terça-feira, 30 de abril de 2013

Andorinhas


Em Marabá não é diferente: a cerveja da sexta é pra descarregar a semana, a galera mais relaxada, as buzinas mais eufóricas que estressadas. Assim também para Jorge Guedes, professor até as 18h, escritor frustrado noite adentro.
O lugar, clássico do núcleo Nova Marabá, um dos três que formam a cidade, é um largo com banca de revista, dois bares (as mesas e cadeiras de plástico, amarelas e vermelhas), estacionamento, supermercado, farmácia, telão animado com mídias eletrônicas, parabólicas, antena em torre de recepção e/ou transmissão sabe-se lá de quê.
Cerveja. Papo com os vizinhos das mesas em volta. Garçom brincalhão.
A noite se aproxima. E elas chegam – centenas, milhares de andorinhas, às voltas, sincronizadas, são as notas e os instrumentos da sinfonia. E nosso amigo Jorge Guedes é tomado por uma inspiração – que não lhe acorrera das outras vezes em que assistira à cena: as andorinhas têm não apenas radares individuais, mas formam um enorme radar em si mesmo, onisciente em si de todos os movimentos isolados. Não se desviam individualmente, aos círculos ou parábolas; formam um organismo completo, milhares de peças, e executam as evoluções uniformemente, da primeira à última conectadas, coordenadas, determinadas por um todo.
Milhares de andorinhas voando a velocidade pouco urbana, a centímetros umas das outras, e nem um choque, nem uma alteração – o todo em movimento - produzindo desenhos parecidos com os que as músicas geram numa tela de computador, imagens difusas e improváveis, cores caóticas, formas surpreendentes que correspondem a sons mais ou menos graves, extensos ou curtos, instrumentos diferentes. Imagens, aliás, identificadas com as que se formam no telão eletrônico embaixo da coreografia passarinheira.
Jorge Guedes também entende logo – as andorinhas estão formando imagens para quem vê de fora – para quem vê como um todo, e não intrinsecamente – formam desenhos numa clara interação com a galera embaixo, cerveja, mesas sintéticas, tênis de látex.
“Não se choquem, meus amorezinhos, que nenhuma respingue aos meus pés o sangue da poesia”, Jorge Guedes deseja com todo o seu talento literário.
O guardador de carros ergue o punho, e dispara - o fogo de artifício atravessa a sincronia das andorinhas – choque - e quatro caem espedaçadas aos pés de mesas e clientes.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Galeria: Van Gogh


Dois poemas submersos


Mar

Os que, em ti, sentem náusea
varejam de remotos cemitérios.
O tempo vaza em ti como um galeão
carregado dessa substância estúrdia, a dor,
sangramento de corais, 
hemorragia do inconsciente
de tudo o que pereceu sem esgotar a fala.
E a ti os anos ocorrem aos milhares,
os arquejos que alquebraram os suicidas
insuflam albatrozes e golfinhos.
A eternidade vem dar em ti, mar,
humilde da proficiência
de tua monotonia alerta,
de teus moinhos de genes.
Acúmulo do imemorial, alinhamento
de surdas imaginações, em ti
o poema desafoga-se por compressão.
Viagem em si, mar, destino de todos os portos,
circunferência instintiva, bússola
dos quatro elementos. Aqui, cheguei.
Magma azul que refunde os raios,
plasma este sonho da palavra:
Quando eu for cremado,
que as cinzas encontrem o teu sal,
à margem onde desaguará sempre o rio da infância
sobre a pedra do meu canto:
que se consubstanciem no teu tempo imutável.


Para sempre

À beira rio, onisciente como Hefesto
diante das forjas,
acompanho a travessia:
a quilha revelando a infância,
formando o quintal balbuciado de sonhos,
a varanda pendida do talhe do açaizeiro,
coalhos de estrelas pela grama,
o primeiro livro, a menina encaracolada,
o êxtase no início da carne,
o desejo pelo mar,
o poema zurrando sobre a música,
a mulher estrangeira que viveu uma só noite,
a esperança, a utopia,
a heroína sangrada numa poça de vinho,
o último dia na universidade,
o último encontro, despedida,
o favo do olhar, o mel amargo,
tudo a quilha revela
e a passagem do barco desmancha,
como o amor eterno, que passa a cada dia:
para sempre,
o esqueleto arenoso do rio.

II

Horas depois, porém, o rio amazônico
se torrencia, a maré arrebenta no cais,
o caudal joga com a noite
e sereias se lançam dos mastros
sobre a água viva.


segunda-feira, 22 de abril de 2013

CONTO INÉDITO





O olho de areia

Na areia imemorial, o olho se forma – pequeno redemoinho.
Atravessa os meridianos, as temperaturas, as cores – um diâmetro de cerca de quinze metros, a produzir estranho som – uma onda, contínua, não um zumbido, onda oval, que dá voltas sobre si mesma, e parece sempre se aproximar de quem ouve, mas nunca chega.
Linha do Equador. Belém, Amazônia. O olho para sobre a floresta, iluminando as diminutas ilhas. E, em volta, tudo se tranca – as frestas das casas, os telhados, as portas, janelas, porões, tudo o que veda a luz do sol se fecha, tudo o que impede a passagem da chuva se trava, ninguém entra, ninguém sai. Madrugada atônita.
E o som – o que será?, todos se perguntam – quem está nas ruas pensa que o som se produz dentro das casas trancadas; quem está nas casas pensa que se produz nas ruas. Parece mesmo se aproximar, mas nunca chega. Medo de algo brusco, uma explosão, ou falta de ar, ou fogo disseminado. O olho, no entanto – tudo capta – tudo lembra – tudo reflete – tudo constitui – e esquece.
Cada imagem – milhões por minuto - é plasmada, deposita-se no fundo do glóbulo, e pinga – o olho pinga, sempre, captando e pingando sempre, enche-se e vaza, mareja-se e rechaça-se, sempre cheio e sempre vazio. O barulho (que ensurdece por dentro, dentro da gente, onda, vibração que desperta o som no íntimo dos homens) é esse movimento do olho de se ver e cegar – ver-se e cegar-se. O barulho é a movimentação dos círculos da memória em cada um.
A maioria demorou a perceber que o som – as ondas, as vibrações – já não se aproximava, mas se distanciava – tão aos poucos que é como se não se afastasse, apenas uma impressão. Dentro da gente.
O olho pinga, retornando, pinga, paira outra vez sobre o deserto. E se inicia um novo redemoinho, uma nova tempestade – não um novo olho. E o glóbulo é envolvido no ar pela areia, e soterrado ainda no ar pela areia, os últimos plasmas, as últimas gotas, tudo seco, áspero – o olho cai no deserto. E é coberto. Recoberto. Afundado. O barulho é sufocado. Não mais vibra. O barulho tão íntimo, tão meu, tão teu. A memória só nossa que não terá uma segunda chance entre os irreconciliáveis grãos do esquecimento.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Galeria: Peter Greenaway, "O livro de cabeceira"


Cinco poemas


paixões

o poema trisca o bico do teu peito
e tudo se envolve
na eletricidade que nos revolve


O primeiro poema

Árvore caída, tronco podre, pubo:
florido de cogumelos amarelos.
Ventos desencontrados
lançam, ao tronco, uma semente
da mesma espécie de árvore.
Folhas verdes.

Silvo estranho –
plantas e bichos atônitos -
vento ordenador:
em algum lugar do mundo,
pela primeira vez, alguém falou.



O quintal

Quando o tempo
me separou de mim,
também ele se partiu
como uma hóstia,
metade se multiplicando
e esvaindo,
me ascendendo e fulminando,
a roda da plenitude
de
caída
na chuva fulgurada.

A outra metade está
nesse quintal.

A muda da árvore que somos,
infância,
a palavra muda, intacta:
o tempo, pétala perene
corolada na memória;
eu, canto-contínuo
no instante-vazão-em-mim,
pólen pleno
da própria estória.



acaso

anterior ao cacto, que vive apenas
do sol (flor do torrão do coração);
por trás desse instante:
milhões de raios fazem
o céu pegar no tranco;
antes dos ventos chicoteados por Zeus,
o motivo motivo:
o acaso,
a causa do átomo,
não o fortuito -
a causa primeira:
a idéia da origem,
indivisível,
a onisciência da matéria,
virtude do destino -
o dado das circunstâncias eternas -
o primeiro sopro, a pluma da fábula -
o começo do infinito
para todos os nomes
e todos os rumos,
não o fortuito:
o agente de deus,
acaso,
no princípio do verbo.


O quinto elemento

Estradinha ascendendo a serra –
raio de terra.
O luar polvilha os pinheiros,
retarda o rio desfiladeiro.
A menina hippie é tão linda
que amanhece.
No meio da pedra gigantesca,
umidade: a água quis pegar
um pouco de sol.
Mas de onde veio?
A rocha mina.
Mauá, instante paralelo.
(O cheiro do vegetariano
deitado na floresta
atraía formigas e borboletas.)
Palavra deflagrada: eu em fogo.
Qual o cheiro do poema,
o número atômico da poesia?
Atraio voos sem pássaros,
seixos afloram sem vau,
cores se exalam das flores.
Palavra, quinto elemento.
O coração bate tão íntimo
que tudo inspira.
Mina de silêncio.