segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Castália





Amor, Amor. Era mesmo esse o nome esculpido na placa de madeira, envolvida em folhas e finos fios de trepadeiras. Amor, Amor, como se também o lugar que a placa sinalizava precisasse ser confirmado, dia a dia, sede e fonte, sede, fonte. Então fomos, eu e ela, pelo caminho de Amor, Amor, sorrindo apenas, sorrindo com braços, pernas, cabelos, respondendo às vibrações que o sol provocava nas plantas, nas rochas, em nós. De forma que fechamos os olhos, e avançamos de mãos dadas, sem hesitar diante de obstáculos como pequenas pedras, cipós, zumbidos de insetos. Paramos, os olhos fechados, e nos abraçamos, e nos despimos num impulso de serenidade, não de ansiedade ou tesão, como num jogo; nos despimos sem nos ver, e prosseguimos de novo de mãos dadas, uma quietude crescendo em silêncio, o dia se esvaindo em nossa pele, casulos da luz, poros acesos, minúsculas terminações para a lua e as estrelas. Reduzimos os passos, sentimos, por vibrações, que algo à frente impedia a passagem, mas não abrimos os olhos: paramos, nos ajoelhamos abraçados, e deitamos, absorvendo o silêncio de milhões de vaga-lumes maravilhosamente reais numa espécie de imaginação. Então sentimos a brisa.

Uma brisa que não chegava a nós, mas emanava de nós, que começava em nós e apenas nos envolvia, brisa que era como trocar um sorriso, duas pessoas, amor, amor, sem mais ninguém, sem nada mais em volta. Pressentíamos, mais do que ouvíamos, a brisa roçar nas folhas, atravessar os feixes de folhas e raízes à flor do chão, gerar pequenos remoinhos perto dos cabelos, das mãos. E iniciou-se o calor – quase imperceptível, na palma da mão, no pescoço, e logo na pele dos braços, nas pernas, um calor ameno, mas que fazia suar, envolvidos por uma amena câmara de calor, a expectativa de que o calor aumentaria, mas não, e isso incomodava mais que a temperatura, uma temperatura parada, e então pressentimos a água – os olhos fechados, era um jogo?, deitados na câmara de calor, e a água veio em gotículas, formadas a poucos centímetros da pele, solidificadas ao calor dos nossos corpos, e assim tudo parecia em harmonia, a brisa, o calor, a água, o abraço, o beijo, os beijos, as carícias, o aconchego, sem ansiedade, sem fúria, sem a mínima violência – por quanto tempo? Como se a luz se preparasse a si mesma e, ao descarregar-se, iluminasse tudo em volta a partir de dentro de nós, e um sorriso duplo como num desmaio, e uma escuridão que não era a ausência de luz, mas uma viagem, que não era um desfalecer, mas um repouso ao meio do caminho de Amor, Amor.

Acordamos ao mesmo tempo, abrimos os olhos – o espanto de não saber onde estávamos, nus, e levantamos olhando em volta, sem respostas, sem entendimento daquele lugar, que não era mais o caminho para Amor, Amor, e o silêncio era tão absoluto que incomodava, como num aviso, e nos abraçamos como para confortar a ausência de explicação. Nada falamos. No abraço, ouvimos o barulho, água escorrendo, era mesmo água, e seguimos para o barulho, e logo, na base de um gigantesco morro coberto de pequenas árvores, descendo pela pedra, vimos a água soando numa música suave e contínua, e mais acima, poucos metros para dentro do morro, como dentro de um berço de pedra, a fonte, borbulhante, límpida, formando um laguinho minúsculo, respingando a partir do fundo nas plantas pequenas e muito verdes.

Aproximamo-nos como que por instinto, o silêncio era absoluto, nada em volta, quilômetros e quilômetros sem uma pessoa, um bicho, uma casa. Como podíamos saber que era a fonte de Castália? Pois que sabíamos. Ela, a amada, parou a poucos metros do laguinho, abaixou a cabeça e chorou, não deixou que eu a tocasse, chorava serenamente, a cabeça sempre baixa, então se aproximou e me abraçou forte e demorado, chorando agora com o rosto erguido para o sol da manhã, chorava e abraçava como numa entrega sem volta, entrega que tanto poderia ser de êxtase como de fatalidade. Eu a conduzi até a fonte – devagar, pela mão, e o pequeno lago silenciou como se nos reconhecesse, parou de borbulhar, e uma brisa suavíssima embalou por um momento as pequenas folhas em volta, e entramos na fonte, a água abaixo dos joelhos, e a namorada outra vez chorou, e me abraçou como se esperasse alguma coisa, e então eu a ajoelhei, nua, e comecei a banhar-lhe com a água de Castália.

Molhava as mãos e lhe refrescava a pele, despertava-lhe os poros para a tepidez, os braços, o pescoço, as mãos em concha embebiam-lhe os cabelos, o rosto, os lábios, ela agachou-se dentro da fonte, e me curvei para acariciar-lhe a pele com a água, e falei – há quanto tempo não falava? – esta é a fonte sem tempo, fonte para as sementes de pedra, esta é a água amniótica que absorveu a luz em clara e deu à luz teus olhos, quanto tempo dura a perfeição?, preciso fechar os olhos, vamos fechar os olhos para que cesse todo movimento, fechar os olhos para que tudo vire sentimento, a sensação cristalina, a sensação verde, a sensação azul, eis o volume em camadas de luz, em camadas de seiva, eis a manhã em camadas de sol, banhar tuas folhas, tuas raízes, sustentar teu voo puro, a pino, espalhar os polens dos teus braços e despertar o silêncio, acompanhar-te à inexistência e ouvir a música que vai te gerar, este sou eu, esta é a voz da minha flauta, esta é a melodia que te ocorrerá quando nos conhecermos, esta é a água da pedra, a pedra junto ao mar, este é o início do mar, um côvado de eternidade que o sol renova no torno de si mesmo, órbita onde flutuam minhas palavras para um silêncio tão completo que já não acordaremos.

Nossos olhos fechados ouviam as raízes, as seivas, os cheiros, as frutas mais distantes, e de novo sentimos a brisa, e de novo sentimos o calor, e de novo sentimos a chuva, e éramos a brisa o calor a chuva o vento o fogo a água, o vento espalhava em nós o fogo e a água, a água aplacava em nós o fogo e o vento, o fogo nos queimava a pele, a língua, o fogo se auto-devorava em nós, e nos abraçávamos desamparados, desencontrados, contrariados, e o abraço aumentava o incêndio e a tempestade, e o vento destruía as árvores em nós, e o fogo queimava as frutas, e a água sufocava nossas raízes, o fogo secava nossas fontes, o vento recobria nossas sementes, o fogo contra o vento, o vento contra o fogo, eu era o vento e o fogo? Eu era o vento, e o fogo, quem? E ela era a água? Ela recolhia as próprias células como para uma cabana em si, e o vento, o fogo, em volta, lhe querendo queimar, querendo derrubar as taipas, e ela fazia das células uma pequena casa como um ventre, e o vento assolando os troncos desolados, e o fogo vertendo cinzas pelos olhos cegos da paixão, ela pediria ajuda à terra, mas já não conseguia falar, pediria ajuda ao vento, mas já não ouvia, pediria ao fogo, mas já não sentia frio, e então as faíscas se espalharam sobre as águas como meteoros implodidos em gotas de fogo refundidas em cristais de memória, diamantes brilhando entre os rescaldos, tudo em volta chorando em torno de nosso abraço, o fogo o vento a água as raízes as sementes as seivas a manhã calcinada pelas descargas fora de órbita, Orfeu se esvaindo no gesto de adeus que se refaz e desfaz nos braços de todos os amantes.

Outra vez acordamos ao mesmo tempo, já não estávamos na antiga Castália, mas de novo na estrada de Amor, Amor, e estávamos vestidos, mochilas, bússola, relógios.

Nos olhamos, tristes, acariciamos as feridas comuns, braços, rostos, nos abraçamos fortemente, longamente, e nos desabraçamos aos prantos, e aos prantos nos afastamos, cada um por um par de veredas, cada um multiplicado em novas encruzilhadas de veredas a caminho do Amor, no caminho do Amor.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Balada do sangue





A Natacha Colly, vampira

Vou te cantar em jorros de sangue, jazz aos borbotões sobre o tema do renascimento, vou afinar minha paleta pulsada em semitons escarlates e entornar as cordas do corpo em ludicidades de morcego: vou te celebrar num banho de sangue, minha rosa consanguínea. Eu te amo significa o meu sangue, eu te amo significa a origem sem fim, eu te amo é minha fonte de sangue entre genealogias verdes de folhas anis, eu te amo é a minha pedra coagulada, e repito - eu te amo, eu te amo, rubi, granada, eu te amo estonteada sob profundidades magmas, jaspe, ágata, e eu me esvaio como um sol para emergires em transbordamentos lunares. Há o sangue de antes, de quando avancei pelas ruas para respirar por tua boca; há o sangue de durante, em que o infinito se fragmenta na iminência do vazio; e há este sangue novo, do depois, de agora, este sangue em que a música lateja em nós como se estivéssemos ligados pela mesma jugular, eu transfundido em esquinas esbraseadas, tu suspirando pelos olhos, serena entre brancos lençóis.
Vou te cantar com sangue, arquejante de tanta vida, vou te cantar em sangue ininterrupto, uma avalanche de sangue, veias de chuva amazônica, vou produzir um mar de sangue para embeberes de mim um lenço branco, flamingo de Espanha deixando para trás as despedidas do amor, eu te amo com o meu sangue para vertiginar, eu te amo com o meu sangue – é o meu sangue, meu sangue – para agradecer, para transcender, para retornar, para me expandir, para preencher, para promover sinestesias no íntimo das galáxias, meu sangue que parte para ti e reponta nas nebulosas, meu sangue que se filtra em ti e as estrelas revivem, caudaloso entre a Via Láctea - tocaste um idioma que não conheço, ouço o perfume inflamado que aspira o som do mel vermelho que me ensinaste a haurir de mim. Eu te amo, repito, aos descompassos, eu te amo, te amo.
O nome do meu amor é sangue, sangue delicado, sangue sorriso, sangue florescido, a vida me disse adeus, no primeiro dia de minha adolescência, e me reencontrei à frente pelo sangue como por um rio, meu tempo feito de sangue, tempo para beber, para passar na pele, no rosto, eis meus cabelos, tua medusa púrpura incendida, meus cabelos para hipnotizar, para fluir, para inebriar, para levar de veia em veia como de vilarejo a vilarejo, do coração ao cérebro como um livro borbulhante, deixa-me te inundar, te prender e libertar para flutuar, deixa-me encenar as sombras do amor para te iluminar de amor, deixa-me te curvar, na última catarse de mim, no último degrau de uma escada eterna, como um plebeu artista humilha uma princesa feliz, deus está caindo do céu, vês, deus é vermelho e vai se ajoelhar aos teus pés, deus é vermelho e vai resvalar no teu desejo, manchar-se nas resinas entre cipós, novas sístoles cancioneiras para a primeva selva, és tão linda que um deus, um homem precisa se conter, o caçador de leoas deve molhar os olhos no orvalho para que não o cegue o ímpeto carnívoro, fui levado a mim quando injetaste em mim o meu sangue, o cheiro no teu umbigo veio do primeiro lago, ainda no éden, tuas virilhas vazam para que minem as fontes perto de deus, finalmente cheguei a mim, vindo de ti, vindo do mais distante dos lugares, a que me convidavas desde antes de o criador pensar em existir. Então eu agora amo, te amo.
Meu corpo chegou, finalmente, ele que veio como um faro, como um sinal, como um tarô cego entre os astros, improvisado, metaforizado, transfigurado com sangue, por isso aprendi o que sempre soube, a dizer amor, por isso repouso onde sempre estive, amor, amor, e teus braços me acompanham dóceis pelas esquinas da nossa cidade, e encontro o que sempre tive, e tanto sei cuidar e atordoar, aprendi o que sempre morri, sacudir, toldar, e acalmar, clarear, de novo tenho minha infância, outra vez apenas o instante, a sensação, ó minha garça campesina à luz do lago límpido do sexo: sei matar minha sede sem morrer, sei saciar o meu faro sem te abandonar, me ensinaste com meu sangue, me redimiste por meu sangue, este é o meu sangue, e teu gosto é infinito como minha jornada, teu gosto do meu sangue, teu gosto do todo, teu gosto do pleno, meu sangue que triunfa como num levante contra o vácuo, e eu te amo: porque, pela primeira vez, pela primeira vez, pela próxima vez, pela curva do sangue como um coração índio à curva do rio, eu gozo, gozo e, depois do gozo, não sou lançado no vazio onde os homens se contorcem da imperfeição punitiva da natureza. 

sábado, 2 de junho de 2012

A garota do adeus





Faltavam sete minutos para as cinco da tarde. Thomas poderia simplesmente sair, divagar pela rua, retardar o passo, caso necessário, até o encontro, às seis e meia. Mas deliberara sair às cinco horas, e isso parecia aprisioná-lo no quarto do hotel. Sempre fora assim: metódico, lento, consciencioso, “chato”, maníaco. Sentou-se na cama, abriu a cortina e olhou através da vidraça: carros no estacionamento, movimento intenso na rodovia à frente, funcionário do hotel com uma mangueira no jardim. Thomas voltou a percorrer ansioso o quarto, lavou outra vez as mãos e outra vez olhou-se no espelho, repetindo o gesto de passar a mão pelos cabelos curtos, perfeitamente penteados.

Cinco horas. Thomas desligou o ar-condicionado, abriu a jaqueta e saiu. No lobby do Itacaiúnas, tirou a mão direita do bolso da jaqueta e acenou para os dois atendentes. Recusou com a cabeça o oferecimento para um táxi. Ganhou a rua devagar, como indeciso, a cabeça baixa.

Desceu pela via à esquerda da avenida VP8, contra os carros, o sol de claridade ainda intensa, mas de temperatura amena. Thomas fechou a jaqueta, como se o frio aumentasse. O encontro aguçava-lhe de tal forma a ansiedade que suava gelado.

Avançou com a cabeça sempre baixa, a evitar os olhares das poucas pessoas que vinham. Em certo ponto, à margem, uma cavidade com grama reduzia o espaço entre o meio-fio e a passagem dos pedestres. Thomas parou, olhou à frente, vinha uma moça de uns dezenove anos, como ele. Aguardou, com a cabeça erguida, ela passar, e notou-lhe a surpresa ao fitá-lo – ela hesitou, baixou a cabeça e prosseguiu. Ele então avançou, constrangido – a moça por certo estranhara sua palidez extraordinária, que produzia um constante ar de doença, e havia ainda a jaqueta para frio, sob o sol e o clima seco de Marabá.

A primeira imagem que Thomas Uchoa Azevedo tinha de si mesmo lhe fora apenas narrada pela mãe ... pela tia... pela tiamãe, na verdade: ao lhe rasgarem levemente o pé para o teste do pezinho, o sangue raiou e sua mãe biológica chorou de alegria, de forma inexplicável: chorava,  chorava, abraçava a todos chorando, nitidamente de alegria, aliviada por algo que os outros desconheciam. Alguns dias depois, quando saiu o resultado tranquilizador do exame, simplesmente entregou o bebê à irmã, em Belém, o rosto triste como se fosse morrer a qualquer momento, e foi-se embora, sem nada falar, sem justificar - entregou o filho à irmã e desapareceu.

Criado pela tia – mamãe, mamãe – mãe - sempre melancólico, como se soubera sempre não ser filho verdadeiro, arredio como se sempre sentira que o padrasto não era seu pai, que, por mais que todos se esforçassem, sua origem não estava ali, como se pressentisse que havia um destino e por trás desse destino um segredo mortificante.

Quando Thomas tinha cinco anos, na volta da escola, já na entrada do prédio onde morava, uma mulher aproximou-se em silêncio, “Não, não, não!”, ouviu a mãe gritar, “Sim, Natália, e, por favor, não tente evitar”, a mulher falou, enérgica, “Mas, mas - o que você tá fazendo aqui?”, a mãe indagou, “Vim me despedir”, a mulher falou, “Escuta, Rosana”, a mãe tentou reagir, “Não adianta, Natália: vamos subir! Tenho apenas alguns minutos!”. Subiram. Em silêncio. No apartamento, Natália ainda tentou que Thomas aguardasse no quarto, mas a mulher, Rosana, foi inapelável: “Thomas, você é meu filho! Você é meu filho, entendeu?!”. Rosana!”, Natália ainda gritou, mas viu que era inútil, calou-se, resignada, “Thomas”, disse à criança, “Essa é minha irmã, Rosana”, “Sou sua mãe! Vim aqui apenas te dizer isso. Sou sua mãe!”, repetiu a mulher. “Quando você crescer, se quiser saber mais sobre sua vida, vá a uma cidade chamada Marabá”, “Rosana, não, o que você...”, Natália gritou avançando contra a irmã, “Em Marabá, tem um lugar chamado Diamante Negro – se algum dia você quiser saber mais sobre sua vida, vá a esse lugar!”. Então Rosana abraçou apertado o menino atordoado, beijou-o muito, abraçou-o de novo, e, sem ouvir-lhe uma só palavra, correu para a porta e saiu do apartamento como se não tivesse um minuto a perder. E não tinha. Quase quinze anos depois, Thomas saberia que a mulher, Rosana, sua mãe biológica, morrera de infarto dali a minutos, na saída do prédio.

Depois daquele dia, o menino ficou ainda mais arredio, e por meses fez à mãe, todo dia, perguntas que ela não sabia responder, ou não queria, ou não podia. Aos poucos, foi esquecendo, mas seguiu sempre triste e solitário, com raros amigos, e sem demonstrar maior intimidade nem mesmo com os pais ou parentes próximos. E começou a se intensificar nele uma palidez mortiça, veemente, nunca explicada pelos médicos, que sempre negaram o diagnóstico de anemia. E Thomas passou a sentir frio – às vezes em pleno sol, na praia, queixava-se de frio, batia mesmo o queixo, chorando, desamparado, e a mãe só pensava que era algum trauma, alguma indução psicológica, mas nenhum psicólogo ajudou de fato o garoto a superar a solidão e os hábitos estranhos e arredios.

Thomas também nunca suava – podia andar, nadar, correr, pegar sol - nunca suava. Ou, sim – suava, levemente, como se tivesse o rosto coberto por fina e gelada camada de óleo, mas apenas de frio – nunca por exercícios físicos ou quentura. Suava de frio, e muitas vezes, nesses momentos, chorava em silêncio e lutava para ficar sozinho, onde estivesse.

Com o passar dos anos, Thomas conquistou uma rotina que a tiamãe sabia ser sofrida, mas sem queixas – estudava durante quase todo o dia, via muitos filmes, em casa e no cinema, nas raras vezes em que saía de casa para o lazer, não tinha um só amigo mais cativo ou assíduo, e não falava mais da mãe biológica. No dia em que completou dezenove anos, um mês atrás, Natália confirmou-lhe que Rosana não desaparecera, estava morta: morrera minutos depois daquela aparição e da despedida atribulada no apartamento. Dois dias depois, o rapaz comunicou à mãe adotiva que iria a Marabá, encontrar um lugar chamado Diamante Negro.

Mãos nos bolso da jaqueta, zipada até o pescoço, Thomas se encaminhava calmamente para o Diamante Negro. No dia anterior, após falar por telefone com a dona, Marly, aproveitou e passou pertinho, para não ter surpresas. Já bastava o choque de saber o que era o Diamante Negro e, a partir disso, a perspectiva sombria do que o aguardava a respeito da mãe.

Após tomar a decisão de ir a Marabá, Thomas recolheu, no apartamento, todas as fotos da mãe biológica, fez reserva no Itacaiúnas por telefone e leu na internet vários textos sobre Marabá. A cidade, 250 mil habitantes, no sudeste do Pará, ficava no centro de Carajás, a maior reserva planetária de minério de ferro de alta qualidade. A cidade viveu sempre de acentuados ciclos econômicos – caucho (borracha), diamantes, castanha-do-pará, ouro, ferro, pecuária, ferro-gusa e, às vésperas de festejar o centenário, em 2013, se preparava para industrializar aço. Os ciclos trouxeram e levaram migrantes de todos os Estados, aventureiros, grileiros, chegavam e partiam sem maiores raízes. Mas, aos poucos, Marabá moldava sua face, muitos maranhenses, goianos, tocantinenses, foram ficando, se assentando, e os estudiosos concluíam que, finalmente, a cidade de fato não apenas misturava migrantes, mas os fundia, os amalgamava, os convertia numa cara própria. E qual era essa cara, Thomas se perguntava, andando pela cidade que contrastava a riqueza ostensiva de uns com os aspectos interioranos e provincianos da maioria; a música sertaneja de baixa qualidade parecia onipresente, todos os recantos, todos os bairros; na Praia do Tucunaré, quatro meses ao ano (nos demais, a areia era toda coberta pelas águas do Tocantins), grassava o tecnobrega de Belém, que Thomas também não suportava, mas que, ao menos, rendia o espetáculo dos casais dançando lindamente, improvisos sensuais, quase que diretamente sexuais.

Foi no Tucunaré (a praia ficava em frente à orla da cidade, depois da travessia do rio) , num domingo, cinco dias após chegar a Marabá, que Thomas teve uma experiência “incomodativa”, que ficou a relembrar: numa mesa em frente à sua (ali havia a peculiaridade de todas as cadeiras ficarem não na areia, mas dentro da água, submergidas, e os clientes, de certa forma, bebiam, comiam e tomavam banho ao mesmo tempo) um grupo de jovens se divertia de forma ruidosa e “indecorosa”. Mostravam-se as línguas, pegavam na bunda uns dos outros, e Thomas logo descobriu que as mulheres eram prostitutas. O que o marcou foi uma espécie de beijo, não, não era um beijo, era algo... inominável: um rapaz, moreno, e uma moça, morena e índia, de olhos verdes – os dois ficaram mostrando as línguas um para o outro, de longe, a uns dois metros, e a língua da moça era muito grande, para fora, balançando, e ela conseguia mexer apenas a pontinha da língua, como uma cobra, muito rápido – depois de recolher a língua, a moça se sentou, e ficou vários minutos calada, alheia, melancólica, de repente, alheia, quieta. Aí saíram, para outra barraca, distante, e Thomas ficou a lembrar aquela brincadeira, as línguas de fora, movendo-se rápidas, sexualmente grotescas, agressivas, um despudor claramente desafiante, para chocar.

Naquele domingo, ao voltar da praia, Thomas finalmente teve coragem de descobrir o que era o Diamante Negro, “não é coisa boa, meu filho”, avisara Natália, “você vai ficar muito mais infeliz, e temo inclusive pelo que possa acontecer com você”. Para o rapaz, Diamante Negro era apenas o nome de um chocolate, e de uma descomunal “aparelhagem” sonora, de Belém. O taxista que o levava ao Itacaiúnas apenas sorriu e respondeu em tom jocoso: “É um cabaré! O melhor aqui de Marabá. Você vai gostar de lá!”. Thomas não escondeu o choque, o coração disparou, sentiu-se tão pálido que quase sucumbiu à fraqueza, invadido por uma vertigem de desmaio. O motorista não percebeu: “Sou amigo da Marly, a dona de lá – nos conhecemos há mais de vinte anos, de Açailândia, uma cidade ali do Maranhão...”. Um cabaré! Então, sua mãe... sua mãe... Um turbilhão de ideias indefinidas percorria a cabeça e o sangue de Thomas, que não se fixava em nada, fugindo ao maior temor: sua mãe... seria uma prostituta?

Desceu atordoado em frente ao hotel, “Está aqui o meu cartão”, o taxista ofereceu, “Precisando...”. “Você pode me dar o telefone da... da... sua amiga?”, “Ah, a Marly, do Diamante... Vou te dar, garoto, mas olha o que você vai fazer. Qualquer coisa, me liga, eu te levo lá!”.

Thomas quase não dormiu à noite, com sonhos sufocantes, e na segunda-feira ficou o dia inteiro trancado no quarto do hotel. Outra vez quase não dormiu e na terça-feira, resoluto, ligou logo cedo para a Marly. Ela não atendeu ao celular, o que aumentou a ansiedade dele. Ligou para ela a cada cinco minutos, já irritado, quase desequilibrado, até que ela atendeu, pouco depois do meio-dia. “Quem diabo é que tá me ligando tanto, hein?”, perguntou irritada, sem ao menos ouvir a voz dele, “Tem umas trinta ligações...”, “Meu nome é Thomas. Sou filho da Rosana. Você sabe, a Rosana. Há uns vinte anos, vocês se conheciam...”. Silêncio. “Alô”, Thomas falou, ansioso, “Alô!”. “Oi”, Marly respondeu, baixo. “Olha... Thomas, é isso?”, “Sim!”. “Pois bem, Thomas... a Rosana. Eu não sabia que ela tinha tido um filho... Sua mãe, ela”, “Está morta”, Thomas disse, seco; “Morreu há muitos anos... do coração...”. Marly continuou em silêncio. “Preciso falar com você”, Thomas avisou, “Preciso saber tudo de minha mãe... De mim. Preciso que me fale tudo o que sabe, entendeu?”. Marly continuou em silêncio. “Posso ir aí agora?”, Thomas pressionou, e Marly respondeu rápido, como por reflexo, “Não! Quer dizer, não, agora não... hoje não! Virão algumas pessoas aqui, à tarde... Bem... Amanhã, meu filho. Venha amanhã, às seis e meia... da noite. Amanhã a gente conversa...”.

Thomas primeiro teve uma sensação de alívio, quase que de libertação, por estar tão perto da verdade, de uma verdade, de algo que sabia grave e misterioso, mas que não tinha ideia do que era. Deitava-se, levantava-se, lavava as mãos, mirava-se no espelho, deitava-se, levantava-se, andava pelo quarto, evitando especulações, o que seria, evitava, evitava, pai, pai, sabia que a conversa com Marly teria a ver com o homem que era seu pai, que ele nunca conhecera e sobre o qual não sabia nada, nada, como se o homem não existira.

Às três da tarde, Thomas decidiu sair, andou, andou, até a orla, a uns oito quilômetros do hotel, sentou-se no Predileto, bar no Cabelo Seco, bairro onde Marabá surgira, na confluência dos rios Itacaiúnas e Tocantins. Pediu água, depois refrigerante, e por fim uma isca de peixe, e logo pediu um peixe completo, e o devorou com um apetite que não se lembrava de já ter sentido. Passeou na orla, viu pássaros, canoeiros, estudantes que atravessavam para a Praia do Tucunaré, do outro lado do Tocantins, foi e voltou ao longo da orla, anoitecia, os estudantes voltavam da praia, a travessia em pequenas rabetas pilotadas por meninos de doze anos, um bar tinha música ao vivo, o Chaplin, Thomas sentou-se e bebeu água, água, pediu um sanduíche que não comeu todo, evitava pensar na mãe, no pai, em Marly, no Diamante Negro.

Umas dez da noite, no táxi para o hotel, teve consciência do quanto seria longa a noite e o dia seguinte, até o encontro com Marly, e quase cedeu ao impulso de descer do táxi, andar, andar na noite, mas permaneceu imóvel, tão quieto que jamais alguém pensaria que era sacudido por bruscas e violentas especulações, absurdos que lhe vinham contra a vontade e se iam à toa, de nada adiantava especular, perguntar, de nada adiantava, não adiantava...

Na VP8, à frente, um grande movimento de carros, e as luzes girantes de duas viaturas da Polícia Militar. “O que houve?”, indagou ao motorista do táxi, “Nada, é apenas uma festa – quase todo dia tem festa ali, no Voo Livre”. Thomas decidiu descer, muita gente no bar, show de música ao vivo, uma dupla sertaneja, o sertanejo que ele não suportava, e que tocava, sim, em todos os minutos em todos os cantos da cidade.

Havia tanta gente que não se podia andar direito nem ao entorno do bar, jovens, jovens, as meninas muito sensuais, com roupas de brilho, as barrigas de fora, piercings nos umbigos, dançavam de forma escandalosa, mesmo sozinhas, baixavam os quadris, baixavam, baixavam, remexiam como se estivessem transando, isso mesmo, e, já perto do chão, faziam movimentos sexuais, como se cavalgassem parceiros imaginários, depois subiam, subiam, sem o menor pudor, a menor vergonha - só uma vez, em Belém, numa festa de aparelhagem (a aparelhagem Diamante Negro), Thomas vira tais cenas, como é que essas meninas podiam dançar assim, como se transassem no meio de todo mundo...

Thomas acabou envolvido pela euforia da música, da dança, da sensualidade, recusou o balde com seis cervejas vendido por garçons itinerantes, foi ao balcão, pediu um “ice” de kiwi, era a primeira vez em dois anos que beberia álcool, primeiro aos golinhos, como se apenas quisesse provar, logo um pouco mais, um pouco mais, sentia calor no rosto, olhava as meninas de frente, a cabeça erguida, uma especialmente lhe chamou a atenção, a calça apertada, moça branca de cabelos pretos, muito branca, os cabelos muito pretos, dançava só, até embaixo, requebrava, sorridente, notou que Thomas não lhe tirava os olhos, passou a dançar para ele, requebrar para ele, o garoto fitava-lhe diretamente os quadris, as pernas abertas, baixa, baixa, sobe, só faltava gemer, aí uma amiga puxou-a pela mão para irem ao banheiro, ao passar por Thomas, a garota abraçou-o levemente, brincalhona, obrigou-o a dar um giro desajeitado de dança e lhe aplicou um selinho na boca, sim, na boca, e se afastou zombeteira com a amiga, Thomas sentiu-se corar, isso mesmo, ficou tão desnorteado que quase deixou cair a garrafinha vazia de “ice”, foi ao balcão, comprou outra, bebeu, circulou, bebeu, circulou, não teve coragem de se aproximar da garota que o beijara, sentia-se afogueado, frenético, e, súbito, decidiu ir para o hotel: não tinha táxi, aceitou a oferta de um mototaxista e logo estava no Itacaiúnas, onde se masturbou de pronto, deitado na cama com os olhos vidrados no teto; banhou-se sem nojo, esfregou-se muito, deitou-se na cama outra vez com os olhos no teto - lembrava das meninas dançando, como as coxas dos parceiros entre as próprias coxas, em pé, requebrando-se naturalmente, e o selinho, a menina que o beijara de relance, e logo de novo se masturbou, desta vez com mais calma, os olhos fechados.

Quinze para as seis. Thomas chegou à rotatória que ia dar na rodoviária, dobrou para o lado oposto, estava a dois quilômetros do Diamante Negro. Tinha tempo. Diminuiu o passo, tirou as mãos dos bolsos da jaqueta, para aparentar naturalidade, o trânsito cada vez mais intenso, muitos carros, muitos carros de luxo, muitas caminhonetes, muitas, muitas, e dezenas, centenas de mototaxistas. Chegou ao final da rua, outra rotatória, um posto de gasolina – faltavam 25 minutos. Entrou no posto, comprou uma água, passou a mão direita no rosto, nem sinal de suor, o frio passara, o que sentia era uma ansiedade desabrida que lhe impunha um vazio tão grande no estômago que tinha ímpetos de apertar a própria barriga.

O Diamante Negro não tinha placa, apenas um muro de uns vinte metros, da cor de chocolate. Bateu na porta de metal. Uma mulher morena, muito morena, de olhos saltados, lábios grossos, arroxeados, abriu imediatamente a porta, e não escondeu a surpresa ao ver o rosto do rapaz - desistiu do que ia dizer, estupefata, baixou os braços e apenas falou “Entre!”. Não precisou dizer que era a Marly, não estendeu a mão, desviou os olhos do rosto dele e andou à frente, calmamente, seguida pelo rapaz que outra vez tinha as mãos nos bolsos da Jaqueta, aberta.

Umas seis mesas, sem toalhas, cada uma com quatro cadeiras, distribuídas naquela área, metade coberta por um puxado de telhas com as vigas de madeira preta à mostra. O salão do bar era lá para dentro. Deduzia-se que havia vários quartos na construção. Um muro separava a área de um pequeno terreno com árvores e pés de bananeiras, entrevistos por uma grande grade de ferro, com cadeado. Sentaram-se, um em frente ao outro. “Você deve ter... dezenove?”,  Marly perguntou e afirmou ao mesmo tempo; Thomas apenas confirmou com a cabeça. “Você mora em Belém?”, mas o rapaz interrompeu-a, brusco: “Quero que me conte tudo sobre minha mãe. Tudo, tudo! Não esconda nada!”.

Marly ficou um pouco em silêncio, levantou-se e entrou no salão, usava uma bermuda jeans e uma blusa floreada de decote arredondado, o que lhe reforçava a aparência “gordinha”; voltou com uma cerveja e apenas um copo. Encheu o copo, bebeu um gole, para experimentar o sabor, depois bebeu um gole maior, e pousou o copo sobre a mesa. Começou a falar, pausada, ainda hesitante, como a encontrar o tom, e na certeza de que não seria interrompida.

“Sua mãe... a Rosana... Ela... tinha vinte e dois anos, quando apareceu aqui. Veio de Parauapebas, indicada por amiga, a Cris, que já tinha trabalhado aqui... por algumas semanas. Lembro bem de quando a vi pela primeira vez – era linda! Linda! Você não tem ideia. Muito branca, os cabelos muito negros, compridos. Era alta, cheia, sabe, do tipo que os homens acham... gostosa, é isso: era muito linda, e muito gostosa, o sorriso lindo, dentes muito brancos, uma pele maravilhosa. Elegante, roupas boas. Via-se que era menina rica, ou que sempre tinha sido bem cuidada, era até de se perguntar porque estava aqui, sabe, nessa profissão... Logo, ela tinha conquistado todas nós. As outras meninas, em vez de inveja, ou competição, adoravam ela, ficavam admirando... E ela... bem, era muito importante para a casa. Não recusava nenhum tipo de cliente. Podia ser feio, bonito, negro, branco, jovem, velho. Às vezes, mesmo em passeios, atendia ao telefone e vinha pra cá, ficar com algum cliente... Ficava com todos, e tratava todos muito bem. E também tinha um hábito – às vezes, os homens por aqui, sabe, e ela simplesmente aparecia nua... andava nua, na frente de todos, linda, tão linda que tudo parava, tudo silenciava, parecia que até a música da jukebox parava. Fazia aquilo para agradar, para... ela queria fazer os homens felizes, sabe? Muitos deles, carentes, longe de casa. Também logo descobrimos que ela gostava de PMs. De policiais. Ficava com eles, de madrugada. Até que se envolveu com um, o Edilson... Um sargento, cara péssimo, sabe, se vangloriava de espancar bandidos, de já ter matado vários... E ele humilhava ela. Ela dizia que estava apaixonada, e ele se prevalecia. Humilhava, falava coisas desagradáveis. Uma vez, aqui, na frente de todo mundo, ele recebeu um telefonema, de outro PM, e disse, se vangloriando, pra todo mundo ouvir: “Estou aqui na Rosana. É. Espera sentado, que vou já largar minha mulher pra ficar com ela. É, vou ser o caixa dela!”. Sabe, um sujeito feio, bruto, dizer isso de uma mulher linda, maravilhosa. E o mais surpreendente: uma dia ela me disse que não gostava dele. Que não era apaixonada coisa nenhuma. E por que fica com ele, perguntei. Por que deixa ele te humilhar? Porque ele é sozinho, tem medo, respondeu. Como? Ele é só. Muito só. Tem muito medo. Você acredita, Thomas...? Outra coisa que ela me disse, que me surpreendeu, que me deixou estarrecida... disse que nunca tinha... tido um orgasmo. Isso mesmo. Falou que transava desde os quinze anos. E nunca, nunca tinha tido um orgasmo....”. Marly parou um pouco, bebeu um pequeno gole da cerveja, tirou um cigarro da carteira, mas desistiu de acender. Com o cigarro entre os dedos, os olhos de soslaio sobre o garoto, voltou a falar. “Um dia... Era cedo ainda, umas oito da noite. Tava quase vazio aqui – quase nada mudou por aqui... Apenas essa jukebox era outra, sem a tela de vídeo... Alguém bateu no portão... Eu mesma fui abrir. Ao ver quem era, eu quase desmaio. Como aquele cabra, aquela lacraia... aquele homem tinha a coragem de voltar aqui... O nome dele era Armando. Pistoleiro, conhecido em Marabá, Parauapebas, Maranhão. Ameaçado de morte, procurado pela polícia. Um sujeito famoso pela crueldade. Você não imagina as histórias sobre ele... Vinha acompanhado de mais dois homens. Entraram os três, sem falar nada. Olharam em volta, tinha apenas duas meninas, as duas que moravam aqui mesmo, na casa... A Rosana e a Fernanda, a Fernandinha... Quando o Armando viu a Rosana... Quando ela o viu... Ficaram se olhando, sabe, como se tivessem descoberto uma coisa muito importante, uma coisa esperada a vida toda... Foram para o quarto, imediatamente, sem dizer uma palavra um ao outro, sem nem ao menos se cumprimentarem. Os dois homens ficaram aqui, vigiando. De vez em quando, um olhava por trás daquela janelinha, para a rua. O tempo passou, mais de uma hora, e não se ouvia nada, e nem os dois saíam do quarto. De repente, começamos a ouvir gritos no quarto, gritos e gemidos. Os homens ainda correram, a Fernandinha se levantou da mesa, onde estava conversando com outro cliente, que tinha chegado... Eu parei a caminho do quarto. Entendi que os gritos da Rosana... não era violência, não era perigo... Ela estava goz... tendo um orgasmo. Gritava, gritava, você não tem ideia da altura, eram gritos mesmo, gritos gemidos, muito altos, ninguém nunca tinha ouvido aquilo... meia-hora depois, os dois saíram do quarto... Ele na frente, ela atrás, sorrindo. Ele estava extremamente pálido, o bigode fino encravado num sorriso insinuado no rosto magro, o corpo muito magro, pequeno, com a camisa um pouco aberta... Thomas... Naquele momento, só ouvimos um grande estrondo nesse portão aqui, da garagem... um grande estrondo, o portão se abriu todo, e os policiais foram logo atirando, não queriam nem saber... O Armando nem teve tempo de reagir, ou não quis... levou mais de dez tiros. Os outros dois homens também foram mortos... Um horror... Mas o horror maior estava por vir... Quando fomos ver o corpo do Armando... Foram mais de dez tiros... E não tinha uma só gota de sangue. Você entendeu? Nem uma gota de sangue, seu pai... ele simplesmente não tinha sangue no corpo. Você... Como pode ser isso...?”.

Thomas levantou-se, atordoado, caminhou desorientado em volta da mesa, voltou sobre o mesmo passo, de costas, vermelho, muito vermelho, “Você... desculpa...”, disse Marly, “Você tem o rosto muito parecido com o dele... apenas você é muito mais alto...”. Thomas sentiu-se tonto, sentou-se apoiado na mesa, vermelho, vermelho, “Meu Deus!”, gritou Marly, “Você está sangrando!”, e procurou ampará-lo, Thomas sangrava, porejava sangue, pelos braços, pelas faces, não apenas vermelho, suava sangue, minúsculas gotas vermelhas, “Um médico, chame um médico!”, gritou para Marly, ela se desesperou, ergueu-se com o celular na mão, “Não, um carro, vamos no seu carro – para um hospital!”, Thomas conseguiu dizer, antes de desmaiar sobre a mesa, o rosto assustado e com um breve sorriso.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Dois sonetos


Dois sonetos (sobre melodia de Edir Gaya)



Marajó

Diz que as estrelas de junho
São fogueirinhas de mão;
O céu é um boi de veludo
Montado a imaginação.

Fala que as luas lançantes
Dobram à frente e pra trás:
Nada será como antes,
Não passaremos jamais.

Os velados da poesia
Tangem na linha do dia,
O rio já não pesca em mim;

O amor é quando eu acordo
E o sonho em que te recordo
Dobra na manhã sem fim.


Belém

Fala que as telas de julho
Recolhem luas do chão;
Vôos escanchados no musgo,
Céu encharcado na mão.

Essa será sempre a rua
E o minuto é um casarão:
Eu vi Belém toda nua,
Bebi a minha canção.

Olho d’água, quando sinto,
Cidade à beira do instinto
Grotada pela paixão;

Leva então minha saudade:
Seca acqua-prima, vontade
Gretada no violão.

sábado, 12 de maio de 2012

A memória da rosa


Anoitece rapidamente, Jerome decide voltar à vereda, apressa o passo, suado, resfolegante, com muito medo. Todo o corpo arde, pelo sol o dia inteiro, pela sujeira, pela roupa grossa, pelas botas pesadas e sujas. Às costas, a mochila carregada das pedras preciosas que roubara dos índios, após dois meses de um convívio tenso e cauteloso. Ainda o perseguiam? Por que não resistira a Kãwá? Tinha que beijá-la, humilhá-la, prendê-la pelos cabelos, esfregar-se nela tão doidamente, quando já iniciava a fuga? Estaria morta, após bater a cabeça na pedra? Pela vereda, Jerome se tornava um alvo fácil, mas a escuridão era quase completa, não chegaria ao rio pelo mato – e o rio estava próximo, sabia, sentia. Apressou o passo, pisando pequenas plantas na vereda pouco usada, tropeçando em cipós finos, espantando insetos que o perseguiam aos enxames. Água – leve, o barulho, não à frente, ao lado – Jerome saiu da vereda, parou no alto da ribanceira – embaixo, um pequeno braço do rio, sonoro num leve declive – o rio estava próximo! Só então Jerome se deu conta de que chegar à beira, naquela hora e naquele isolamento, não representava salvação – quanto tempo demoraria a passar um barco, uma lancha, uma canoa? Os índios o alcançariam antes? Não tinha alternativa – voltou-se, pisou e resvalou em algo roliço, sentiu uma poderosa mordedura na canela, gemeu e recuou rápido, em direção à ribanceira – uma cobra – escorregou, agarrou-se num cipó próximo, o cipó cedeu, ele despencou – sentiu a cabeça bater forte em algo sólido, e desmaiou.
Jerome ouvia sons muito distantes, vagos, que não se aproximavam, não cresciam, não se definiam, não se esclareciam. Sua vida eram sons apenas, sem consciência de estar ou não vivo, de pensar no que acontecera, no que acontecia. Sons, escuridão, inconsciência, semi-consciência, sons distantes, às vezes pareciam tocá-lo, sons, ruídos, estremecimentos, sons, sons, escuridão, semi-consciência, estremecimentos, contorções, sons, murmúrios, barulhos, indefinidos. Certo dia, abriu os olhos, ergueu a cabeça – não reconheceu como índios os homens em volta, não reconheceu os movimentos como de uma aldeia, não sabia o que eram crianças, o que eram animais. Como se de nada soubesse, como se nada tivesse visto antes daquela manhã, como se fosse aquele seu primeiro dia de vida.

Não reconhecia as expressões curiosas que o fitavam, nem as faces desconfiadas, nem os gestos raivosos. Não reconhecia as palavras, não sabia o que era palavras, nem fala, nem a dança, nem o fogo. E não se movia – não tentava se levantar, não tentava andar como os outros, nunca tentou falar, apenas olhava, olhava, nunca ria, mas chorava – desciam lágrimas de seu rosto, sem razão clara, sem maior significado que lhe escorrerem pelas faces.

Certa tarde, após uma forte chuva que durara horas, alguns índios se aproximaram resolutos, e tiraram o homem à força da rede, ele apenas gemia, com medo, os primeiros sons que emitia, gemidos de medo, incompreensão, arrastado até o ritual à roda da enorme fogueira. Sentaram-no, ele caiu para o lado, de novo o sentaram, de novo caiu, por fim assim o deixaram, no chão, com os olhos arregalados em direção ao fogo, agora em silêncio e completamente imóvel.

Os índios trocavam falas entre si, ora raivosas, ora calmas, como se ponderassem ou ameaçassem sobre uma decisão, por fim um deles, o mais velho, aproximou-se de um algguidar de barro, cheio de água fervente, e passou a botar dentro algumas das dezenas de ervas ali dispostas em pequenos feixes – o homem separava as espécies, umas deixava de lado, outras colocava no alguidar, não se sabia se para curar, ou para matar, já que a poção resultara de uma decisão coletiva no ritual ao redor da fogueira.

O homem não esboçou reação quando três índios se aproximaram com um pouco da porção numa cuia, lhe ergueram a cabeça e o fizeram beber, o líquido quente desceu pela garganta sem que o homem reagisse, um pequeno gole, mais um, até que os sons foram ficando mais distantes, e seus olhos se fecharam como num alívio, e de novo mergulhou numa semi-consciência, inconsciência, escuridão, escuridão, imobilidade total, nem um arfar, nem um respirar, e não se podia saber se, em algum ponto de seu corpo, algo resistia, se agarrava ao que se chamaria de vida, se algo ansiava por voltar – a quê?, a quem?, por quê?, e já não havia pensar-se em tempo, e já não havia cogitar-se em realidade, mito, alegoria, simulacro, simulação, motivo, angústia, criação, emissão, recepção, não havia se cogitar nada, nem mesmo uma cor?, nem mesmo uma brisa?, nem mesmo um calor?, uma carícia?, um roçar, uma gota de chuva?, porque uma mudança - agora não era uma memória, era um sentir, e não era um sentir - menos do que um sonho, menos do que um pressentimento, uma impressão, ali, se sabia, caiu um jambo na terra, e do jambo nasceria jambo, não manga, ou graviola, e não uma flor, ainda mais rosa, menos que uma lembrança ou um brisa, era uma rosa, então de que se recordaria, se não se podia falar em inconsciência, ou semi-consciência ou sons distantes, ou respiração, então, uma rosa na manhã, e dois meninos índios brincando, curumins, e, sob o jambeiro, simplesmente ouviram “Eu!”, mas de onde, apenas uma rosa balançada por um vento, não, por uma leve brisa como o respirar próprio das folhas e raízes.


segunda-feira, 30 de abril de 2012

Ela é duas



Música com o Edir Gaya (autor da melodia e co-autor da letra). Ouça em http://www.youtube.com/watch?v=Vniy4yXuTUk&feature=youtu.be





ela é duas

tem o rosto de marilyn monroe
e fala contigo olhando nos olhos
ela é mesmo inocente, única
inocente, inocente de verdade

mas ela também sabe ver o estrago
como se caísse em si
mete a navalha sem lanhar a carne
nega tudinho e nos ri

ela é má, ela é má, ela é má de verdade

ela são duas, não se conhecem
uma cura, outra alucina
marilyn monroe da rapaziada
mas nunca é pega na rima
quando ela é boa, ela é boa
quando é má, melhor ainda

ela é tão pura
semeia a terra
que transforma com as mãos
e faz promessas
como uma estrela
só vi na televisão
a natureza aprontou
eita inocência e aflição

compassos difusos na minha eletrola
consolam a ausência que me desatina
meu samba, dança com ela
e vê se me conta
o que eu só imagino

já todo mundo acredita
daqui a pouco vai ter fila
pra chegar perto da dita
tão bem falada e maldita

ela é boa, ela é má, ela é má de verdade
ela é má, ela é boa, é boa de verdade


domingo, 15 de abril de 2012

"interior"


abaixo, algumas letras e poemas escritos para melodias do henry burnett, ou que ganharam músicas dele, gravadas no cd "interior", com henry, convidados e a voz linda e emocionada da argentina florencia bernales. o disco todo pode ser ouvido aqui:

http://myway.pt.msn.com/album/interior_2.aspx


interior


o rio corre em teu rosto

onde inda brilha o sol posto


o rio dorme em tua face

e cada estrela que nasce


banha-se a lua na rede

te acordo: tenho sede


"pra não magoar"


pra não magoar

digo pela metade

o que mais dói falar

é a verdade


procuro em mim e me evito

como uma puberdade

o que tiver mais risco

é a verdade


revelo em mim e me omito

a verdade

e tudo o que nunca admito

forma essa bolha na tarde


como proteger o meu amor?


a beleza atrai-se

a beber o mar

onde tua beleza vai parar?

como proteger o meu amor?


tudo mente, mente

falsa é a minha voz

nos quisera unir longe de nós

como proteger o meu amor?


vem o tempo e passa

chega e parte em mim

só quando te entregas não há fim

como proteger o meu amor?


cordas


te crio com minha voz

sobre um pensamento leve

o tempo é um vilão veloz

tu, como a música, és breve


mel que a lareira descreve

a cor é a voz do sol

sim, como a música: breve

vinho no vento. bemol

quinta-feira, 29 de março de 2012

DNA (o nascimento da linguagem)


Transcorrer. Simultaneidades. Unicidades. Essas são as palavras, as mais definidoras, não os códigos, mas as sínteses. Os amálgamas. Galateia. A “Cidade-lenda”, “Cidade-game”, “Vertigo-city”. Galateia, ninho de circuitos cavado no deserto, o maior buraco produzido pelo homem e, nele, a maior cidade construída de uma só tacada, como por magia. Fernand olha para baixo, luzes sem fim, animações, “materializações” de cenas, milhões de naves. Desde o “incidente”, não se conecta à Grande Rede, não “transcorre” ligado a uma máquina, nem mesmo mediado por robô. A única vez que passou em frente à sede do Marlaio’s Lab ficou tão impressionado que parou, admirado diante do prédio em forma de águia, o bico perfurando o céu, um dos símbolos de Galateia. Agora adentrará a águia, se confinará em suas entranhas tão comentadas no planeta, experiências malditas, “o fim do homem”, “DNAs do Demônio”. Ao longe, o bico da águia, descomunal, desponta como se fosse absorver toda a substância do céu rasgado, as vísceras de toda a luz do universo esventrado, ferido até a morte. “E, no entanto, basta um gene, um espelho de piolho, de esquilo.” O próprio Marlaio, o próprio Satã, se empenhou em convencer Fernand a participar das experiências, “a ajudar a humanidade”. “E, no entanto, eu nada sei, nada sou; bastaria uma célula, reproduzida e combinada de forma infinita”. Na poltrona ao lado na nave, Marlaio sorri, sem resposta ou gentileza do “convidado” Fernand. Transcorrer, em vez de ser. Simultaneidade, em vez de fragmentação. Unicidades, em vez de caos. E como, então, ele, Fernand, pode ser uma “chave”, uma “explicação”, uma “concentração viva” do todo? Fecha os olhos e tenta repassar os últimos acontecimentos, quando bem poderia absorvê-los num átimo, como faria qualquer jovem neste ano de 3.513 d.C.

Quarenta dias atrás, pouco antes de chegar ao Forest, o zoopark de Galateia, Fernand repetiu o pensamento e o sorriso semanal de quando ali entrava: era mesmo coincidência o fato de gostar tanto de mato e bicho, ele, um dos únicos entre bilhões de humanos a nascer de parto normal, e sem manipulação prévia na escolha dos genes, óvulo e espermatozóide? Mostrou de longe a digital do polegar ao sensor, passou pela entrada sem dar bola aos robôs que respondiam a perguntas de visitantes e se encaminhou diretamente às árvores gigantescas, sequóias, samaumeiras, cedros. Ao avistar os primeiros troncos, tomou um choque, não pelas árvores costumeiras, mas pela garota que vinha sorrindo em direção a ele, surpresa, mas feliz: os dois eram simplesmente idênticos! Ela passou ao largo, rindo para ele, mas sem intenção de parar ou conversar, pelo contrário, colocou os óculos-geracionadores e seguiu curtindo o parque a partir dos recursos tecnológicos. Fernand é que ficou estático – tinha dezenove anos, e nunca, nem mesmo pela Grande Rede, se deparara com alguém tão parecido com ele, como tanto acontecia com os amigos, gerados a partir da manipulação genética. A garota – por que não ficara surpresa? Será que não se deu conta da semelhança – impossível. Intrigado, Fernand viu-a sumir numa trilha entre árvores, ficou ainda um tempo parado e só então se voltou para adentrar a “caverna viva” formada pelas gigantescas raízes da árvore de samaúma. Deitou-se com o pescoço e a cabeça alojados no nódulo das raízes expostas, pensou na moça, “gêmea”, por alguns instantes, e se propôs ao exercício preferido dos últimos dois anos: meditar – se entregar às “viagens”, “sair” do corpo, “transcorrer”, mas sem ajuda de máquinas, usar o conhecimento e domínio corporal e neurológico que adquiriu via computador para desfrutar sensações “puras”, vertigens conscientes envolvendo o próprio corpo, ou a terra, ou a Via Láctea, ou os planetas recém-descobertos, ou as sensações aprendidas via simulações de estados físicos inusitados de galáxias várias, repassadas a ele por jogos ou durante as aulas em laboratórios descomunais.

Com os olhos fechados, Fernand iniciou o processo de “desligamento” do corpo, de entrega aos pensamentos, imagens e sensações que se formavam nele quase que de modo aleatório. Mas não conseguiu aprofundar o processo – parecia sonhar, semi-adormecido, mas ainda controlando as imagens, as sequências. Sentiu – ou teve a impressão – o sol esconder-se atrás de nuvens ou das árvores, ouviu – ou pensou ouvir – alguns passarinhos cantando próximo, e levou a mão para matar uma formiga, devia ser uma, a picar o braço direito perto do cotovelo – resistiu, de olhos fechados, tentou avançar até o lago de imagens, o lago primordial, o lago filosofal, o jardim todos os jardins, mas as imagens vinham repetidas, as sequências voltavam como se assistisse, não inventasse, a um filme. Apertou mais as pálpebras, ignorou as imagens, tentou formar um grande campo branco, isento, aonde as imagens pudessem acorrer, não conseguiu, se pôs a voar através de um céu cinza, enevoado, na tentativa de se clarearem novas cores e sensações, outro fracasso, criou-se então uma invisível célula, um pólen, algo invisível mas consciente, o invisível percorrendo o infinito na tentativa de se corporificar, de crescer, e fazer crescerem as paisagens e movimento em volta, outra vez não conseguiu, estranho, fazia meses que não falhava, que se induzia às “viagens” quase que de forma instantânea... Desistiu, decidiu abrir os olhos, andar um pouco, espairecer, e tentar de novo. Abriu os olhos de supetão – e teve não exatamente uma surpresa, mas um susto, não apenas um susto, uma espécie de medo, de pavor – estava no parque, mas não era mais o parque, estava entre as árvores, mas não eram as mesmas, outro lugar, sem luzes, sem construções, sem outras pessoas – e era noite! Impossível, mas era noite, não via a lua, mas sabia que a tênue claridade vinha dela, oculta pelas copas gigantes e vedada pelos cipoais que envolviam a vida naquele irreal lugar.

Fernand ergueu-se da raiz da samaumeira – depois, se lembraria perfeitamente desse ato: primeiro sentara-se, assustado, depois levantou-se, olhando em volta – e começou a caminhar a esmo, hesitando, em busca de alguma trilha ou de situação conhecida – nada reconheceu de concreto, de guia, girou sobre os próprios passos, em busca de uma decisão, e ficou uns minutos parado, como a assimilar o novo lugar em que fora parar de forma inexplicada.

Onde as luzes de Galateia? Onde os sons, os movimentos, as naves? Pois a samaumeira era mesmo aquela – o mesmo tronco, as enormes raízes que pareciam velas de barco fincadas na terra, os mesmos nódulos. Fernand abaixou-se – simplesmente abaixou-se, e com simplicidade enfiou as mãos na terra, cavando com os dedos, aprofundando as mãos como se obedecesse a chamado oculto, logo as mãos estavam cobertas, e ele tocava as pontas dos dedos, triturando, amassando a terra nas mãos em concha, até sentir se aquecerem as palmas, e algo quente se avolumar entre os dedos, e uma luz transparecia para fora da terra, liberando raios sobre o rosto de Fernand, ele apertava os dedos e parecia comprimir uma gelatina de luz, que se amoldava subterrânea à pressão quente. Ele retirou as mãos da terra, e parecia segurar uma luz sólida, cada vez mais quente, a ponto de ele lançá-la ao ar com as duas palmas abertas, como se libertasse um pássaro – a luz se desfez no ar, se espraiou, formou um redemoinho como uma pequena vertigem de formas, e então letras se formavam e caíam ao chão como folhas, “a”, “f”, “y” , e ao chão se integravam à terra e às folhas, desaparecendo em pequenas absorções de luz.

Fernand avançou em direção ao redemoinho – e se sentiu atravessar pela luz, desintegrar-se, transformar em luz, em letras, ele, milhões de letras que se multiplicavam de si a si, em si, milhões, bilhões de letras, repetindo-se, e cada uma parecia ter um conhecimento, uma consciência, uma ciência própria, conectadas entre si, e Fernand, como se estivesse integrado à Grande Rede, o cérebro conectado a um robô, processava vertiginosamente as informações, como um supercomputador processando e identificando dados de som, sentido, símbolos, imagens, pensamentos, tudo único e tudo todo, tudo fragmentado e total, tudo díspare e ligado, relacionado, a memória, uma memória, se inventava e revisitava ao mesmo tempo, se criava e gerava e descobria e nomeava ao mesmo tempo, célula a célula como letra a letra, uma memória, a viagem que se iniciou era uma memória, memória imemorial, memóriapensamento, memóriacarne, memóriapedra, memóriavento, memóriasuspiro, memóriacor, memóriatudoaomesmotempo, palavra de lembrança que criava como se lembrasse e lembrava criando, e por trás uma consciência, um urdir, um controlar por Fernand, um lembrar do lembrar, um refluir da lembrança, desde que tempos, desde que fatos, desde que sentimentos e sensações?

Aqui as imagens e movimentos transcorrem como que individualmente, mas, em Fernand, aconteceram ao mesmo tempo, uma viagem de bilhões de Fernands reunida num só, bilhões de fatos num só fato, numa só tábua, como alguém que lembrasse de todo o vivido, e o fizesse ao mesmo tempo – o pipoco dos átomos em estilhaço, as rascantes velocidades coloridas, os caudais preenchendo o vazio com invisíveis solidezes, as camadas de perfumes e texturas se afirmando no vácuo, gerando órbitas, promovendo fugas, harmonizando formas como se fossem números, formando frases como se fossem letras, e assentando seivas nas locas de carbono, e animando os ventos como polens, e fecundando as águas com o tempo, uma primavera de nove bilhões de anos, os primeiros pelos, as primeiras mãos, o filhote sozinho, à beira-rio, o perigo – “Mãe!”, Fernand disse em voz alta, e o filhote repetiu, a primeira palavra, o grito da mãe em socorro, “Fome”, “Comida”, “Pedra”, Fernand diziagerava, e os pássaros gritavam, e as lontras se erguiam sobre os leitos, em lugares infinitos num único lugar, em seres infinitos num único ser, e tudo se foi entendendo em si, tudo era memória, e Fernand simplesmente visitava a si mesmo em todos os elos perdidos, tocava a memória, falava a memória, gerava a memória com as mãos, com os olhos, a memória era tudo e ele tinha uma vida que falava com cada detalhe do todo, conversava com sua parte da memória, tocava nela, soprava, acessava, reavia, incorporava, curtia, sorria suas memórias, frente a frente, beijava, se dividia entre três ou quatro memórias ao mesmo tempo, bilhões de séries de três ou quatro lembranças, de repente, um vaga-lume, um vaga-lume que a tudo atraía, que a tudo congregava, unificava, e tudo se lhe agregava como a um cometa, um vaga-lume minúsculo em cometa gigantesco, um poste, uma nave, mas ainda não existiam naves, um vaga-lume invisível alimentando Galateia de luzes, mais atrás, mais atrás, um laranjal, milhões de laranjas, abelhas, o sol concentrado e escorrendo em suco poroso, a hora da comida, a hora de cozinhar, esse é o ritual do amor, do carinho, é preciso amar e temperar, é preciso amar e misturar, as folhas, o azeite, eu te amo, esta é a mesa, eu te amo, é a minha casa, o vento atravessa os bambus, canaliza-se nos ocos troncos caídos das árvores, a música, eis o corpo em forma de som, eis a criação do espírito, eis meu corpo invisível, eis meu corposopro, meu corpotom, meu corpotimbre, meu corposentimento, meu corposensação, meu corpoêxtase, música, música, música, e uma garota dança, ela dança, é tão leve quanto a pluma, pluma com braços, pluma com pernas, é tão leve quanto o algodão, quanto a pétala, uma moça dança, ainda não é valsa, ainda não é samba, não é reggae, é apenas dança, a harmonia é leve, a ausência de gravidade é concreta sobre pés de ninfa, vou te chamar de deusa, pra te eternizar, vou te chamar de musa, para renasceres, e agora a chuva, vou chamar “chuva”, para gerar um sentimento, vou dizer “escorrer nas folhas”, para inventar a poesia, vou dizer “molhar teus olhos”, para inventar a saudade, e agora a moça se vai, parte sob a chuva para inventar música com letra, música e poesia, a moça parte para eu inventar a morte, para eu criar a dor que a água não pode amainar, para eu chorar diante do primeiro vazio, de um vazio maior que a ausência do espaço, maior que antes do átomo estilhaçado, e vou dizendo “batalha”, e digo “soldado”, e digo “Helena”, e digo “Tróia”, e digo “moinho”, e vou gerando “barragens”, e gero “plantação”, e gero “pão”, e falo “luz”, e falo “eletricidade”, e digo “Paris”, e me debato num furioso mar azul, azul, parece uma esponja azul, o céu é um mar de esponja azul, e me sinto sufocar, e percebo então que o oceano amarelou-se, esverdeou-se, é um mar de catarro, me debato num mar de catarro, mergulhado no nojo, arrebatado pelo novo, sufocado pelo gelatinoso nojo esverdeado, denso, pegajoso, catarro em ondas violentas e sucessivas, desmaio, estou alçado, salvo por golfinhos e garças, o céu é azul, durmo nas nuvens, acordo num lugar chamado cinema – é todo descolorido, as ruas têm abas com pequenos furos, a rua mais larga é um campo de futebol preto e branco, a bola rola ao meu lado e pequenos riscos cortam o ar – riscosa no filme, na projeção - com lapsos de sons, e digo “carnaval”, e falo “carro”, e gero “avião”, e todas as letras que eu sou dizem “máquina do tempo”, e todas as sílabas que sou gritam “eternidade”, e depois formam “Galateia”, e digo “Fernand” e nasço caído, no escuro espocado em luzes ao pé de uma árvore que reconheço como uma samaumeira.

Fernand sabia simplesmente que poderia continuar, ali caído – poderia nomear e criar e inventar e gerar apenas com palavras, a viagem era infinita, não foi um retorno, não fechou um círculo, a menos que ele quisesse, a menos que vedasse o próprio fôlego, o próprio fluxo, “Não”, pensou, “Vou prosseguir, vou visitar tudo, vou compor toda a memória”, mas algo o dispersou, atraiu seu pensamento, sua viagem, ele abriu os olhos e se deparou consigo mesmo – não, era a moça – a idêntica a ele, a sua “gêmea” – olhava para ele, chorando, estava tão perto, há quanto tempo o olhava, aflita, com as mãos na barriga – sangrava – Fernand ergueu-se, tocou-lhe o rosto, enxugou-lhe as lágrimas, nada falou, não tinha palavras, não tinha palavra para o que não conhecia, para o que não esperava, para o fio vermelho irreversível. Ou, antes – esse fluxo não podia conter, essa palavra – aborto – não diria, não propagaria e não evitaria... Abraçou-se à moça e se confortaram até se extenuar, e dormiram abraçados, recostados no mesmo tronco da samaumeira ancestral.

A nave penetra o bico da águia, Marlaio diz “Chegamos, fique tranqüilo” e Fernand ajusta-se na poltrona como se fossem partir, em vez de descer no Marlaio’s Lab. O que acontecera ao pé da samaumeira, se, no buraco perto das raízes, se descobriram elementos desconhecidos (produzidos pelas mãos de Fernand?), se, no corpo do jovem, exames detectaram resíduos que datavam de milhões, bilhões de anos atrás, se no sangue da moça foram encontrados genes de Fernand, se sua gravidez interrompida – fora dele que engravidara, e não se conheciam, e, ao se encontrar depois, nada falaram, nada conseguiram dizer? “Talvez o fato de você ter nascido de parto natural, sem seleção de genes...”, Marlaio dissera. “Você pode ajudar a criar um novo estágio da humanidade, do que somos...”. Fernand recusa com repulsa o toque de Marlaio, quando se prepara para descer da nave, e sente um enorme desamparo, uma enorme vontade de chorar, e a lágrima que enxuga parece conter todos os oceanos das dores passadas e futuras.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A voz do samba e o samba da voz



(letra, musicada por edir gaya. ouça: http://www.youtube.com/watch?v=PSKlLDK78K4&list=UU0MeExu0BcdVWM4uFsYlgWA&index=1&feature=plcp )


Sou cantor de samba

E amo uma sambista

Que traz a melodia

Na ponta dos pés

Sou cantor de samba,

A minha voz gamou

Nos passos dela

A minha voz gamou

Nos passes dela


Eu canto samba

Ela samba

Dança e canto

Um para o outro

Vamos sambar

Vamos fazer mágica

Vamos sambar

Vamos fazer mágica


Voz que dança

Dança que canta

Samba

Voz que dança

Dança que canta

Samba

Fala de saia, tu

Roda de uirapuru

Te amo tanto que pinga

Suor das estrelas


E aí

O samba pede um aparte

E como um porta-estandarte

Ele mesmo canta pra passista:


Samba

Também sou infinito

Samba

Vou te acompanhar

E quando chegar na Pedreira,

Onde o samba vira amor,

Eu saberei me calar


Samba

Também sou infinito

Samba

Vou te acompanhar

Quando chegar na Pedreira,

Onde o samba vira amor,

Eu saberei me calar