quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Um relâmpago

A moça passa
À Cristiana Chaves

Sempre chove em ti, chuva desagasalhada,
faz sempre sol, a luz lenta
para te entregar o tempo.
Tenho medo de te encontrar numa galáxia sem luas,
numa matéria sem música.
Anjos viajam à terra para morrer saciados
e sei que me esvairei correndo
como um deus banido pelas rosas.
Tua boca é uma linguagem alcançada por três punhais.
És uma assassina que mata sempre a si mesma.
Deixa eu escavar teus olhos
como quem desenterra um feitiço,
lamber tuas pegadas como um bicho de sangue,
te devorar antes de te conhecer
e te dizer a ti no nosso primeiro encontro.
Te mostrei sete caminhos; escolheste o amarelo,
achando que era o da melancolia.
Na rua, às vezes, tua tristeza te acompanha de longe.
A noite que te perdeu ainda uiva perto do rio.
Tua coragem sempre sabe onde te encontrar.
A luz fica lenta pra te entregar o tempo.


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Dois poemas "físicos"

Samba

Nossa paixão
quando partias
gerou em mim
ritmos, compassos
e o samba que faço
vem com dois amantes:
no gemido sincopado
o tempo volta atrás,
para os teus braços.


Instante paralelo IV

Moléculas que formaram
o tendão dum dinossauro
estiveram, por alguns dias,
numa ponta de unha
que já cortei.
Só os poemas, constantes:
os mesmos,
milhares de anos,
átomos sonhando
nos papiros selados.                                
Abres as páginas - tu,
musa inoculada nas estrelas -
e os antigos átomos, os mesmos,
aquelas palavras
de pronto se revivem
no exato instante da criação;
e sei, milhares de anos depois,
que as escrevera para ti.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

A sina botafoguense






Constelação solitária
Para meu filho, Pedro

Te passo essa camisa – do Botafogo –
para assinalar uma linhagem fora do sangue
e, nos estádios, saibas o hábito de torcer em pé
entre os pavilhões
como, nos botecos, de pé se bebe
irrequieto, expansivo, inabordável
ao longo dos balcões.
Te passo essa bandeira – constelação solitária –
para que, uma a uma, a estrela única
preencha o vazio expandido pelo uivo
de fogo das arquibancadas.
(Bola, mundo espantado,
menino, mestre sem cerimônia.)
Te passo essa determinância – botafoguense –
como quem diz “Brasileiro”,
a derrota em chamas
de vitória
na garganta antropófaga

da imaginação.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Para as mulheres de sangue quente

Canção da ninfomaníaca

Cigarras avisam teu corpo
para a tempestade.
Não sabes conduzir: jorras.
Música para conter o sangue,
este solo de palavras
boca a boca,
para a arritmia em pelo,
brasa contra brasa:
solo para incandescer
sem sufocar.

Esta é mesmo a minha arte:
música conforme à dança,
no crescendo da tua garganta,
música para suportares a vazão
da tua ebulição,
para o desejo caber no corpo,
vulcão aos goles da própria lava:
foder os teus excessos
(o atrito gera contradanças
de pimentas machucadas),
consumir o que passar dos teus limites,
vigiar o ponto de angústia,
evitar que a água te atropele,
que vire aflição,
ansiedade-chateação,
impedi-la que descompasse sobre mim,
exasperando os fluidos,
dança de timing, essa minha,
represar, liberar, dosar, induzir, conduzir,
e teu corpo cante até rachar
sem uma poça, um nódulo de agonia.

E, então, essa especialidade: o silêncio.
Oitocentos compassos de silêncio.


Canção da ninfomaníaca (2)

No instante vicioso

- a ânsia,
o risco do teu desejo
agastar o tempo -

estalar a palavra.


Canção da ninfomaníaca (III)

O desejo queima
ainda uma vez
- ao atravessar os olhos -
e para de gritar.

Tua paz, de pele.

Meu amor, de imensidão.


segunda-feira, 31 de março de 2014

um sonho da poesia

Espelho cristalino (2)

Tuas versões preteridas
vivem só em mim,
poema:
retoquei a rosa
com verniz,
a rosa dos esgares,
renegada num diamante
empalhado.

De que escapávamos?

Quando me for, poema,
eu é que viverei em ti,
cristal cego
de mim,
trincadas as águas da memória;
sem minhas lágrimas recusadas
em cinzel sobre papel,
sentirás que ficamos
mais sozinhos?


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

sonhos sonhos são

instante paralelo I

Quando estás longe, viras palavra.
Escrevo contigo
e materializas
nossa memória.
E já me puxas para o poema.
Câmara de imaginações
aceleradas,
flutuações de magia.
Chorar de palavra, na medula.
E escrevemo-nos, dentro do poema.
Sentidos linguícios fluências fluídicas -
texturas -
físicas ficções.
Uma palavra te acorda risonha:
“Chegamos!”.
Pagas o táxi, noite fria,
eu sentado no batente, à espera.