quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


47 - Mágoa e perdão

Por que magoamos a quem nos ama e a quem amamos? Esta pergunta deixa nuinha, sem sombra de dúvida, toda a maldade da raça.

Num mundo duro, egoísta, competitivo, sucede o milagre do amor, da amizade, da camaradagem; e a gente, por egoísmo, por inveja, por mesquinharia, fere a amizade com o punhal da língua (ou, muito pior, dos atos, traições). De hora pra hora, num impulso, num rompante, num romper-se de dique, falamos as maiores indelicadezas a quem mais nos ama e amamos.

Já tive o prazer de afirmar que a constitutividade psíquica dos humanos é semelhante a uma câmara de borracha: enche, enche, enche e precisa explodir; remenda-se, enche, enche, e de novo explode e remenda-se. Na prática, acumulamos os dissabores do dia-a-dia, uma frustração aqui, outra acolá, desgastes no trabalho, na família. Os dissabores inflam a câmara de borracha de nossa psique; em certo momento – se estivermos mal, ou bem demais, ou sob pressão, ou magoados –, a borracha rasga-se por meio da língua-punhal, aquela que fere de uma vez a quem amamos, e a nós, continua a nos ferir pelo tempo afora.

O leitor certamente já passou pelo drama: magoar alguém que ama ou ser magoado de forma inesperada. Foi uma explosão, foi a pressão, foi a primeira válvula de escape que surgiu: e ferimos; e nos feriram. Tudo muito humano, auto-explicável, manifestações da maldade carnívora da espécie. Ou não? (Talvez o mais triste seja descobrir que nós é que somos tão humanos.)

Nesse mundo duro, egoísta, temos obrigação de cuidar do amor - que nos ampara, nos fortalece, sem ser a nossa mãe. Cuidar do amor é até um sentido de auto-proteção – se aí quem fere sai mais ferido. Nada deveria merecer maior atenção, dedicação, agradecimento. O amor não é uma ilusão, em que é preciso “acreditar”: ele é o sorriso (que ilumina), o abraço (que impulsiona), a água e o sol (que frutificam). O amor é simplesmente o bem, e não há tratar o bem a punhaladas.

Hoje, que a saudade me passou a manhã cutucando a consciência, achei por bem pedir logo perdão, de coração, às amizades que magoei e, humildemente, liberar os que me magoaram de sentirem ainda algum remorso.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009


46 - Pedro

A pedra rebentou: Pedro. Desde sempre, menino da pedra, desde a época das grandes explosões, dos sóis que queimavam como enxames de relâmpagos, das lavas se solidificando feito mares vermelhos, em órbita. Bem-vindo, Pedro, neném de pedra, desde o tempo em que as estrelas dormiam nas campinas.


Bem-vindo, menininho de boné, menininho de dois dias, ninho de sonhos, bem-vindo ao Século XXI, e pode abrir os olhos, é seguro, não temas épocas antigas tuas, quando as mães eram nômades e a vida atravessava pela morte. Abre os olhos, é seguro, vamos por uma travessia pela vida. Pedro, pedra de Pedro, desde a época das primeiras águas inundando os vales, sem pássaros além da alga que migrava entre-montanhas. Pedro, Pedro de tempo, granito de luz, faíscas de sangue bom.

Pedro pedra, tábua de projeção, a quem logo chamei Gladiador. (Quando a pediatra entrou no quarto, avisou: “Agasalhado, ele nunca vai comer; menino é preguiçoso, e tem que tirar a roupa, fazer ele se incomodar, se espertar, para que mame.” Gladiadores recém-nascidos não acordam nem para comer.) Pedro, meu minúsculo grande filho, traquinas, saliente, logo notei nos raros segundos em que acordou, nu e sacudido por três mulheres, com sono a tirar leite do peito. Pedra levada, menino lascado, Pedro esperto no concreto, nas cabras montesas. Pedra, quando abrires os olhos, menininhoinho, eu quero estar presente para chorar.

O que se oferece à pedra, senão palavras? Ao Pedro desde que os peixes viraram pássaros, e os pássaros viraram beija-flores, que conselho, que sabedoria dizer à pedra, senão esta das palavras, do sopro, do deslumbramento diante do primeiro vento? Pedro, eu te ofereço palavras, jogos de ser, palavras que movem as montanhas sobre os reinos, palavras vivas como o calcário, o mar.

“As Aventuras de Tom Sawer”, “As Aventuras de Pedrinho”, os séculos rodam rapidinho e tudo o que vejo pela frente pisca: Pedro eletrônico, Pedro de Órion, parede de caverna do Cavaleiro Biônico, turbina neolítica, cyborg fundido em magma, Pedro em tudo, eu te saúdo, advento de era, tempo que acorda como uma pirâmide, eu te saúdo e tua mãe te adora (tuas ladinas irmãs te festejam, por isso fica esperto: para aprender). Pedro de fantasia, Pedro dicionário de palavras por criar, jóia da única imaginação mais lenta que os filmes de Tarkoviski, bem-vindo à brevidade das palavras, bem-vindo leeento, Pedro de brisa, pedra à flor do mar, beija-flor enorme pousado nas mãos da mãe, no banho.

Eu te ofereço frases, garças de graças, frases da vida para a eternidade, curtas como as sílabas do sopro, como a duração de veres pela primeira vez tudo o que eu julgava ter visto. Vida, vista sobre a natureza do corpo, paixão que desmancha a carne e funde voraz outra fome, Pedro, eu que recebi e te transmiti a pedra entrego também a brevidade da vida, nessas palavras que garimpei não do cotidiano, mas da meia-idade em corrosão, palavras que se ficaram de lado e irrompem erodidas: eu te transmito o presente (pedra só lembra do futuro e da infância) e um consolo: a palavra traz a consciência da brevidade, mas ensina a ver na velocidade da luz.

Vida sentida, poema que se sofre de tão maravilhoso, que se pena deslumbrante como um peregrino, que se conhece de tão doce: Pedro de tempo, em ti fundo essa primeira palavra, “Vida”, sem tempo, sem norte, vida apenas, peripécias de teus primeiros saltos na minha imaginação.

Pedro em que sou pedra e, a largas passadas, estremeço as palavras que me atraem às montanhas.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

DARA (JABUTICABINHA) E PEDRO BY WALDA MARQUES


LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"

45 - Jabuticabinha

Desde que ela nasceu, quatro meses atrás, giramos-lhe em volta como num planetário, desmedidas gravitações em torno de minúsculo sol. “Solzinho que brilha de madrugada!”, boceja a mãe, e já alerto o leitor de que esta é, mesmo, a saideira crônica sobre Dara.

“A Vida do Bebê”, manual pediátrico, parece um tijolo de seis furos – para servir de travesseiro. Lemos que os nenês, aos três meses, têm pesadelos e acordam assustados. Pesadelos? Diz a mim, Dara Damaso de Oliveira, de onde virá essa tua necessidade de se purgar, senão da manipulação, de caprichos ultra-minúsculos, instruída por maravilhosas avós? Todo pai de família sabe – duas avós ao mesmo tempo sobre a mesma criança é caso de Conselho Tutelar. Sempre digo que não sou do interior, e sim do mato, e não lembro de ter tido lá pesadelo aos três meses.

Fofosa, sonosa, manipulosa, traquinosa, chorosa, cocosa, musicosa, banhosa, friosa, shortosa, meiosa, pulseirosa, brincosa, jaboticabosa. Na verdade, o primeiro adjetivo depois do nascimento foi indiosa, porque os olhos inchados e o cabelo muito preto confirmavam antepassados parauaras; o primeiro improviso que lhe pespeguei foi “lindiosa”, mistura de linda com indiosa e geniosa, exemplar força da natura. Logo os traços índios tornaram-se morenos, e os apelidos e adjetivos se foram renovando. Lembro de “Abelhinha”, pela redondez da face e dos olhos e pela vivacidade; de “Sem-cerimônia”, por defecar cheiros terríveis, e todas as mulheres da casa festejarem, e a pobre da bebê rir escancaradamente, aprendendo o que é o apogeu; e, para encurtar, teve “Magali”, a personagem comilona dos quadrinhos, pelos olhos redondos, pestanas marcantes e por um cacheadinho no cabelo do lado esquerdo de quem olha. Nenhum apelido foi tão bem-sucedido quanto Jabuticabinha.

No início, os olhos de jabuticaba sorriam como a boca sem dentes, junto com as mãos e as pernas; abelhinha lindiosa carequinhosa manipulosa confirmando a existência de todas as pessoas; e ganhando forma em nossas vidas: Jabucabinha logo variou-se em Jabuticabosa, Jabuticabinhazinha, Jabuti’cabinha’zinha, Jabuticabojososa, e os termos viraram diálogos (“Ela tá jabuticabosa?”, “Claro, e rindo!”) com verbos exclusivos, às três da manhã (“Jabuticabou?”, “Total!”), e aí tento eu acordar, sentar na cama apoiado à parede, três travesseiros às costas.

A figurinha foi crescendo, e haja independência, página 203 de ”A Vida do Bebê”, frutinhas, sopinhas. A mãe já leu até à 302, como se antecipasse os capítulos de uma novela. As mães (avó é mãe em dose dupla, veja você) estão loucas para dar papinhas, sopinhas, misturebazinhas, caldinhos de feijão rajado. O carapanã picou a testa da princesa - pediatra! O doutor Haroldo Menezes olha a bebê e fica atordoado: “O que vocês estão fazendo aqui?”; elas perguntam se pode isso, se pode aquilo, e o médico, enérgico, “não, não, não!”. Ao sair do consultório, procedem como se ele dissera “sim, sim, sim!”.

As avós já chamam a abelhilosa de “Zabuticabózisa”, e ao telefone a mãe pergunta trinta vezes por dia: “E a Jabuticabinha? Oôoo, minha linda! que fofa! E comeu?”. Num dia não muito distante, o olhinho jabuticaboso passou a ver as coisas, os movimentos, e a ser dominado pela própria visão: a ser jabuticabado. Para tudo a pirralha virava os olhos, até para trás, giro de 360 graus, crente que sustentava mesmo a cabeça (“Ela zá lealiza opelações complecxas!”), e por falar em sustentar a cabeça careca, virou “Lagartinha humana”, a única da natureza, e assim a Jabuticabinha jabuticabou-se, e a nós, e agora ri também com mãos e gargarejos e lágrimas de crocodilo, e todos nos quedamos à adoração, postados em silêncio, risonhos e embasbacados, jabuticabados.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


44 - Lagarta, crisálida, borboleta e futebol

Muitos mitos soprados pela arte realizam esta necessidade humana: mudar. Vejam-se três histórias que viraram desenhos animados: em “Pinóquio", um boneco de madeira torna-se “menino de verdade”; “A Pequena Sereia” transforma-se em alegre debutante e casa-se de véu e grinalda; o belo rapaz amaldiçoado vira a Fera, que a seguir volta a ser o belo, que ao final casa com a Bela: “A Bela e a Fera”, perspectiva e destinação feminina. Sendo também o futebol chave psíquica e da região da arte, não custa vê-lo logo como mito. A questão é: mito de quê? O que o futebol revela de nós, das fundas camadas de nossa natureza, e de como manifestamos o desconhecido?

Em qualquer selva, a saga da borboleta cumpre um romance trágico: primeiro nasce a lagarta, que resolveu de forma simples o problema da Morte: em vez de morrer, vira crisálida. Este pequeno casulo também se transforma noutro ser: e nasce a borboleta, um dos entes mais agradáveis do ar, asas de íris filtrando diafanamente o entardecer - e de repente esta bela desencantada/desabrochada vira Julieta: tem um momento de esplendor e morre: a borboleta vive no máximo quinze dias, mesmo as mariposas.

Ao menos se humilhou a Morte com um drible: a lagarta, rastejante, parece que vai, mas volta, agora com asas. Igualmente: sair da madeira para a forma, e da forma para a realidade, até formar-se a consciência e o nome de um menino: Pinóquio; e sair da condição de sereiazinha medrosa e impulsiva para os braços da independência e da lua-de-mel (a Pequena Sereia é a adolescente: já não é criança – escamas de peixe na água da mãe - e ainda não é mulher: mutação psíquico-física, tilápia virando ruiva estabanada): mudar, fugir, enfrentar, conseguir: a mudança traz dor, mas revela, descobre: por isso devemos cumprir a clássica sina do herói: uma longa travessia, dolorosa até a morte, mas valente, triunfante, abnegada como um amante de época.

Mudar a Seleção Brasileira nessa Copa da Alemanha é um anseio do nosso inconsciente coletivo.

A) Mudar, por exemplo, Ronaldo, um pouco lento, por Robinho, leve, e driblador. B) O 1 a 0 sobre a Croácia deixou claro que quatro atacantes pode ser suicídio (ainda que um “quadrado mágico”). C) Você não acha que Cicinho dinamiza mais o jogo que Cafu?

Assim se nos revela o mito do futebol: não é um mito, é uma mutação entre fantasia e realidade: é, ao mesmo tempo, a ansiedade, o sofrimento, a alegria, a explosão, os segundos de êxtase de qualquer vida; e são 90 minutos de pura fantasia (a mais real que há no mundo moderno). O futebol é o mito de si mesmo – de tão absurdo, lendário, inacreditável, catártico; e por ser a realidade: mata-se e se morre por ele. A bola, mais do que substituir o real, gira contra o acaso noutro real. Futebol é o fantástico perde-e-ganha cotidiano: condicionado por expectativas, esperas, mas que - “como num sonho” – prepara sempre épicas decisões.

Com medo de sermos infelizes para sempre, pondera-se: A) Se o Ronaldo já fez o que fez com a bola, e com os zagueiros, e com os goleiros, e já se superou fisicamente num caso dramático, como não lhe dar confiança (“nos três primeiros jogos”)? B) E se, num mata-mata, o Brasil necessitasse de um gol, não poria em campo os quatro melhores atacantes do mundo, o tal “quadrado mágico”? C) Com Cicinho, o time talvez ganhe em movimentação, porém corre o risco de ser surpreendido; com Cafu, ganhamos a experiência de três finais seguidas de Copas.

Mudar dói, mas não arriscar pode ser fatal.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

MAX MARTINS POR J BOSCO


LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"

43 - Lendo Max Martins

Enveredo, quase sempre, pela não-crônica e hoje cometerei a anti-crônica: em plena Copa, o tema é a poesia.

Uma vez, quando Max Martins era diretor da Casa da Linguagem, vi-o no Banco do Estado do Pará a receber o salário. Não ganhava mal, e recebeu tudo de uma vez, bolos de dinheiros pelos bolsos. Óbvio que era uma pessoa que não lidava bem com aquela situação (fila, salário, manusear o dinheiro). Parecia alheio, sem a movimentação das pessoas práticas. A concentração era funda, sim, nos tantos poemas árduos que por aquele tempo escrevia.

Terça-feira passada, 20 de junho, Max completou oitenta anos. Aprendeu, na vida e na obra, que uma cabana basta: para se ter de onde se ir. Um índio de Belém, ancestral, filosófico: caminho de Marahu. Zen-amazônico. Ter de onde se ir para outra dimensão – a da palavra, da linguagem; e depurar o Eu pela dura saga do artista: poesia-vida.

E também – inevitável - ter de onde se ir para além da vida (toda obra é uma preparação para a morte). Leio dois textos marcantes do final da década de 80 (Max tinha 62 anos): “os grampos, teus cabelos ali”; no outro, chega a indagar-se sobre a morte: “Por que mais esta noite inteira esperando?”. Enfrentar, então, o tempo implacável - reagir-lhe, impor-lhe um instante, sobreviver-lhe. A obra e o semblante de Max Martins: vincados pelas intempéries, serenos. Conquista, aceitação: resposta às ruínas como no belo poema (também de 18 anos atrás) “Outro sim”: outro sim à vida-obra:

“Para que não se vá
a vida ainda
e a amada volte

xvxvxvxvxvxvxvxvxvxvpede à palavra
xbxbxbxbxbxbxbxbxbxboutra palavra
xbxbxbxbxbxbxbxbxbxboutra sob
xvxvxvxvxvxvxvxvxvxvpalavra”.

A palavra te dará cada palavra que pedires, Max Martins, pois que oitenta anos é só o começo. Tua obra-vida (cabana em Marahu) é o teu eterno lugar de onde se ir, tua preparação para a montanha, triunfo sobre o tempo; teus livros são lugares de onde partem, há séculos, jovens poetas: lugares intactos, inviolados, expressos em ti para que nós, leitores, tenhamos também, sempre, de onde seguir.

Parabéns, Max da poesia, artista com a vida, e falar nisso responda-me, em justiça ao futebol: e a Copa?

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


42 - Carros, camelôs, futebol

O automobilismo é uma paixão disseminada por São Paulo, com cartódromos e circuitos de cross (barro) em vários municípios. Interlagos é talvez o patrimônio que mais orgulha a capital e Ayrton Senna é um nome inapagável nos esportes brasileiros.

Contrastando com a velocidade, Sampa é a metrópole mais engarrafada do mundo. Haja viaduto e túnel e viaduto, mas como conter o problema se, para o paulistano, ter carro não é só status social (como em todo lugar), é antes paixão, história de vida, relação profunda com o meio?

É possível que o automóvel (e a velocidade adrenalítica) seja, ao lado do computador, a invenção que mais interferiu, de forma física, no comportamento humano. A ancestral relação do homem sobre o cavalo (o espírito aventureiro) foi transferida, no Século XX, para os carros (“motores de duzentos cavalos”). O relação homem/máquina é uma das mais modernas da espécie (a máquina não tem vida, como a árvore ou o bicho: foi criada pelo homem, pela tecnologia: não é um diálogo com a “natureza”, “viva”, e sim com elementos inanimados, como minérios).

Neste sentido (da relação física com a modernidade) São Paulo é a cidade mais “urbana” do Brasil.

(Só para não esquecer, o apelido do computador é “Máquina”).

“Locomotiva do Brasil”, influência de Itália (Ferrari, Fiat), Matarazzo, bairro só de japoneses e descendentes (Toyota, Honda): Belém está a três mil quilômetros destas circunstâncias paulistanas, mas como ama carros! Em qualquer transversal mais movimentada, muitíssimos modelos novos e luxuosos.

Nessas perspectivas, a esquina mais “urbana” de Belém é a da Júlio César com a Pedro Álvares Cabral. Ali, além da proximidade com o aeroporto (o avião é uma tremenda máquina), fica um dos raros semáforos de quatro tempos da cidade. Em redor, Aeroclube, Corpo de Bombeiros, uma reserva ambiental. Como em São Paulo, a esquina de Belém movimenta uma concentração de camelôs, que aproveitam os quatro tempos do semáforo para melhor seduzir o freguês. E ainda (aqui como em Sampa), a Copa da Alemanha produz essa foto social: as camisas que os camelôs vendem aos “doutores” são as mesmas que usam, driblando os carros.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Uma Casa Em Viagem: "Digressão do pensamento"

Uma Casa Em Viagem: "Digressão do pensamento"


lindolindo. dá para tocar o mistério, orvalho sideral do interior. nosso interior.

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


41 - A poesia do cotidiano

O professor Sérgio Antônio Sapucahy da Silva, que no Souza Franco chamávamos de maestro, puxa-me a orelha: “Não esqueça a poesia do cotidiano. Foi o melhor que a crônica nos deu”.

Penso logo em me defender, afinal a poesia do cotidiano já foi escrita e tenho obrigação de tentar outra coisa. Mas o puxão de orelha arde.

“Poesia do cotidiano. O que é, onde está?”

Vou aos livros: Drummond, Rubem Braga, Nelson Rodrigues; sim, mas, nas obras, como sabê-la? Seria a modulação das palavras? O humor? São as histórias, tipos imprevistos?

Drummond é o homem comum. Rubem Braga, o estilista que não tem pressa, mas nunca parece lento no espaço da crônica. Nelson Rodrigues: o épico no cotidiano.

O que têm em comum? Primeiro, a excelência da linguagem (literatura); também a originalidade e a intensidade imaginativa (Drummond publicou como crônica centenas de mini-contos); bem, como divisar, mesmo, essa tão específica poesia do cotidiano?

Não sou tão burro, só que não tenho a chave da questão. A questão! Que tal reformular: poesia “no” cotidiano?

A poesia, somente.

Volto aos livros: dentro do ônibus, Clarice Lispector descreve as peripécias de um sagüi (macaquinho) de forma tão vivaz que, de hora pra outra, somos arrebatados por um universo quase mágico, de carinho, de idealização, de imaginação: poesia. Drummond disse que sua melhor poesia virava poemas, já a melhor poesia de Rubem Braga virava crônica. Manuel Bandeira casou observação com palavras “brasileiras”, e suas crônicas, muitas vezes, rivalizam em sabor “modernista” com a poesia de Mário de Andrade. A poesia do cotidiano seria, então, apenas a poesia, a grande, a boçal poesia, descrita como “a mais difícil das artes”? (Distante de mim, portanto, escorraçado até do cotidiano.)

Mas, espera aí, não há desistir diante do primeiro estruturalista da linguagem: o que é, afinal, poesia?

Pra não criar confusão, vamos aceitar: a intensidade verbal é sua mais imediata prerrogativa. Quanto mais elaborada a linguagem, mais poesia; poesia, portanto, é palavra.

Poesia é também sentimento, emoção, revelação, e reside aí sua própria definição: deleite, encantatório, melancólico, “musical”. Sem emoção, portanto, a poesia de certa forma nega-se, tanto que João Cabral tornou-se único ao fazer justamente isso: despoetizou.

E o que dizer do pensamento? Como se explicar a Aristóteles, se, no poema, não resplender a reflexão, a visada ontológica do milagre do nosso drama? Não vou nem dizer “filosofia”, mas sem profundidade emocional não há mesmo poesia (circunstância que igualmente me tira do páreo).

Pensar, sentir, ter uma linguagem para expressar: eis a poesia do cotidiano? Espera aí, isso é uma crônica, não um poema. Onde é que o poema, digo, a poesia, em vez de virar um poemagrandearte, vira “poesiadocotidiano”: vira crônica?

Pound, mestre do Século XX, definiu o poema como “uma conversa inteligente com o leitor”. Arrisco que a crônica é uma conversa saborosa com o leitor.

Vejamos: a ambiência clássica está declarada, é o cotidiano, ou o que o cotidiano produz de raro: o dia-a-dia como diferenciador e norte de um gênero que se pretende à revelia de Fernando Pessoa: poesia que só se mostra ao olhar do cronista, prosa cujo maior esmero não é o enredo ou a forma, mas o sabor, culinária entre os ingredientes do cotidiano e os verbos. A “poesia do cotidiano” é a “poesia da crônica”: que só pode ser atingida pelo estar a crônica (ainda que o cronista seja poeta). Frases do sabor da rua, a inventalínguas.

E o “cotidiano interior”? E a as “questões do cotidiano”?

Bem, não sou mestre da literatura, de qualquer forma confio que a poesia pode estar ao lado de qualquer um: e até minhas não-crônicas se redimem na própria Belém, baía do esplendor amazônico, cicatrizes e nascentes, vazios estupendos e estupefatos em que a alma trabalha a travessia.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


40 - Bicicletas

Não sei se o leitor avistou um tipo de pessoa que aponta de bicicleta no alto das ladeiras, e desce sem controle, ganhando velocidade, até que bota o pé no asfalto e freia com a sola do sapato (ou do pé mesmo), e para a centímetros dos carros em disparada. Bicicleta completamente sem freio, adrenalina social.

Certa vez, um casal percorria a cidade nessa situação: a magrela não tinha freio, nem garupa: e a esposa do ciclista ia no varão, dificultando a necessidade de ele brecar com o pé: esporte urbano em dupla de alto risco sobre duas rodas. A Feira da 25 é point: os distintos curtindo a ladeira sem freio - as bicicletas a ponto de se desmancharem à frente dos carros -, tão acostumados que não se tem notícia de acidente.

Tenho cá minhas aventuras com bicicletas. Morávamos na Transamazônica e, para ganhar as primeiras bikes, eu (8 anos) e meu irmão Edinaldo (9 anos e meio) capinamos toda a roça de pimenta-do-reino (3 mil pés). As bicicletas que o pai deu como prêmio eram “semi-novas”, mas que festa! À época, nosso quintal prolongava-se na floresta, e a cidade próxima, Altamira, parecia mais distante que os 75 quilômetros de poeira. No isolamento, engatávamos a aventura de jogar bola nos vilarejos vizinhos (a 30 quilômetros), um time inteiro de bicicletas inverossímeis.

Tempos depois, em Castanhal, eu já com 16 anos, percorri de bike muito lugarejo, e jamais esquecerei o presente de minha irmã Beth: uma bicicleta de marchas - aquelas catracas e coroas especiais -, raríssima à época no município. Três meses depois, roubaram a jóia da frente de uma loja de discos, onde eu ouvia Lou Reed, Bob Dylan e Amado Batista.

Em Castanhal, também convivi de perto com a ciência de ter uma bicicleta aos pedaços. A catraca, por exemplo: as molas eram improvisadas com pedacinhos de sandália Havaianas; as agulhas e conexões se resolviam com arame de caderno escolar; já o freio (sim, o freio) funcionava com varetas em arame de construção civil. Um troço assim iria, de hora pra outra, deixar alguém na mão, ou na estrada, já que o futebol ainda nos levava longe; como socorro, o time tinha uma pequena caixa de ferramentas, com três chaves e apetrechos que não ouso discriminar.

Meses atrás, comprei uma bike incrementada, andei duas vezes, e fui alertado sobre assaltos em certos bairros - os que mais me interessavam. Presenteei a bicicleta, e me consola o fato de que o trânsito sobre duas rodas - sem freios - é perigoso como o dos carros. Pior é na estrada: quando ultrapassamos bicicletas sob as estrelas e começo a falar da infância, e minha esposa (implacável, criada em apartamento) finca o pé no acelerador, a praia já perto de mar doce.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


39 - Auto-retrato a pé

É preciso conquistar a linguagem, cortejar, se aproximar, se abismar, se arrematar na paixão, e é preciso aceitar quando a linguagem começa a repetir o ponto, quando precisa ser contestada, instada, revigorada, des’construída, desatada, amada. Tropeço, alheado, pela Benjamim Constant e a linguagem me vira a cara.

Essa metrópole, Belém, vale mais pelas sensações que pela adrenalina. Não nego que sou assim.

Mas os picos de adrenalina da cidade – a “loucura”, a arte, as águas – nada devem à turma dos anos 70. Sou bastante assim.

A luz que se vê ao fim do túnel de mangueiras é Nossa Senhora de Nazaré.

Da infância em Altamira, Transamazônica, recordo a ardente sensação da religião, o sofrimento, a abnegação (tal se prolongou até a adolescência) e, ainda hoje, com deslumbramento, me toca a poesia da bíblia, a transcendência por meio do arrebatamento: palavras de Deus, sentimentos do homem.

Passo, ao mesmo tempo, em frente à Basílica de Nazaré, à direita, e ao Cine Ópera, de filmes pornôs, à esquerda.

(Vi em vídeo-cassete, em Castanhal, na casa de uns japoneses dados à eletrônica, isso quando no Brasil nem se vendia vídeo, o clássico erótico “O Diabo na Carne de Miss Jones”; até hoje, algumas das imagens são as mais gélidas e gratas que o cinema me concedeu.)

De frente das árvores ancestrais do Museu Goeldi, vislumbro o mercado de São Braz, a uns dois quilômetros, e na largura da Magalhães Barata ainda cabe a nota de Manuel Bandeira: em Belém, as avenidas são estradas. Não sou do interior, sou do mato, o simples entrar na mata já me fez chorar, é um drama na hora de escrever poesia: minha relação com a selva foi mais densa que a de Casimiro de Abreu e meus versos tentam ir pelo mesmo caminho. (É preciso dizer não à linguagem, é preciso ser resistente, afastar-se dos lábios precipitantes, silenciar feito um cometa, partir da linguagem em procura da linguagem, como um mineiro sideral, noite afora, retornar com diamantes assombrados.)

Antes de o mercado de São Braz virar espaço cultural, eu e meu irmão, adolescentes, lá íamos da Terra Firme nos impregnar com o cheiro de peixe e de ervas amazônicas, e voltávamos na chuva que era a mesma da selva da infância. Sou da “perifa” como Belém, suburbanicidade, e não engano que bilhar e futebol me arremetem como as mallarmeanas medulas consteladas (é preciso ser duro e verdadeiro com a linguagem, e assim limpá-la, é preciso dessacralizá-la e assim descobrir-lhe, é preciso perscrutar-lhe cada ponto, como numa acupuntura da língua, e fazer, da palavra, carne e desintegrar a carne em átomos para a Ursa Maior).

A Feira da 25 se parece com aquele futebol de manhã de domingo (Baenão ou Curuzu) e o bairro da Pedreira – a periferia afirmada – faz a memória tão vívida que um samba passa no vento; vem, então, comigo, Ruyzinho Barata de alucinações, volta, poeta, a transpor a Senador Lemos, retardos canais, eita Belém de brenhas, palafitas de rios que viraram lamaçais. É preciso desentranhar a linguagem da linguagem – como extrair-se uma mulher de outra mulher -, é preciso habitar os meandros sem passado ou futuro, desmerecer o pensamento que precede o trovão atroado, é preciso coçar a linguagem com ungüentos, despertar-lhe todos os risos-de-canto-de-boca, amanhecer de sílabas olorosas como leoas.

É preciso conhecer a folha pelo talhe, e o talhe pela boca, talos nos dentes do menino lavrador. É preciso lavrar, desentranhar as raízes para ver de perto a linguagem, é preciso plantar-se na linguagem para merecer a seiva e o mel, minha Belém que nasce em si mesma, Vênus emergindo da concha dessas mãos.

É preciso tomar a Pedro Álvares Cabral, chegar ao rio Guamá da linguagem e fazê-la jorrar sobre si mesma, é preciso agarrar-se às margens da linguagem e trazê-la para as margens de si mesmo.

O sol lança a linha do dia.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

POEMA INÉDITO


Poema de ocasião

Canta, ó musa – ó vida -, a vida que começa
de Lana, eterna no tempo que não cessa.

Primeiro, prova, musa, apura os ouvidos,
verte a imaginação pelos sentidos;

o fluxo do momento, constante,
perpetua a beleza a cada instante

e a passo vai o pensamento
de firmamento a firmamento

- terra incrustada de estrelas -

peregrino relento do talento,
alma incidindo em cristal
a água flamejada pelos dias;

canta o que serás, eu, o que serias.

Canta, ó vida, a vida de Lana que não cessa,
infinita agora que começa;

(Venha lépida a eternidade
do tempo cronometrado das cidades.)

lúdicas, lúcidas emanências
sorvidas de acasos

e o amor aceso como um palco;

toda cor
o sol produz com a mesma dor,

sorve o barro a porcelana?;

o cinema que mana imana
a vida sobre a existência.

Decanta o presente; eu, a permanência.

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


38 - Às mães

O domingo das mães se foi, mas o dia em questão é a quinta-feira passada, quando se sepultaram Uraquitan e Ubiraci Novelino. Minutos depois do enterro, Dona Vilma Novelino, 55 anos, resumiu duas semanas de horror numa frase profética: “Nossos filhos já não são para nós”.

Naquele momento, Dona Vilma era intocável em sua condição de mãe, inviolável em sua pura qualidade de amor, doação, piedade. Uraquitan e Ubiraci foram atraídos para uma armadilha por um amigo de longa data (o empresário Chico Ferreira) e morreram estrangulados num assalto forjado; os corpos (atirados à baía do Guajará acorrentados a baldes de concreto) só foram resgatados após dez dias de penosas buscas. “Nossos filhos já não são para nós”, resumiu dona Vilma, como se dissesse: “Agora eles são para Deus, para os anjos”; e como se dissesse, sobretudo: “Damos à luz, cuidamos, zelamos, e simplesmente vem alguém e nos toma os filhos amados”.

Naquele momento, inviolável, Dona Vilma Novelino estava longe dos negócios dos filhos (da rede de 17 postos de combustíveis formada em doze anos, das acusações de que foram assassinados por emprestar, a Chico Ferreira, R$ 4 milhões a juros exorbitantes...), e estava longe da palavra “vingança”, sempre usada nas perguntas dos jornalistas ao patriarca da família, Ubiratan Novelino, e ao filho deputado estadual, Alessandro Novelino (ninguém perguntou à família do médico Cavaleiro de Macedo, assassinado durante um assalto, se pensava em “vingança”): Dona Vilma era, naquela quinta-feira, apenas este ser supremo, mãe, que acabara de enterrar dois filhos.

Num tempo de iniqüidades, num mundo onde não confiamos nem nos remédios, nessa época egoísta e egocêntrica, as mães são raras heroínas: o que fazem todo dia pelos filhos merece uma Legião da Honra por semana. A ligação com os filhos é eterna – uma amiga, por exemplo, Nadir, ia de carro do Rio de Janeiro para São Paulo quando sentiu um aperto no peito: “Preciso telefonar para casa!”. Ainda não havia celular, e tiveram que chegar ao primeiro posto de combustíveis: ao ligar, Nadir descobriu que o filho sofrera um acidente grave, na volta de Mosqueiro para Belém.

Os homens têm suas questões, sua maneira de botar para fora (quase sempre de uma vez só) tudo o que sufoca por dentro. O deputado Alessandro Novelino envolveu-se 100% com o resgate dos corpos; mobilizou um batalhão de amigos e autoridades nas buscas e nas investigações sobre os criminosos; foi visto em todos os lugares, em todos os horários, incansável; e, naquela quinta-feira, pegou ele mesmo a pá e acabou de enterrar os irmãos. Mereceu até uma carta pública do pai – após terem encontrado o segundo corpo – agradecendo-o pela perseverança, por não desistir de dar aos “meninos” um enterro “digno”. Nesses tempos carentes, até agora o deputado capitalizou aura de herói.


Dona Vilma, mãe, inviolável a estas fraquezas, consumava em si todos os pecados cometidos pelos filhos mortos: nenhuma mãe merece enterrar o que ela própria entregou à luz; e qual filho pecou tanto que receba tamanha punição: ser enterrado por quem o gerou? Dona Vilma, Ubiraci e Uraquitan estavam, assim, reunidos num círculo inalcançável pelas faltas dessa vida: mãe e filhos, simplesmente, redimidos de forma impiedosa por um tempo em que o nosso amor já não é para nós.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

POEMA DO LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Canção em volta

A chuva vésper é a dona da bola.
Retorno sem começo, albor sem fim,
lucidez alagada num delfim.

Ao chão da infância, a papila dos dedos
apanhava as palavras esfregando-as:
arredondadas de água ou erodidas,
verbos ou adjetivos.
NNN nnnnNNNNNNNNNNN Somos só
uma flecha de baladeira, uma
harpa de seixo aos pés de Orfeu. O sopro
do sabiá.
BBBBBbbbBBB Te trago à infância, onde
a sensação é o espaço; e o verso
trespassa o tempo como os sonhos

(é contra o tempo toda perfeição);

e logro, traquinas, o eterno: rio
atuado pela imaginação.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


37 - A inveja e o perdão

Carnaval é época de perdão, mesmo por que não há perdão maior que a alegria. Quando o carro de Momo passar, ponha nele todos os dramas, reais e imaginários, a falta de grana, de tempo, o estresse, o tédio, depois, sentado no paralelepípedo da calçada, sobrevoe como pluma este Brasil girado a pandeiro. Bem, como já passa o carro de Momo - e o leitor terá que me perdoar -, vou aqui despejar o coração.


Costumo dizer que não sou do interior, sou do mato, e meu universo infantil era mais interno que externo, mais o literário que o “real”. Este contato pródigo com o ideal (inclusive como coroinha na Igreja) conferiu-me temerária pureza d’alma, e o fato é que só aos 35 anos flagrei-me com inveja. A sensação durou uns dez minutos, e foi como uma descoberta: então isto é que é inveja! Depois disso, lembrei, claro, que amargara antes o duro sentimento, só não conferira a devida nomenclatura.


Também durante aqueles dez minutos descobri que sentimos inveja, sobretudo, de quem amamos. Quando não amamos, o sentimento vira justiça social, ou genuíno desdém, ou cômoda ignorância. Quando nos é uma pessoa cara, o coração, tão humano, cai como um patinho na lagoa do comum, e impõe ao amor a mais constrangedora das prendas.

O episódio de inveja me fez percebê-la, no cotidiano, de forma instantânea; e, quando detecto-a em mim, gracejo comigo e logo fico feliz com as gargalhadas do objeto de secação. Também fiquei mais atento ao Outro: às situações em que, por alguma fatalidade, eu pudesse causar inveja. Sendo inevitável a todos e a todos nociva, a inveja gera – ou deveria – uma relação de mão dupla com o perdão, que por sua vez é recíproco em si: liberta tanto o agressor quanto o agredido.

Lembro que João Paulo II, ao abençoar o homem que lhe tentara assassinar, comentou a necessidade de se perdoar o semelhante, num mundo falto. Como nos falta grandeza de papa, aproveitemos o carnaval para lavar a alma, para atirar a Momo o rancor, a vaidade, os sentimentos mesquinhos, para dizer eu te amo e tantas frases sem setido.

O carnaval de fato tudo pode, se é fantasia, se é um faz-de-conta inflado pelo extravasar de todos, perfeito como coração de mãe. Eu hoje também quero pedir perdão ao carnaval, e quero perdoá-lo, e que me perdoe o melhor inimigo, a quem perdôo, e que me perdoem as árvores, as mulheres e as crianças, e me perdoem os pobres e os ricos, os doentes e os super-atletas, e que eu possa perdoar as cachoeiras sujas que me banham e limpam.

Aproveitemos que Gregório de Matos era da Bahia - terra de ferveção -, para citar-lhe um soneto famoso, em que, quanto mais peca, mais concede a Deus a oportunidade do perdão. E aproveitemos que Chico Buarque é carioca, carnavalesco por excelência, para amarrar de novo nosso paralelismo: na marcha “A noite dos mascarados”, os foliões se aproximam sem ter como ver-se as faces, “Eu sou Colombina”, “Eu sou Pierrô”; a folia chega ao auge, e os pretendentes já não precisam saber quem são (“Não me diga mais quem é você”), pois, carnavalizadas as diferenças, ou somos todos iguais ou no mínimo harmônicos, “Seja você quem for/Seja o que Deus quiser”.

E também, como não?, aproveito para perdoar a mim mesmo, para atirar ao carro de Momo as minhas faltas insubstituíveis, meu descompromisso com a saúde, meus adiamentos, minhas ânsias, minha inveja e minha vaidade, minha arrogância e falsa humildade, meu desesperador desgarramento do real, vou entupir com tudo isto o carro dos milagres, digo, de Momo, e que Baco siga incansável em sua predileção por Belém, e que a folia nos digira como um fígado social, um fígado que opera na praça, a céu aberto, e que, sobrevoado daqui - do paralelepípedo da calçada - parece o Afoxé do Guarda-Chuva Achado.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


36 - Baixios

Dezenas de milhares de anos se passaram, mas resultou bem mixuruca este nosso futuro: não surpreenderia, digamos, nem aqueles bárbaros do Século XXI. Talvez a maior novidade para eles seria a clonagem, hoje, de qualquer animal de qualquer época. Basta ter uma partícula do bicho, mesmo algo que antes era considerado morto, tipo um osso seco. Bem, o fato é que “ressuscitamos” na maior grandes carcaças do passado e até mico-leão dourado voltou a existir.

A porteira das clonagens foi aberta quando as igrejas perderam a Centésima Quinta Grande Guerra, a dos Clones e Duplos. Os primeiros a voltar do túmulo foram personalidades longínquas como faraós e generais. Então viu-se que as reproduções em laboratório têm sempre outras personalidades e vocações, e quem era guerreiro na antiguidade ressurge travesti ou skatista. Mesmo assim, Pelé já foi clonado setenta mil vezes. O maior agravante é que, comparados ao raciocínio do homem atual (o Homos-Universus), os homens da velha Era Pós-Moderna são considerados idiotas. E acabam virando cruéis atrações, reunidas numa associação de protesto contra a reprodução de primitivos. Também foram gerados em laboratório todos os nossos elos (antes perdidos) e um museu odiado exibe ancestrais como os paleolíticos. (Alguns foram alfabetizados, e executam serviços mecânicos.)

Não é à toa que a Ciência Pura debocha do resto da civilização.

Uma pesquisa comparou dez mil espécies animais, e já passam de mil as que desenvolveram algum tipo de inteligência: claro. Os primatas foram os que mais se transformaram ao longo do tempo: claro. O choque veio dos impulsos básicos – ou corporais, ou instintivos, ou simplesmente sexuais: o macho da espécie humana foi o que menos mudou em relação aos antepassados.

Cem mil anos depois de Cristo.

E as atitudes eróticas do Homos-Universus continuam iguais às do Neandertal.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


35 - Toda mulher é sonsa

Depois da provocação do título, sei que as caríssimas estão checando a crônica, para ver qual é: o que coloca o autor como um declarado aprendiz da sonsice, que é a velha esperteza com inteligência, também conhecida como oblíqua e dissimulada. A provocação maior, no entanto, é falar certas verdades não às mulheres, em tom comedido, e sim entre machos, como no seguinte papo de vestiário de futebol:

- Sabemos que milhões de anos de repressão deixaram as mulheres mais minuciosas – capricha Sibelino. – E se o cara bobar, elas manipulam até ao ponto da omelete.

- Certas coisas não deveriam ser pronunciadas nem em estádio de futebol – completa Mauro, com um meio-sorriso - mas vou repetir aqui uma máxima de meu pai. Ele diz que, se o indivíduo deixar, as mulheres montam no lombo, enfiam os calcanhares nas costelas, seguram nos dois chifres e manobram: pra cá, pra lá...

Os quatro amigos riem, à vontade.

- É só observar quando elas chegam a algum bar, pra caçar – referenda Gaiato. – Porra, quando um homem chega, passa logo o pente fino em todas as gatas, e quando uma passa, olhamos direto pra bunda; elas, não: chegam, cumprimentam as amigas, sentam-se, pedem um copo de qualquer coisa com água tônica e só então (por cinco segundos!) passam a vista e sacam tudo.

Novos risos, e Maraca também se aproveita:

- E quando começam a falar das que estão ausentes?

Risos de novo, acompanhados de gestos bruscos.

Maraca prossegue:

- Pode ser a melhor amiga, a eterna, a companheira, mas sempre sobra um questionamentozinho, uma alfinetada.

- É que as mulheres lidam melhor que nós com a inveja – dardeja Sibelino. – Elas admitem a inveja para si, e falam sobre isso sem problemas, e principalmente praticam com fervor!

Os risos estão ainda mais altos, os gestos, mais largos.

- Mas tem uma coisa aí – Gaiato pondera. – As mulheres não encaram melhor só a inveja. Elas realmente dividem as dores, todas as dores, cara, até a dor-de-corno, que os homens não suportam admitir. Então, no cotidiano (essas besteirinhas que a gente faz), as mulheres vão lá e aproveitam logo pra se vingar, digo, extravasar, afinal é entre amigas, e isso deve fazer um bem enorme ao espírito.

- Mulher chorando é a coisa que mais me parte o coração – corta Mauro, algo sentimental. – Sem brincadeira, dá vontade de arrancar todos os cabelos quando vejo uma mulher chorando, reclamando de algum ponto obscuro da existência.

- Da existência, não, elas reclamam é de companheirismo! – espeta Sibelino.

- É por isso que mulher só sai em bando! – apunhala Maraca.

- É a necessidade de falar! – arremata Gaiato.

- Se uma mulher não falar sobre seu dia, ele não aconteceu – Sibelino viperino. – Elas precisam crismar os fatos comentando-os depois.

- Em detalhes, e com notas de rodapé! – Gaiato gargalha.

- O que me espanta é que, apesar de toda essa experiência emocional, elas são sentimentais, sonhadoras.

- Caramba, acreditam no amor! (Sibelino).

- Esperam o príncipe encantado! (Mauro).

- E se apaixonam como se fosse durar pra sempre! (Gaiato).

- Espera aí, não tem nada mais maravilhoso do que mulher apaixonada: o carinho, o sexo... – recorda-se Mauro.

Até Sibelino concorda:

- A paixão é a única coisa que vale a pena na vida!

- Vinhozinho, friozinho, fome pra caramba... – Mauro ainda sonha.

- O que eu não entendo é como, sendo tão pragmáticas, elas se apaixonam por sujeitos como nós! – Gaiato filosofa.

- Vocês não se envergonham de falar tão mal das mulheres? – Mauro enlouquece.

- Elas merecem! – Sibelino sibila.

- Nós também! – Mauro deve estar com dor de pâncreas.

- Mas nós somos homens! – justifica Sibelino.

- Sabe o que me tranqüiliza? – Mauro agora é um romancista cínico arrependido.

- O quê? – dois manifestam-se.

- Quando estão sozinhas, elas falam da gente com muuuito mais perspicácia!

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


34 - Parábola em Pã menor

Emiliano nasceu ouvindo música, e cresceu entre as flautas das cordilheiras. Ainda pequenino, entrou em transe num ritual ao ar livre, e descreveu cenas de séculos antes. Em outra cerimônia – em que celebrava oito anos - Emílio desapareceu, e logo ecoou a voz suave e arrebatadora. Do alto de um rochedo, o menino parecia soprar a canção diretamente nos parentes e amigos, e jamais haverá voz igual; tão linda que todos narrariam, exultados, como os timbres se transformavam ao vento e, para quem ouvia de baixo, soavam nitidamente como flautas de Pã.

Emiliano tornou-se músico e compositor, e aos nove anos conquistou os primeiros turistas, já nas ruas da cidade do México. E viu, com interesse e fascinação, como se fosse a primeira vez, o próprio rosto num espelho.

Passou meses olhando-se, isolava-se e fitava-se interminavelmente, numa melodia às vezes clara como a água, ou dura como o granizo. Anos depois, o susto, o horror: Emílio vomitou num bar, foi ao banheiro recompor-se, e a face não aparecia (ou aparecia embaçada) no espelho: ele enregelou-se como nos primeiros transes, voltou num impulso para junto dos amigos, não podia ser!, três minutos depois retornou ao banheiro e não havia dúvida – refletiam-se os avisos, a mulher nua no papel, dois jovens que entraram rindo, menos o rosto apavorado, que, para onde se movesse, sumia ou produzia um reflexo embaçado.

Emiliano passou aquela noite assustado, só podia ser alucinação, talvez álcool reagindo com as ervas em que participava, desde criança.

Acabou atormentado - seis meses de absurdas especulações - até Emílio enfrentar de novo a própria imagem num espelho - e recuperar o rosto abatido, olhos em fogo, respiração fora de lugar.

Emiliano então retornou aos Andes, e foi recebido como o mais amado dos seres.

Pediram-lhe para cantar no casamento de um primo - ele ainda tentou explicar que não cantava há meses. Foi silenciosa a mágoa da cidade, e Emílio mudou de idéia, horas antes da cerimônia: e soltou a voz acompanhado da pequena orquestra; só então soube que os músicos ensaiaram por nove anos, até acompanhá-lo.

Naquele dia, Emiliano descobrira que a música é que induzia aos transes; os sentimentos e visões eram produzidos pelas notas, liberando e ordenando o inconsciente, acessando quadros incas de séculos variados.

Semanas depois, Emílio compunha entre as árvores, e formou-se nele uma melodia tão alegre e suave que viu a esposa, bêbada, entre jovens eufóricos. Esposa que ele ainda não conhecia.


Emílio perdeu-se no mundo, cantando e vendendo artesanato em bares e comunidades. Na esperança de conhecer a visão.

Temporada na Amazônia, peregrinação por dezenas de países, percorridos a esmo; retornando sempre aos Andes, “onde o vento ficaria1se soubesse morar”.

Conservara o medo aos espelhos, e raramente fitava-se.

Já usara centenas de meios de transporte.

Uma vez, tocou “Asa Branca” com um grupo de peruanos, no Anhangabaú, São Paulo; dezenas choraram na platéia, a garoa fundindo o Nordeste com os Andes.

Emiliano conheceu muitas esposas, reveladas pela noite de tantas fronteiras; mas nem sinal da que o espera num bar.

Haverá mesmo essa noiva, ou tudo é ilusão? Existirá essa que ele ama através do tempo, a despeito de ser metropolitana? (Ela sairá da tv para o computador, e traçada em néon se aproximará rindo do espelho, sem medo de que o rosto poderá não aparecer...) Ou seria ela uma visão não do futuro, mas também do passado?

Emiliano já se perguntou mil vezes, e mil vezes acreditou que essa namorada, morena e bêbada, é, sim, tão real quanto a água; e um dia, após ouvir a história do músico forasteiro, ela até pensará se tudo não é mito, enquanto ele terá certeza da própria memória; e confiará que a realidade existe, e é Emiliano Montoya, nascido há trinta anos numa choupana andina, e não numa esplendorosa capital inca, há séculos soterrada. E finalmente não temerá nem o espelho, nem a flauta.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


33 - Drácula

Vampiro com dor-de-corno é o motivo maior de chacota entre imortais. Felício nunca se sentira tão humilhado, até limpavam os caninos à sua passagem, e de fato caíra com unhas e dentes diante de Roxana. Para piorar, a história parecia um dramalhão de época: Felício apaixonado por Roxana e a bela dividida entre ele, imortal, e um reles humano: entre um drácula de linhagem inextinguível e aquele sujeitinho passageiro e inconseqüente, poeta de terceira, humano e meloso, mas que diabo - nem quando sugou o melhor do Século Dezenove Felício tolerou o romantismo.

“Palavras! Palavras! Palavras!”, o vampiro não cansava de repetir. “Palavras! Palavras!”. Dor-de-corno é pior que ressaca de rum e pesa mais que a luz da manhã. Felício certa noite quase se ajoelhou aos pés de Roxana, parafraseando o conquistador Vinícius de Morais: “Com aquele poetinha, será o eterno enquanto dure; comigo, será de fato eterno”; mas Roxana, atriz de dezenove anos, estava disposta a representar o drama da morte. Felício apelava: “Se de fato não tens medo, escolhe um tormento de verdade: a minha morte imortal, que precisa fugir, a cada dia, do sol, e, a cada noite, das estrelas”. Mas ela seguia a esnobar. “Palavras! Palavras!”, Felício estava mesmo bronqueado, que palavras teria usado o outro para cegar Roxana?

Felício não poderia simplesmente surpreendê-la e morder-lhe o pescoço, ou Roxana o odiaria pela eternidade. Não poderia transformar o tal poeta em vampiro, ou o aturaria para sempre. E de fato não poderia tornar-se humano, nem que quisesse, “ou eu o faria imediatamente”.

Quanto mais inseguro se sentia Felício, mais Roxana lhe contrapunha argumentos, dizia não, detectava diferenças; parecia que se afastava irreversivelmente, e Felício encolhia-se como um pintinho na chuva.

Pra encurtar o conto, chegou o dia fatal (em que seria conhecido o eleito) e precipitou-se o lado trágico do cômico: Roxana escolheu ele, Felício – “ficaremos juntos para sempre”. Namoraram por horas até ele morder-lhe o pescoço, aproveitando a deixa da aurora; e separaram-se – Felício teve que fugir do sol. Na noite seguinte, reencontrou-a linda, de chapéu no jardim, cantando baladas a esmo; duas horas depois, enjoara-a. Na terceira noite, ele estava tão exasperado que disse a Roxana que já não suportava a situação. Ela descontrolou-se e revoltou-se e ameaçou-se a ponto de Felício revelar que havia uma alternativa desesperadora. Roxana ainda não era 100% vampiro. Podia morrer. Ela matou-se no tempo-limite, duas horas depois. Transtornado e aos prantos, Felício transformou em vampiro o poeta de terceira (para que sofresse também, eternamente, aquela morte) e não é que o infeliz notabilizou-se como o melhor drácula cantor e compositor de boleros?

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


32 - A primeira namorada

Quando Carlinhos tinha treze anos, tentou com dois amigos assaltar um senhor em Copacabana. O homem reagiu com chutes, foi ferido na mão, e, num carrinho próximo, pegou o furador de cocos. Enterrou-o no olho esquerdo de Carlinhos.

Um mês depois, o menino teve alta do hospital. O glóbulo fora extraído e, em casa, o ferimento não recebeu maiores cuidados. A cicatrização repuxou para dentro a região atingida, criando um pequeno buraco em nódulos, como um umbigo.

O tempo passou mastigado, como se o adolescente e depois o jovem contasse cada segundo. Carlinhos completa vinte e um anos, jamais esquecerá a dor quando o olho foi atravessado. Tão aguda que ele sentiu que morreria de dor. Tudo então turvou-se, e pensou na mãe.

Sempre que Carlinhos está triste, ou sofre algum baque, a dor retorna com laceração. E nela o jovem descarrega o ódio. De tal forma que às vezes não sabe se o que dói é o olho, e a má-cicatrização perto do cérebro; ou se revive a dor para sentir-se mais forte diante das dificuldades. Convive com a dor o tempo inteiro.

Carlinhos nunca teve namorada. Trabalha como carregador num supermercado. Já brigou por terem zombado de seu olho, e bateu numa prostituta que tocou na cicatriz.

Juliana vende água de coco. Na praia, perto do supermercado em que Carlos trabalha. Fitam-se todo dia, ao longe, ela com o furador de coco na mão.

Domingo, Carlos tem que fazer um trabalho extra, chega às seis da manhã. Dobra na rua do carrinho de coco: só pelo hábito, é cedo demais. Mas lá está Juliana!

Carlos aproxima-se pela primeira vez, evita olhá-la de frente, ela ri: pega o furador, faz a água espirrar, e entrega-lhe o coco.

Ele aceita, ri sem graça, ela olha-o com doçura.

Dizem-se os nomes, constrangidos, mas as frases não se liberam. Juliana, então, súbita, toma-o pelo braço e andam até o mar.

Sentam-se, de frente para o dia nascendo.

O barulho das ondas, o cheiro.

Ambos estão tranqüilos e surpresos, ela por entregar-se a um impulso, Carlos porque permite ser olhado de frente.

Dão-se as mãos negras, andam ao longo da orla.

Marcam encontro para o amanhecer seguinte.

No terceiro dia, beijam-se.

Duas semanas depois, ela beija-o em todo o rosto, e no olho ferido; beijinhos rápidos, cheiros, risinhos. Olha-o, e toca-o brincando na cicatriz, e ele ri e ri.

Pela primeira vez, Carlos não sente a dor do olho, o cérebro desanuviado como por magia.

No encontro seguinte, à tarde, ele usa pela primeira vez óculos escuros.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


31 - Na galera

Em golpes de imaginação.

Esse início poderia ser a palavra de Deus sobre as águas, ou golfinhos ensinando aos homens o passe-chafariz, ou “O encontro do Homem com o seu Primeiro Eu”, ou o futebol como o esporte do terceiro milênio, ou de como o futebol nasce não do barro, mas da terra, o início seria bem o rio ou o mar que todos guardamos da infância, os primeiros brinquedos, as visões que marcaram os olhinhos para sempre. Sim, a infância. Então o inicio tem que ser que para cada criança há uma história após a outra, que cada criança eleva o quociente de imaginação da humanidade, que um besouro pode ser o mundo e o mundo pode ser um besouro, e que para cada história encantada minha tinha uma palavra especial. Sim, aquele sentimento: os primeiros contadores de histórias, os primeiros livros. As capas coloridas. A imaginação em golpadas.

Assim pastoreada pela magia – ao amanhecer – acompanhemos essa bola rio acima. A semi-escuridão que emana da mata envolve-a; o sol que desponta auréola-a. Às vezes mergulhando no rio, às vezes suspensa em halo, a bola agora é uma canoa e leva nos gomos ritmo de maré e pato no tucupi; danças de ventres sinuosos e um milhão no Círio; transporta uma raiz revolvida e o começo da água. Assim tangida, de canoa a bola vira boi-bumbá, passe a curta-distânca do Pará ao Maranhão. Aí a bola enfia as mãos por milhares de seixos de babaçu – como noutros lugares escorrem entre os dedos grãos de feijão ou cachos de trigo – e, em Goiás, o sotaque límpido do Maranhão aprende a cortar os “nn”.

Em minas a bola fica séria, melancolia que mira longe tramada pelas montanhas. (Nela Drummond é um ser em contemplação, extático, e Milton deixa a voz aos diamantes.)

Fronteira dos pampas: para o frio, mantas e chimarrão; milongas à solidão.

Em São Paulo, a bola passa um dia andando de ônibus e metrô e uma noite perambulando entre bares e tribos. Só então quebra vidraças na Paulista.

Após visitar o Maracanã, a bola cai de boca no Rio.

Na Bahia é o corpo pra lá, o corpo pra cá, o corpo pracolá...

Varando o Nordeste, a bola é sal ao sol (o rosto dos homens se representa com motivos regionais de terra gretada).

Até que no Ceará a bola relaxa – agora jangada tangida pelo vento – e as bordadeiras presenteiam-lhe com a claridade tropical. Bordado de Brasil, a bola vira tapete e pousa na França em vôo de Aladim. Recolhe-se por toda a Paris em três dias de meditação. E só então se mistura aos países da Copa.

Conhece o admirável homem novo das neves, o homem da montanha, latinos em sedução fumegante. Vai à África em tabelinha com a Ásia. Faz amigos em todos os países da Terra. Recolhe assinaturas de variadíssimos talentos.

Quando volta à galera (este lugar de onde vejo o jogo) a bola contém a forma do globo terrestre: imagino que nela se encontram todas as culturas, todos os meninos e domingos: todo o conhecimento – mas purificado pela paixão. Sinto que a bola é um sonho: os homens, todos os homens, pertencem à mesma família – ligados pelo ramo do Futebol – e se compreendem, se respeitam as diferenças. O Eu confia no outro. A chave do emocional.

É nesse reino mágico em que ingresso – sonho sem diferença entre criança e torcedor - que os artilheiros contam histórias de aventuras. A galera ouve de boca aberta, o coração aos pulos, olhos brilhantes-arregalados. Então o artilheiro anuncia que são iguais os direitos das crianças e adolescentes e os dos torcedores, e adota – de volta ao início, fechando nossa circunferência – por princípio um parágrafo único: toda criança e todo torcedor têm direito ao livre desempenho de sua paixão e de sua imaginação.

Estar na galera, a-final, é aviar histórias.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


30 - O centro de Belém

Em entrevista recente, o professor Benedito Nunes comentava a necessidade de as cidades terem um centro: lugar de encontro, convívio, integração. Um lugar de todos os cidadãos: com prazer, auto-estima, respeito. Neste sentido, domingo passado as ruas de Belém, no Arrastão do Pavulagem, e depois a Praça da República, no show do Arraial, foram o centro de Belém. Um centro que se movia na medida em que o povo.

Quinze mil rostos nas ruas, todos os corpos, todos os sorrisos. Devassos, pobres, intelectuais, devotos, artistas, ricos, talentosos, pernas-de-pau, a Praça da República tornou-se toda a cidade.

O elemento aglutinador era a cultura popular - forma de expressão e auto-afirmação do povo -, capitaneada pelo boi-bumbá. Aqui valem duas palavras sobre o bumbá, a partir de considerações do maestro Julio Medaglia sobre o samba: tal qual o samba (no carnaval, as baterias são orquestras de batuque para quatro mil dançarinos) o boi-bumba é uma música coletiva, feita para agregar, não individualizar, para ajuntar, interligar, daí repetir a batida, a mesma para todos, em qualquer lugar da praça, reforçada pela dança: samba que é ritmo sintetizado numa caixinha de fósforos e é também dança, como o reggae e a valsa, ritmos sintetizados em dança, correspondência corporal, sons e movimentos repetidos, aglutinadores. Talvez pensou o leitor que essa necessária repetição empobrece os arranjos e as melodias; no entanto, basta dizer que Paulinho da Viola, que dá de dez no Chico Buarque em tradição, mereceu da vida essa história: mostrou o samba “Foi um rio que passou em minha vida”, ainda na avenida, logo após um desfile frustrante da Portela no carnaval - e quem ouvia já memorizava, e a música passou a se reproduzir, e a tristeza pelo desfile falho se extravasava naqueles versos, e das ruas o samba saltou para os ônibus, e invadiu bares e metrôs, e simplesmente se tornou um clássico instantâneo: cantada pela cidade horas depois de mostrada a algumas pessoas. E “Foi um rio...” é uma das melhores letras/melodias da MPB.

O grupo Arraial do Pavulagem não apenas toca boi ou lundu: é uma síntese de lundu e boi: sonoridade compacta e personalíssima - a despeito das batidas clássicas -, apurada em vinte anos de estrada: a partir da livre iniciativa de cada músico, atingiu-se uma digital sonora como poucos grupos hoje no Brasil. E, a muitos belenenses, o Arraial transporta para instantes clássicos da memória, canções que arrebatam, primeiro, pela melodia bela, que toca o sentimento da música, o estado da música; e são motes do que, outrora, aglutinou sentimentos intensos em nossas vidas, isso desde que votar em Lula contra Collor foi estar à beira de uma revolução. Os sonhos políticos são bem diferentes agora, se é que são sonhos, mas uma coisa é igual tipo na universidade: as meninas. Índias, negras, negras, índias, brancas, ruivas, intensas, revolucionárias; na praça entupida, qualquer um pode ser Ovídio, e se interessar por todas as mulheres que existem, desvelando em cada uma peculiaridades e ardores.
Não sei se era já a própria embriaguez, ou se a Daniela vai me matar hoje ou depois de ter nosso filho (mês que vem), mas o fato é que as meninas eram as mesmas do passado, então como não olhar, espantado, deslumbrado com o fenômeno que parecia um espelho numa dobra do tempo: como não reconhecê-las, vinte anos antes, da universidade, depois das aulas, o bilhar com cerveja, o Bar do Parque fervilhante de artista e prostituta? (Mulher no bilhar não precisa nem ser Ovídio.)

Enquanto houver tanta pobreza, não existirá um centro, digamos, democrático. Nosso centro está onde o povo está.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


29 - Um outro real

No filme “O Exorcista”, um padre-psicólogo esclarece a consciência da Igreja quanto a possessões demoníacas e a algumas visões santificadas: depois da descoberta do inconsciente e de doenças como a esquizofrenia, “sabemos que muitas dessas visões não passaram de delírio”. Na esquizofrenia, a pessoa desenvolve uma vida paralela - a do delírio - e nela acredita, e as lembranças são reais. De tal forma que, quando se descobre doente, uma das maiores dores é saber que muitas memórias são ilusões.

Você certamente já viveu momentos tão intensos, tão mágicos, ao ponto de, depois, o tempo ter passado tão rápido que tudo se tornou uma espécie de sonho. “Parece que não foi real”, dizemos de rosto afogueado, ainda hipnotizados por uma pausa reconfortante da vida. Esta crônica seria sobre tais momentos, mas confesso uma intenção do arromba.

A casa de Tarcísio é também um ateliê-galeria. As cores são extravagantes, os móveis são estilizados, a iluminação é extremada (“mais clara que o dia”). Ali, mesmo o que não é artístico torna-se, por osmose, por evocação, por simbologia. Assim, o armário é autêntico - abriga discos, livros, anotações. Mas, cercado de tantas telas, de tanto sugestionamento, deixa de ser objeto: vira objeto, como numa instalação. E assim as cadeiras, o porta-CDs, o cinzeiro - tudo se transforma, se metaforiza - personificações.

As coisas nos são se as somos - tornam-se vida não paralela, mas superposta à nossa de cada dia, vida nova, mas sem nada de ilusão, nova vida real, que não é delírio, mas imaginação. Sábado desses, num encontro em casa de Tarcísio, aconteceu algo que torna ainda mais tênue a distância entre essas todas dimensões. Em determinado momento (você não terá vivido isso?) tive certeza de que estávamos numa cena, como no teatro, mas sem ter consciência de que representávamos. Continuávamos nós, cinco pessoas senhoras dos atos, mas obedecíamos ao roteiro, a uma marcação, como num ato. Ora, se o texto não existia, preenchia-se a lacuna com a intuição: o texto não fora escrito, apenas imaginado, e chegava até nós pela memória da arte (a cena recordava-se em nós), arte que é subjacente, inconsciente como um segundo espírito, uma segunda alma, e assim (inspiração) é sempre a senhora das próprias obras. Éramos iguais às coisas em importância cênica, trans-figurantes, supra-reais, tornando verdade uma imaginação inexplicável, do campo da “irrealidade”, e que, naquele momento em que se deixava surpreender, não poderia ser negada.

Esta é uma crônica sobre a memória, mas não chega a ser um convite para que o leitor corra a uma galeria, a uma biblioteca, a um teatro. O convite é outro.

Anotem com cuidado isso, meus fraternos: o que não esqueceremos, o que nos marca, o que lembraremos como num sonho (de dor ou prazer) é que justifica a nossa vida, “prefira um minuto de intensidade a mil anos de banalidades”. Quantas vezes, por pura preguiça, passamos um domingo igual aos outros, quando percorrer ruas desconhecidas poderia gerar novas lembranças, quando ir à videolocadora e descobrir um clássico poderia mudar nossa vida, quando pegar o carro e almoçar numa cidadezinha próxima poderia gerar uma sensação nova.

Cada um de nós é um feixe de tempo, e quando multiplicamos por dois, o tempo em feixes adensa-se, e quando multiplicamos por mil, o tempo materializa-se, concretiza-se, potencializa-se, e quando multiplicamos por milhares, o tempo produz um estágio estranhamente puro de imaginação.

Abrindo o jogo: se nunca foi, vá, hoje, ao Re-Pa no estádio do Mangueirão. Você, um dia, poderá até duvidar se foi sonho. Mas jamais esquecerá.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


28 - “Sem conflito, não tem teatro”

Teatro, a arte da vida. No tablado, o ser humano é a tela, a partitura; ali, o ator – coração, pâncreas, mãos - é que é o principal elemento da obra de arte.

Em pouco mais de uma semana, morreram três personalidades do teatro brasileiro: Raul Cortez, Gianfrancesco Guarnieri e o diretor paraense Luís Otávio Barata. Pessoas que entregaram suas vidas para outras vidas - no palco, e, doação recíproca, com a platéia.

Luís Otávio, companheiro de uma geração relevante do teatro paraense (Walter Freitas, Geraldo Sales, Cacá Carvalho...) segue a nos guiar bem para este outro universo: a cena - o ator, a vida –, Romeu e Julieta, dois perdidos numa noite suja.

Já repeti dez vezes que a metáfora é que nos tornou humanos. Olhávamos a lua, e como não a entendíamos, dela nos aproximávamos com uma metáfora ou um mito: e a lua foi o rosto de pessoas mortas, ou de uma deusa da chuva; nossa primeira relação com o meio – com o “real” – foi assim pura imaginação. E não mudou muito.

Se víssemos por trás do que chamamos “realidade” - por trás do ser humano - constataríamos que quase tudo é fachada. O “real” é um código de conduta, um terreno neutro, onde mentimos para não matar uns aos outros.

A cena é uma máscara, não uma fachada; o personagem não é um real enganoso, mas uma “persona” que não tem como mentir ao público; tão real que substitui a “vida verdadeira”, a encenar os mesmos dramas e alegrias, esperanças e desolação. Entrega do palco – o autor que incorporou cada personagem, o diretor que formatou o tempo e a emoção – e da platéia: transportada, vivificada num âmbito paralelo, desligada das emoções que já conhece; renovação, purificação do ator – catarse – e do público. “Sem conflito, não tem teatro”, diz o grito de guerra do palco; “a arte da vida”.

Vencer a falsidade do real com a realidade da imaginação; e, pela onipresença da arte, superar o maior dos desconhecidos: não há, como caçoaria o próprio Luís Otávio, espetáculo mais paralelo que o de depois da morte.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


27 - Metáfora e verdade

Reuniões de família parecem sempre acontecer no passado. Delicioso é reviver, pela memória dos mais velhos, episódios esquecidos e contar também as aventuras. Mas sob um risco considerável: descobrir que certas lembranças, caras, não correspondem à realidade.

Por anos contei, com sucesso, entre amigos, certa história mágica da infância; domingo desses, em oportuna reunião com parentes até de outro Estado, alguém desmistificou tudo: minha história não era tão mágica, pelo contrário: jamais tocarei no assunto, muito menos agora.
Por que às vezes guardamos, como verdadeira, uma “versão” dos fatos? Por que, mesmo adultos, transformamos, sem perceber, fantasia em realidade, e vivemos não mentiras, mas “verdades não-reais”?

Talvez tal “adaptação” não seja só pra fugir da dura realidade, ou apenas pra contar uma história mais rara, “mágica”, de heroísmo. Não é simplesmente um mecanismo para se realizar, no presente, pela memória, o que não se realizou no passado: é mais do que usufruir, como “realidade nostálgica”, o que um dia foi sonho e hoje é invenção.

“Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, sentencia o ditado: ao menos para a mídia, para o vizinho, para os anais. Mas como uma inverdade pode tornar-se verdade para mim, eu que vivi outro fato? Como modifiquei a história original e, em mim, verdadeiramente, a história modificada tornou-se a real - sem má-fé, sem intenção ou “proveito” aparente?

Afirmo, leitor: não é só para ter uma história mais interessante, ou tão somente mudar os fatos pra sobressair-se na narrativa. É que somos (para além do que imaginamos) determinados pela fantasia, pela irrealidade, pela impossibilidade.

Na época da pedra lascada, a metáfora nos criou ou a criamos? Teóricos da linguagem descrevem que nos tornamos humanos quando, milhões de anos atrás, fitamos em volta e em vez de ver, digamos, uma pedra lascada, vimos um amuleto ou uma cunha: vimos uma metáfora, raiz da fala, tronco da abstração, e foi a fala e suas linguagens que nos tornou humanos e depois inventou as maravilhas da matemática.

A metáfora – o ver outra coisa, o aproximar-se de um objeto a partir de semelhanças – nos é constitutivo, assim fomos engendrados, “somos metáfora”.

Sim, mas por que a metáfora vira “verdades não-reais” ou simplesmente mentiras? E em que momento?

A metáfora originou-se do humano – ainda nem existe noutros bichos - e também nos deu origem. Com isso, grande parte dos hábitos e culturas vem, de forma indissolúvel, da fantasia (toda palavra é nomeação: antes de ser definição). Os pilares do mundo que desenvolvemos - a pedra polida, o silício – foram ordenados sobre simulações: “somos” e continuamos metáfora.

Arrisco dizer que vivemos a transição de realidade-simulação para realidade-virtual. A pedra deixa de existir, o dinheiro, o esquilo. E, em vez de um escape para o mundo das idéias, do pensamento, mergulhamos em bytes, animações, ilusões multicoloridas. A metáfora torna-se “real”. Veja-se o sucesso estrepitoso do jogo second life, um universo virtual em tudo igualzinho à: realidade.

Percebe? Em vez da realidade em carne e osso, preferimos a mesma realidade em second life (segunda vida).

Essa “irrealidade do real” demonstra, em parte, porque, nas memórias, modificamos os fatos, puxamos a sardinha para certas brasas: “criar” é da natureza humana, compulsiva, irrefreável.
Além do que, num mundo “irreal”, metáfora é poder - especulação, poesia, calúnia. É, para o bem ou para o mal, “conhecimento”, instrumento de sucesso. De tal maneira que, no cotidiano, “ocultar a verdade” é um expediente indispensável para a harmonia de seres e poderes.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


26 - Chuva

Quando quero amar Belém, digo chuva, e a cidade me reconhece de longe, e amo Belém nas ruas, sob as mangueiras cacheadas, amo Belém na Cidade Velha, onde o Tempo mora em casarões, amo Belém no Reduto e no Telégrafo, onde o cinza luminoso dos crepúsculos polvilha nossa alma e gera uma melancolia alegre, amo Belém na Pedreira e na Matinha, onde as meninas desfilam na volta da academia e os garotos transpiram pela fala indelicadezas hormonais: essa Belém que só encontro quando chove, e o asfalto reflete não a luz, mas a luminosidade, como se o Sol não se importasse com tanto brilho, ou a Lua se dissolvera numa tela delicadíssima que nos envolve secretamente, tal um jardim sem cigarras.

Em quase todo o mundo, a relação dos povos com a chuva é escassa, como se os torós nem existissem ou pudessem ser evitados; na Amazônia, a chuva é cotidiana, íntima, incontornável, “de casa”. Por isso, quando quero amar Belém, digo chuva, e na Feira da 25 a tapioquinha recende como se o cheiro viesse do chão, e no Ver-o-Peso os barcos antigos parecem pintados com texturas na lama da paisagem, e sob a chuva a Praça da República é a mais extensa tela da cidade, e em algumas ruas de Batista Campos faz sol mesmo sob os aguaceiros, e, no Entroncamento, Niemeyer mora numa nuvem e há dois anos não sai de casa, e na Cidade Nova todas as pessoas parecem combinar para sair ao mesmo tempo (tão logo passe a chuva do início da noite), e no Guajará o asfalto respira a ausência de prédios, e no Curuçambá as estradas sinuosas dão à cidade um colar de árvores, e no Benguí piscinas de água natural recebem ameixas e meninos.

É também certo que, quando quero amar a chuva, digo Belém, e se for em São Paulo a garoa torna-se cálida, e se for no Rio, o mar entranha-se pelas paredes das ruas e odora no chope, se for em Ouro Preto, dezenas de poetas se reúnem em silêncio nas ladeiras de pedra com telhado, se for em Brasília, o tráfego flui como o rio de aço de Drummond, se for na Chapada dos Guimarães, as rochas jorram águas límpidas sobre plantas e cristais, se for em Marituba, três ruas pedirão para morar noutro lugar, se for em Benfica, os sítios tomarão um banho de mil anos, se for em Mosqueiro, a água trocará duas palavras com a água e eu amanhecerei no Ariramba ou no Marahu.

Sim, quando quero amar a chuva, digo Belém, nem que fique preso sob uma marquise, nem que o trânsito me retenha, nem que o meu amor espere ao celular, nem que eu chegue atrasado ao Mangueirão, nem que os bares já tenham fechado (à meia-noite), nem que liguem de madrugada para gozar a extinção do meu time, nem que a Perebebuí esteja só buraco (ali perto o Bosque é um pedaço da infância que não envelhece), e na Primeiro de Dezembro (não a João Paulo II, recente-renomeada) amanheci tantas vezes que conheci duas estrelas de seu céu, pois nem agora que a Primeiro de Dezembro foi proibida de ver a madrugada, desisto de dizer Belém, digo Belém e amo essa chuva de todas as horas, de todas as ruas, com suas imagens clássicas, suas calçadas tomadas, a parabólica que os carros fazem em frente ao museu São José Liberto (ex-presídio), estas sensações de Belém tão à flor do corpo que ando feliz da vida com esses temporais.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


25 - Paracuri

Semana passada, fui, como jornalista, ao Paracuri (entre a Pratinha e Icoaraci, uma das áreas mais pobres de Belém) e senti-me no mínimo em Marajó. O pescador Daniel Romão nos conduziu numa rabeta (tipo de canoa motorizada, muito veloz) e em dois minutos estávamos, eu e o fotógrafo Gilmar Farias, no meio de uma pequena mata, onde se destacava o traço esguio dos açaizeiros. Descer da rabeta era dificultoso, pois chovia e à beira-rio o chão cobria-se de lama, e ainda havia que se equilibrar numa palmeira-pinguela. No clarão, três casas espaçadas, entre árvores e sem energia elétrica (a água é encanada) onde vivem famílias de pescadores. Na maior, de um único e grande cômodo, moram nove pessoas. Naquela manhã molhada, a morrinha se espichava nos recém-acordados, outros estavam espertos há horas, à beira do fogo. Pegaram um porco na própria área (conviviam, soltos, espécimes variados de patos, galinhas, cachorros) e os caldeirões de água quente o pelariam dali a pouco. Faria companhia a outros três, cevados durante treze meses, para os quinze anos de Jéssica, filha de um dos pescadores.

“Político só vem aqui pra pedir voto”, acusou Daniel Romão. “Eu já disse pra um candidato que acabou na Assembléia: depois da eleição, sei que tu não vara mais aqui”. A referência não é a propósito da política, que aqui não cabe, mas de “varar”, tão paraense: atravessar, mas não à beira de remansos: cruzar em linha reta, enfrentando cipós e galhos. E também, nas cidades de interior, andar não pelas ruas, mas através dos quintais, entre-cercas (na ilha de Algodoal, muitas cercas, de tão entreabertas, existem para demarcar o terreno, não para impedir a passagem dos conhecidos), “De repente, ele varou em casa”, ouvimos amiúde, denotando não apenas o inesperado, mas que alguém percorreu uma boa distância (amazônica) antes de chegar. Vara (de árvore cortada) ilustra bem essa lida com a natureza, o que agora remete a um poema do paraense Antônio Moura, em que o “vento varão vara (vira vara e penetra na) a selva”, “fauno/a/fauna”, erotizando a expressão a partir do velho despudorado vento, tão íntimo de quem convive com veredas. À beira do rio Paracuri, nessa época de temporais, andar é pisar nem que seja em fina camada de lama, lisíssima, e o melhor é acocorar-se, estender as mãos para as chamas, e ouvir sobre o ofício da pescaria e daquele contato tão direto com a natureza.

O aniversário de Jéssica seria celebrado na Sacramenta, dois dias depois, em casa de familiares, e veio à tona o suíno que, amarrado e agora quieto, talvez se conformara com a própria sina. Sete anos antes, capturavam-se porcos na beira do rio, “e eram selvagens mesmo, o sabor da carne era muito diferente”. O camarão também dava mais – até vinte quilos por maré (sempre à noite); hoje não passa de cinco quilos, nos melhores dias. A poluição (o rio Paracuri é o esgoto de três residenciais) prejudica, de forma direta, milhares de famílias em várias áreas de Belém, mas este não é nosso assunto. A reportagem era sobre a pesca na área urbana da capital e Daniel Romão decidiu nos levar até a ilha de Outeiro, na rabetinha. Dois garotos (um de catorze, outro de oito anos) completaram a lotação e contornamos, pelo rio, parte da orla de Belém, defrontando carcaças de navios, grandes embarcações, balsas (gigantescas plataformas de ferro), rebocadores, lanchas, catamarãs, as gaivotas imóveis sobre as estacas compunham esculturas expectantes. Perto da praia do Cruzeiro, engatamos uma parábola até Outeiro, que parece tão perto pela água, e na ilha conhecemos famílias semelhantes às do Paracuri, mas com melhores condições de pesca (barcos, várias redes, em vez de um simples matapi para alguns litros de camarão) e era igual o tipo de prazer, de paixão pelo ofício, e de alerta: “Há cada vez menos peixe; joguei uma redinha aqui perto, hoje, e não arranjei nem o da ‘broca’. Meus irmãos foram para a Vigia”, lamentou Ronaldo Vale. “A poluição está dominando a baía”, mas não há que se insistir aqui nisso. O assunto agora é ter caído por terra minha pretensão de conhecer Belém, os segredos, as grutas, de ser maior que a cidade (provocando apavorantemente o tédio) e descobrir que não, que precisamos é nos despir da preguiça e da boçalidade. Só lamento não ter ido ao aniversário da Jéssica.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

DOIS POEMAS DO LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Ao lado do cisne

“- A água fenece, brota:
o tempo de uma borboleta.

Tua forma
é como o vôo do urubu

estarão contigo
estes fogos de estrelas.

Eu, por mais de um rio
lastimei a vida, lamentei o amor;

cantas antes de morrer.”



Dando voltas com um Eu do Outro

Há mais de um predador todos os dias,
talvez um rex, talvez uma serpente.
É o alimento, bela, da libélula,
da tilápia, da aranha, dos suspiros.
Há vírus - Tróia das hemácias - que
se fazem cópias ardilosas para
surpreender nossa defesa. Toda
célula mata e morre, e a fuga
angula um tango com a perseguição.

(São como uma elegia em corrupio
o ataque e a defesa entre as espécies.
Reparo os truques do camaleão,
que ganha a vida ao viver de ilusão;
o limão laborou o azedo, a abelha
tem veneno na bundinha de mel;
o gambá escafedeu-se borrifante
da cascavel que eriça guizos áridos;
toda roseira exibe espinho, toda
felina arranha mesmo sem querer.)

Conformes aos vírus que se copiam,
ludibriamos nosso in-consciente:
por trás do Eu há outros Eus, gerados
ao se conter ou liberar instintos.
De acordo com a situação, um Eu
assume, muitas vezes em surdina.
Tenhamos por exemplo esse amante
que surge, esgueirado aos lampiões:
qual, agora, o seu Eu, se vemos dois,
um que é casado, resistiu bastante
e teme imaginoso pelas conseqüências,
e outro que, como um Iago de si mesmo,
plantou-se frases, sugestões, e foi-se
convencendo sem suspeitar, até
sucumbir-se a uma versão final,
complicadíssima, da moça à espera:
qual é verdade, o que engana a si
resistindo à paixão, ou o que se engana
sugestionando-se, a ponto de, após
o idílio, se jurar viva inocência?

Quanto a nós, diva, quem sabe, entre tantos
Eus marcados pela fração da rua,
não teríamos também um para esta lua?

segunda-feira, 15 de junho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


24 - Amazônia

No clássico romance “A selva”, o português Ferreira de Castro afirma que o amazônida se contenta com pouco, o mínimo já “faz a Tróia dessa gente”. Por anos, tal sentença me doeu, como se, mais do que constatação sociológica, fosse quase uma leviandade de estilo, algo preconceituosa.

Oito décadas depois do livro, pesquisa do IGBE sobre Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) atesta que os 13 municípios da ilha do Marajó estão entre os mais pobres do Brasil. O governo do Estado encomenda, em seguida, uma pesquisa qualitativa em todos os 143 municípios paraenses, e 87% dos marajoaras se declaram felizes. O pior IDH do Pará é o mais feliz do Brasil.

Muito pouco “faz a Tróia dessa gente”, o Ferreira de Castro cutuca a minha cabeça, e há pelo menos duas razões básicas para esse “conformismo”: a convivência com a natureza e a herança índia.

Quem for a Barcarena pela Alça Viária se surpreenderá com o volume dos três rios transpostos pelas pontes estilizadas. O mesmo acontece na travessia para Colares, a água determinando todas as atividades, e a caminho de Soure ou Cotijuba. Imagine de um helicóptero ver a ilha do Marajó, um continente de 50 mil quilômetros quadrados; agora derrame tanta água no entorno dessa área que tudo se vá alagando, todas as partes baixas, formando outras ilhas gigantes, como Mosqueiro, desdobrando rios desmedidos, como o Pará, produzindo as únicas praias de água doce do globo.

O marajoara não tem só um contato profundo com a natureza; é unha e carne com essa água megalômana e fértil: vai, de canoa, da água doce para o alto mar, pescar, e, num bom barco a motor, navega como um prático o desmesurado mundo que tem por medula o rio Amazonas: os furos e rochas, os bancos de areia. Há essa realização no pescador marajoara, orgulho, auto-estima.

Uma integração com a natureza que guarda íntimas qualidades índias, até pela forma ancestral da pesca. Canoas, arpões, matapis, tucupis, palavras-objetos vivas, mais o amplo vocabulário-hábitos-sentimentos-sensações incorporado de vários dialetos indígenas. Uma relação de subsistência, sim, longe dos serviços públicos, mas com uma tranqüilizante perspectiva índia quanto à natureza e ao tempo. Entre as pessoas mais felizes do Brasil, escarneceria Ferreira de Castro, pode-se morrer de tédio, nunca de estresse.

Basta elencar alguns números da Amazônia para dimensionar perspectivas e dificuldades: concentra 20% da água doce do planeta, 20% das espécies de animais e 20% das vegetais; tolera alguns dos mais reacionários males sociais do Brasil, como o trabalho escravo e os assassinatos de encomenda por questões agrárias; é uma das três palavras mais faladas do mundo, cobiçada, estratégica; o Pará tem ferro para ser explorado por trezentos anos; menos de 4% dos paraenses acessam internet regularmente; o Estado abriga milhares de assentamentos rurais de complexa e demorada solução, além de um passivo ambiental literalmente devastador; e grande parte do povo enfrenta um dos piores IDHs do Brasil.

O mundo cobiça tanto a Amazônia (mesmo desconhecendo-a, como a maioria dos brasileiros) que ações de fato transformadoras começam a chegar à região.

Muitos países enriqueceram explorando, quase à extinção, os recursos naturais; o desafio da Amazônia é explorar sem destruir; o desafio é o desenvolvimento sustentável, mas quanto tempo demorará com tantos problemas a resolver, problemas que não começaram ontem, não acabarão amanhã? A resposta é de cada um, mas, sobretudo, dos governantes, nesse momento em que a História passa tão palpável à nossa frente.

Na era da comunicação, logo o menino de Afuá vai desejar o mesmo que o garoto de Londres; “a Tróia dessa gente” fica para além dos trapiches com nomes índios; não dá mais para viver de brisa.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


23 - Não tem tradução

Você tem vergonha do Pará? Melhor: tens vergonha do Pará? Ou, por outra: conheces a importância, para a humanidade, do médico Gaspar Vianna?


Tratar-te por tu, leitor, já cria um fraseado, um caquiado na língua, e nessa toada cheguemos à terra do você, ou melhor, do cê, ou, mais precisamente: de Noel Rosa. Para encontrar um nome escondido aqui na floresta, na água descomunal.


Repito a máxima de Noel: tudo aquilo que o malandro pronuncia, com voz macia, é brasileiro, já passou de português. É brasileiro, não inglês, ou norte-americano, ou senegalês. Não apenas um falar próprio, “português do Brasil”, mas o homem que daí emerge: mais do que emancipado, um homem livre, que se assume do jeito que é, que tem a própria personalidade, o próprio lugar no tempo e no espaço: brasileiro, substantivo fagueiro.

Para além de poeta, Noel Rosa foi, aí, um dos sintetizadores do povo do Brasil, que com ele descia morros e se misturava em multidão: cada brasileiro é um pouco Noel, pois fala com muito da linguagem que ele ajudou a afirmar, afirmando-nos.

Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil”, definiu-nos com o adjetivo “cordial”. A palavra vem de coração, e lhe resumiu os significados sentimentais: afabilidade, gentileza, alegria, faceirice: isso é cordialidade, palavra que vem do coração. Recentemente (mais de meio século depois de “Raízes do Brasil”) os cariocas foram eleitos, por turistas, como o povo mais legal do mundo. Noel tinha razão: é brasileiro, já passou da herança portuguesa - o que também significa que veio depois, que assumiu a própria cara após uma colonização, e que, aí, se assumir, se inventar, significou também se libertar, superar.

E o que veio antes da colonização? E o que veio antes de sermos cordiais brasileiros, ou de sermos navegadores, ou “brancos”? Ou, de outra forma: o que veio antes em ervas, em raízes, em navegações? O que veio em Tamoios, Pariquis, Timbiras? Em Tubinambás, Mundurucus? Nomes que nos fundam.

No Brasil, há a cultura que recobriu (a dos colonizadores), a que se descobriu (a do cordial brasileiro, afirmada pela negritude) e uma que precisa ser resgatada, ou melhor, precisa ser assumida, que é a amazônida, a da floresta, a tua, leitor, com toda a influência (a mistura) portuguesa que este “tu” carrega.

Mas, antes de chegarmos ao nosso nome florestal, citemos outro luminar da terra do você (terra em que tanto paraense tanto se espelha), Tom Jobim: “Artistas como Machado de Assis e Villa-Lobos inventaram o Brasil: o Brasil não existia, a gente ainda tá inventando”, dizia o compositor, botando a excelência artística sobre séculos da história do povo, mas reconhecendo que o Brasil é ainda um caldeirão: o resultado das misturas não se completou.

Quais os “inventores” do Pará? Quanto à língua, recordemos palavras extraordinárias, tambaramã, zarabatana, tucumã, cunhã. Ou, por outra - tacacá, maniçoba, tucupi, jambu, tucunaré.

E quem poderia dizer “é paraense, já passou de português?”. Poetas como Bruno de Menezes e Max Martins, compositores com Waldemar Henrique e Walter Freitas, romancistas como Dalcídio Jurandir e Haroldo Maranhão: os que se assumiram. Que se libertaram. Que deveriam dizer “é paraense, diferente de carioca, Lisboa ou Salvador”. É preciso, ao menos, que descubramos quem já nos descobriu, nos “inventou”: quem “sintetizou” o tipo de beleza – e de feiúra - que somos nós.

O brasileiro é misturado, mesmo que seja 100% negro ou branco. É misturado porque a cultura é misturada, a língua é misturada, o futebol, a música. É misturado-branco no Sul, misturado-negro na Bahia, misturado-índio no Pará, na Amazônia. Quer queiramos ou não. Guamá, piramutaba, carapanã. Cupu, andiroba, muiraquitã. Enquanto não vencermos a própria história, ela será contada por colonizadores.

O nome que viemos encontrar é, assim, um intransferível, insubstituível, universal e benemérito substantivo próprio: parauara, batuque.