
teu brilho pilado, teu calar heroico, e depois do corpo
o pensamento cabisbaixo, o sentimento deixado para trás,
e antes do corpo, antes da pedra, da seiva, a dor primeira,
gêmea da luz, a dor que a própria vida arrasta
como asas presas a invisíveis grilhões, asas-grilhões,
a dor que suturou o universo do teu corpo
antes do fogo fundir na água o mineral do nascimento:
deixa a lágrima rolar a dor que nunca conhecerá
a si mesma.
Embebidos da lágrima, todos despertaram para as asas
repentinas, esvoaçantes, alçando-se rumo à janela
e se desvanecendo em sereno ensolarado, para espanto
das crianças.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Galeria: Sarolta Ban


Poema inédito


Perdas

Do Big Bang, o corpus
de uma brisa;
eu, sopro
de aniquilamento.
A origem, matriz
da perda,
engole e engendra o vazio,
minha completude;
buracos negros se aplacam
na sede da minha órbita.

Hoje, insubstâncias -
tempo anucleado
em desejos por minuto -
a brisa entrete-se
antes de virar sopro,
antes do impulso.
A anelos sem destruição,
frustrações sem fogo;
a perdas desmeduladas,
olvido sem incrustações;
amemória.

A eternidade
acaba aqui.

sábado, 11 de maio de 2013

Um sexopoema




Terra em Vênus

Clitóris, cordilheira
inchada pela chuva;
cona, cânion
onde o vento brinca
com tufos de fogo;
poluções de Krakatoa.
A tempestade açoita,
acoita a neve
em gemedouros de pinho;
lava étnica restolha
o meridiano temperado
do verão pistilo.
Astros se desconstelam
num maelstrom celeste,
sacados pelo grelo da Terra;
a cordilheira badala
em grandes lábios ardósia
e os polos se enforquilham
sob as coxas da lua-muco;
primavera cadente, lascas de planetas -
esporro titânico de magma elemental.
A manga sente a dor do parto;
Vênus tem o malino em Vesúvio;
uma palavra se resina
no corte do galho umbilical.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Dois poemas inéditos




A espera

O espaço eterno em ondas sobre o tempo infinito
em ondas sobre o espaço eterno,
contrações concêntricas, binôminos
da ferrugem em dilatação;
lentidão transformadora e devoradora,
expansão paralítica, imobilidade eletrolítica;
o olho gordo de tudo, o vácuo de tudo,
a cegueira da luz acuada no universo;
moléculas insolúveis, soluções corrosivas,
eu unha e carne o amor carne e unha;
dízima da fênix periódica dízima da fênix
a espera com a sua fome com a sua espera

realimentada.


A paixão desmedida

A varanda - um bilhão de galáxias,
essa manhã - um bilhão de anos;
o infinito e a eternidade
- opressão –
só se contêm
num átimo, num átomo
(a luz tu, pólen
do universo,
transcorre até mim):
instante.



terça-feira, 30 de abril de 2013

Andorinhas


Em Marabá não é diferente: a cerveja da sexta é pra descarregar a semana, a galera mais relaxada, as buzinas mais eufóricas que estressadas. Assim também para Jorge Guedes, professor até as 18h, escritor frustrado noite adentro.
O lugar, clássico do núcleo Nova Marabá, um dos três que formam a cidade, é um largo com banca de revista, dois bares (as mesas e cadeiras de plástico, amarelas e vermelhas), estacionamento, supermercado, farmácia, telão animado com mídias eletrônicas, parabólicas, antena em torre de recepção e/ou transmissão sabe-se lá de quê.
Cerveja. Papo com os vizinhos das mesas em volta. Garçom brincalhão.
A noite se aproxima. E elas chegam – centenas, milhares de andorinhas, às voltas, sincronizadas, são as notas e os instrumentos da sinfonia. E nosso amigo Jorge Guedes é tomado por uma inspiração – que não lhe acorrera das outras vezes em que assistira à cena: as andorinhas têm não apenas radares individuais, mas formam um enorme radar em si mesmo, onisciente em si de todos os movimentos isolados. Não se desviam individualmente, aos círculos ou parábolas; formam um organismo completo, milhares de peças, e executam as evoluções uniformemente, da primeira à última conectadas, coordenadas, determinadas por um todo.
Milhares de andorinhas voando a velocidade pouco urbana, a centímetros umas das outras, e nem um choque, nem uma alteração – o todo em movimento - produzindo desenhos parecidos com os que as músicas geram numa tela de computador, imagens difusas e improváveis, cores caóticas, formas surpreendentes que correspondem a sons mais ou menos graves, extensos ou curtos, instrumentos diferentes. Imagens, aliás, identificadas com as que se formam no telão eletrônico embaixo da coreografia passarinheira.
Jorge Guedes também entende logo – as andorinhas estão formando imagens para quem vê de fora – para quem vê como um todo, e não intrinsecamente – formam desenhos numa clara interação com a galera embaixo, cerveja, mesas sintéticas, tênis de látex.
“Não se choquem, meus amorezinhos, que nenhuma respingue aos meus pés o sangue da poesia”, Jorge Guedes deseja com todo o seu talento literário.
O guardador de carros ergue o punho, e dispara - o fogo de artifício atravessa a sincronia das andorinhas – choque - e quatro caem espedaçadas aos pés de mesas e clientes.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Galeria: Van Gogh


Dois poemas submersos


Mar

Os que, em ti, sentem náusea
varejam de remotos cemitérios.
O tempo vaza em ti como um galeão
carregado dessa substância estúrdia, a dor,
sangramento de corais, 
hemorragia do inconsciente
de tudo o que pereceu sem esgotar a fala.
E a ti os anos ocorrem aos milhares,
os arquejos que alquebraram os suicidas
insuflam albatrozes e golfinhos.
A eternidade vem dar em ti, mar,
humilde da proficiência
de tua monotonia alerta,
de teus moinhos de genes.
Acúmulo do imemorial, alinhamento
de surdas imaginações, em ti
o poema desafoga-se por compressão.
Viagem em si, mar, destino de todos os portos,
circunferência instintiva, bússola
dos quatro elementos. Aqui, cheguei.
Magma azul que refunde os raios,
plasma este sonho da palavra:
Quando eu for cremado,
que as cinzas encontrem o teu sal,
à margem onde desaguará sempre o rio da infância
sobre a pedra do meu canto:
que se consubstanciem no teu tempo imutável.


Para sempre

À beira rio, onisciente como Hefesto
diante das forjas,
acompanho a travessia:
a quilha revelando a infância,
formando o quintal balbuciado de sonhos,
a varanda pendida do talhe do açaizeiro,
coalhos de estrelas pela grama,
o primeiro livro, a menina encaracolada,
o êxtase no início da carne,
o desejo pelo mar,
o poema zurrando sobre a música,
a mulher estrangeira que viveu uma só noite,
a esperança, a utopia,
a heroína sangrada numa poça de vinho,
o último dia na universidade,
o último encontro, despedida,
o favo do olhar, o mel amargo,
tudo a quilha revela
e a passagem do barco desmancha,
como o amor eterno, que passa a cada dia:
para sempre,
o esqueleto arenoso do rio.

II

Horas depois, porém, o rio amazônico
se torrencia, a maré arrebenta no cais,
o caudal joga com a noite
e sereias se lançam dos mastros
sobre a água viva.