segunda-feira, 8 de novembro de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Tríptico do Camaleão


Artífice

Lagarto que ganhou um louro do sol,
aprende a copiar sem ter nascido
e seu ovo é repleto de arrebol,
de gambá, de graveto e de grunhido.

A voz de metonímia ou caracol
do bardo em tudo e nada refletido
mimetiza a metrópole em crisol
calidoscópico, polido.

Camaleão de trema seriado,
imitando entre as gentes imitado,
desvia-se do tempo um dia belo

quando passa aos pincéis o que o passa:
nem que seja a dor o camartelo
e a torre azul da rosa, uma carcaça.

Apaixonado (lagarto-oceano)

Que a nudez (viço em sol, sobretecida
à miragemmaragem do intento)
esvoace sobre as vinhas os sentidos;
o músico contate, à flor do vento,
priscas cenas de cisnes sucumbidos
aos cordames de areia;
IIIIIIIIIIIIiiiiiiIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIo grão momento
do sangue fu(l)gindo em flautas aos bramidos
e leito cravejado de relento;

deixa que a sereia - grânula, guano,
ao deserto salivado de rapinas
demonstre a invenção do oceano;

assim nosso lagarto, ilusionado,
fira as claves do amor e ressacado
nasça e pereça em poças opalinas.

Nostálgico

O presente fragmenta-se em mil zeros
e o camaleão fecha a paleta;
vago trintão industriado em Eros,
viaja à infância-luz numa caneta.
Mas já o sítio passado não existe,
outra história se encena, em sucessão;
só na memória corre a chuva triste,
a primeira que lhe caiu no coração.
Só dentro dele a gleba, abandonada,
existe-se, verões que se entrechocam;
dentro dele a família, a alvorada
mãe em que as cores todas desembocam.
IIIIIIIO que o sol mira na paisagem gasta
IIIIIIIo lagarto restaura, ilude, engasta.



Transamazônica

Nem fotografia tenho
do lugar onde a infância
floresceu e passou;
certa vez,
já vinte anos depois,
estive às pressas,
trabalhando,
numa cidade próxima:
a setenta quilômetros
de minhas lembranças,
e não as conheci.

Hoje, que chove, e a palavra
(espaço sem tempo)
torna, de fato, una
a estrada que me criou
e a que me reconciliaria,
levanto na memória
(tempo sem espaço)
esta poeira-poema;
e a seiva, finalmente, dos olhos
se assenta como um cristal.


Canção em volta

A chuva vésper é a dona da bola.
Retorno sem começo, albor sem fim,
lucidez alagada num delfim.

Ao chão da infância, a papila dos dedos
apanhava as palavras esfregando-as:
arredondadas de água ou erodidas,
verbos ou adjetivos.
IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIISomos só
uma flecha de baladeira, uma
harpa de seixo aos pés de Orfeu. O sopro
do sabiá.
IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIITe trago à infância, onde
a sensação é o espaço; e o verso
trespassa o tempo como os sonhos

(é contra o tempo toda perfeição);

e logro, traquinas, o eterno: rio
atuado pela imaginação.



Infância

Na Ilha de Algodoal, eu, Daniela
e nossas mães. Tranqüilidade, muita
comida, nostalgia compartilhada
da infância no interior.
Na última tarde, almoço em casa de Cuíra,
amigo pescador. Apenas peixe frito com farinha.
Antes da primeira posta, as mães brincaram
de irmos todos ao restaurante da pousada;
mas logo o sabor batia em pleno na alma interiorana:
o quintal, o mato, o peixe recém-pescado,
o fogareiro, a farinha - Maria e Luíza voltaram
aos rios de origem; antes resistentes,
elas agora perderiam até o barco,
mas peixe não sobraria.



Pirenópolis

A clepsidra das cachoeiras
de pedra em pedra
vira a nuvem
que devolve para o cimo
as quedas:
o Tempo é um menino
no escorrega-bunda da serra.



Ars poetica

Sair para a natureza,
tateá-la: instante de milhões de anos.
Subir à unidade
da imaginação: infância;
misturar de novo a água
e lançar a origem.

Voltar da natureza:
reter a palavra prima,
e constituí-la
como àquela fresta em que,
semi-acordados, sonhamos ainda,
furtivamente gerando as imagens.

"Do real imaginado", prefácio

Estrada, vida, poesia.

Ernani Chaves


Afinal, por que o poema, o poeta, a poesia? O “velho” Aristóteles há muito tempo nos disse mais ou menos o seguinte: porque o poeta continua brincando, como uma criança, só que desta vez com palavras. Brincar aqui é “imitar”, isto é, deslocar, construir e reconstruir, reunir e acumular, mas também dispersar, apagar, para mais adiante fazer novamente surgir, transmutado, o que hoje chamamos de “sentido”, ou melhor, de “sentidos”. Como escreve Edson Coelho de Oliveira em “Arte poética”: “o pensamento a vertiginar-se/com verbos e galáxias”.

Os poemas reunidos neste livro, escritos em diferentes épocas e cidades, apresentam mais uma faceta do trabalho de Edson Coelho, mais conhecido entre nós como jornalista, cronista, repórter. Sua atividade à frente do “Segundo Caderno” de O Liberal sempre se “pautou” (para brincar com o jargão dos jornalistas) pela atenção à literatura, que já o havia levado a estudar letras. Dessa perspectiva, os poemas do livro documentam, no melhor sentido dessa palavra, uma trajetória, que a memória, esgarçada pelo tempo e pela ausência de fotografias, esforça-se por restituir. Em “Transamazônica”, isso se deixar ver, com uma força comovedora: “Nem fotografia tenho/do lugar onde a infância/floresceu e passou”. Daí, talvez, a persistência em pensar e tentar dizer as intermitências do tempo: “Não existe o presente./Apenas, na imaginação de adiamentos,/arcas, ânsias,/pendões pêndulos./O futuro é um espelho em bólide/e reflete a fuga que nos esmaga”, lê-se num poema sem nome; ou, ainda, em “Pão-de-açúcar I”: “nesta memória-dia,/acordar é reaver todo o tempo”; em “Quadra do Amor”: “O Tempo ralou-me a pele/na bacia da lua míngua”; em “Nostálgico”, “o presente fragmenta-se em mil zeros/e o camaleão fecha a paleta”; em “neolítica, “a serra é um estado da memória”; em “Amor com edifício”, “Pelo vidro do prédio, sou da altura/do tempo, fora da linha do mar”; “Os binôminos”, que começa com “O tempo somos nós”, é inteiramente dedicado à questão do tempo.

O tempo talvez seja, antes de qualquer coisa, aquilo que nos impõe a tarefa de redenção: “Proceder à transformação/é suportá-la”, como se lê em “Outra mudança”. Redimir o tempo é redimir a vida, na sua dimensão mais crucial e mais amedrontadora: a da finitude necessária, inexorável. Tentar dizer o tempo, por isso, é também, paradoxalmente, desdizê-lo, é procurar flagrar, de algum modo, sua ausência, onde a eternidade nos esperaria: “a memória é a densidade/em cuja duração/o tempo é quase um amigo”, ainda em “Outra mudança”. A escrita, tentativa de fixação, de eternizar aquilo que facilmente se dissipa na modulação encantadora das palavras, sempre quis encontrar, na forma do poema, sua função mais elevada, sagrada, cultural, mística. Nas palavras do poeta, no seu “canto”, os mistérios do mundo deveriam revelar-se sob o risco, sempre presente, de sua própria dissolução. Efêmera aparição do mistério maior – a eternidade existe? – que a memória dos homens, na sua fragilidade constitutiva, esforça-se por conservar, mas que no esforço para transmitir, de geração a geração, uma legião de imagens, de sonhos, de devaneios, só pode servir-se do tecido das palavras: “Tempo sem foz, o universo/palpitava, apenas,/para chegares:/entre os arbustos.//’Vai chover’, disseste.//E eras o primeiro pingo,/lágrima alegre” (“Canção de noite”).

Tempo e memória e a (im)possibilidade de dizê-los ganham várias faces nessa coletânea, que percorre quase todas as formas instituídas da poesia moderna, do verso livre à experiência concretista. No mesmo diapasão, confronta-se, aqui e ali, com a questão da poesia e do fazer poético, onde o poeta, nesse movimento de dobrar-se sobre si mesmo, tateia, à procura de um “Estado de poema”: “Sair atrás de uma estrofe/e não mais voltar/(ausentar-se em azougues)./Cruzar mil palavras;/agrupar-se, compactar-se,/prosseguir-se;/deparar o estado/de poema”. Em “À Poesia”, a própria poesia se faz tema. Em outros momentos, o poeta parece debruçado a sua janela e, diante do olhar, descortinam-se fragmentos de cidades, não só nos já citados “Pão-de-açúcar I” e “Pão-de-açúcar II”, mas também em “enseada em Botafogo” ou ainda em “Na varanda dos tijolos verdes”. Nestes fragmentos, a cidade, encenada como um “objeto parcial”, ou seja, recortada num trecho – um monte, uma enseada, telhados, pátios, o casario – se oferece, deliciosamente libidinal, como uma “helena’ diante de um “Homero” (em “enseada em Botafogo”).

As memórias do Rio de Janeiro, mais próximas, impregnadas pelo que o poeta via de sua janela – que, certa noite, também conheci e, quase sem resistência, me deixei levar pela exuberância “sublime” da paisagem – contrastam com o lusco-fusco das lembranças mais antigas, as da infância. Nesse contraste, ou melhor, nesse espaço de tempo que separa o Rio de Janeiro e a infância às margens da Transamazônica, passando pela vida em Belém para estudar, trabalhar, crescer, vencer na vida – como eu, como a maioria de nós interioranos, migrantes quase por “natureza” – tal como “Alfredo”, o pequeno grande herói dalcidiano, emblema e alegoria dessa busca, a poesia de Edson Coelho de Oliveira finca suas raízes, por mais movediças que elas sejam.

Nesse espaço de tempo, escora e cunha, move-se a palavra, esse “espaço sem tempo”, como se lê, não por acaso, em “Transamazônica”, recriando o que a memória parece não poder mais fazê-lo como o poeta gostaria, tentando suprir a ausência de fotografias, uma das nossas formas técnicas de lembrar. Assim a estrada onde o poeta “se criou” (lembro de uma fotografia da Transamazônica, de Paula Sampaio, onde a estrada serpenteia em meio à floresta, fio de terra e lama, ainda prenhe da esperança por dias melhores, móvel do migrante) pode saltar do poema e adquirir vida própria. Que essa estrada, estrada da vida, que levou Edson Coelho a muitas paragens, possa servir de bússola e guia ao leitor em meio a essa miríade de poemas, que ela própria ajudou a criar. Não necessariamente para que possamos encontrar-nos sempre em segurança no caminho, mas, talvez, ao contrário, para que possamos nos desviar, cair nos buracos, encharcar-nos na lama, levantar-nos, encher os pulmões de ar e prosseguir.


Ernani Chaves é doutor em filosofia e professor da Universidade Federal do Pará

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

IMAGINAÇÃO SIDERAL


LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


iiiiii iiii iiiiiUma serenata no espaço

iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiA explosão repousa
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiientre fulgurações -

iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiio universo
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiexpande-se

iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii- origem explodindo ainda


iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiisobre a terra celeste


iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiipequeno infinito crescente:

iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiilua de medulas
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiique a água propaga.


Fogoflor
iiiiiiiiiiiiii i i ilua simples
llllllllllinfinitesimal

i ii iii iii ii iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiivirão ao futuro as chamas conformes
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiida imaginação sideral

mas serás
iiiiiiiiiiiiiiiiiiisempre
a nudez diante de quem se jura
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiicomo a paixão
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiantiga e súbita
à ilusão dos milênios:

iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiprimordial.



iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiEm 2001





Poesia

No princípio, não foi o verbo
e sim o soprodestino
infundindo ao barro pétalas antropofágicas:
e as ruínas designadas nos amantes.

O jovem naja, arrebatado
ao olor pubescente das parras,
não queria verso, só a infernal
Cleópatra entre os sentidos.

mergulho nas esquinas, raios do mar
boleando os elásticos passantes;
teus versos são lindos, não são instantes.

E sei que o eclipse aviva os passarinhos,
mas não guardarei sóis em pergaminhos.
Não. Aguardarei o Tempo passar.



repente

a rédea, a rede, o repente
arreio, arroio, rompante
ferreiro, raio rasante
teu olhar ardendo rente
um galope de somenos
de sugestão delirante

léguas de crina da égua
pelos, flancos do sertão
dorso de pele sem trégua
sem regras na imensidão
galope franco, sem rédeas
braçadas ao violão

quando o repente resiste
toda a viola se arqueia
ele um cavalo explodindo
as cordas são suas veias
centauro arisco e divino
viola que não se arreia
repente se transfundindo
viola d’égua e sereia

ei repente disparado
rebenque de inspiração
ei pelo negro ou rosado
ao bel-prazer da canção
meus dedos do tango ao fado
entremolejos, baião
improviso agalopado
ei corpo de violão


II

o cavalo - alado, em transe
incendeia-se as entranhas
o furor rompe o limite
de seu ar-regaço em chamas
e ele estremece as estrelas
e tem aura de fagulhas
e os olhos vertiginosos
se acalmam em luas puras

teu gozo também explode
revolve, mas se demora
sentidos em carne viva
sob a mente caprichosa
e és plena à gema das horas
gomos do próprio fascínio
tempo montado a espora
paixão solta em teus domínios

eu? perpasso, pesponto
alinhavo vestes avessas
ponteio de vela l’ivre
em tua vasta certeza
viola vibrando aos trancos
às ancas, a natureza
arroio em rede e barranco
enredo de correntezas

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Pão-de-açúcar I

nesta memória-dia,
acordar é reaver todo o tempo:

o útero-pressão
do universo-vulcão

o pipoco do fogo atomizado

o nascimento do espaço
noutro espaço inexorável

a lava do sal
em órbita

o sol do eu
sobre o outro
eu


revê:

novelo de pedra,
a borboleta,
estrela de erosão



Pão-de-açúcar II

Dou teu nome ao primeiro segundo
deste despertar em Botafogo

relâmpago infinito
que tudo restitui
em ti

aconchegada a mim

e sinto-me brevíssimo deus
que, de um lance,
povoasse o abismo de galáxias
e olhasse um pouco a terra.



Quadra do Amor

O Tempo ralou-me a pele
FFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFna bacia da lua míngua.
- Suaviza-te, Tempo! - perdoei-o em minha língua.
Ele, então, que jamais vira a finitude,
chorou até a lua tornar
FFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFà juventude.



Bar

Mil anos ao passado,
o bosque entornava nas maçãs
as uvas de teus olhos assustados.
A Lua corava tua nudez
como a água à primeira mulher.

Hoje, barriguinha lisa,
embebedas teus aromas e esfrega-os
na paixão, única verdade do corpo:
paixões por minuto, no bar
como na tv.

Mil anos -
profusamente natural
apurou-se teu corpo
comum
em seu verão mais raro.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

SENTENÇA MOTIVA


mar

rolos de papiro
Fpáginas de tempo

FFFo livro do sal

tema lúnio
Fsobre o início

FFFFmar:

solista do infinito

FFo autonauta
FFFo espelho só

FFFFIlamento mono

FFFFFFaviso silvo
FFFFFFFFFFFFFFFsopro síbil de búzio

súbita

FFFFFserpente de dobras verdes
FFFFFFFFFFFFFFFdobres do pêndulo chumbo

FFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFmar:

fffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffffsentença motiva

FFFFFFFFFFFFFbrusco
FFFFFFFFFFcontínuo
FFFFFFIrupto

mudo

FFFsucedo
FFFFFreflito
FFFFFFFcalo teu silêncio fluxo

FFFFFFFFFFFFFFF...



O conto da criação

A pena,
pavio de sol,
raia a palavra terra
até a pedra;
onde a gema flora.

A chama apura o topázio,
uma estrela nasce
sobre o mar.

Quando a cor toca na água,
a palavra começa a respirar.

Meu só momento:
o facho da letra
fecunda as fendas de sal
e sou o fundo onde a vida aflora.

Mera sensação: o que resta
é sempre o poema,
sobra do mar -

ainda que, como agora,
a gota de uma vogal
mine sozinha na página.


Amor com edifício

Pelo vidro do prédio, sou da altura
do tempo, fora da linha do mar,
geométrico no orbe, sem tonturas,
anti-séptico e incoercível pensar,

livro livre entre os astros, lira pura,
istmo do eterno a seu espaço, par

sol plano ao lívio cisne nas junturas

constelações em clara soltas no ar

No entanto, à tarde quase a suspirar
recidiva radiação se amoldura.
O amor! Eis a questão: como aturar?

E quem sutura a fenda que fulgura
Intra-sereias no fundo de ternura?
Mas já seu tempo azul volta a quebrar.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"



enseada em botafogo

uma pausa, pauta de andar ao mar
prodigiosamente reconhecer a água quebrada
compor o ruído a evocação do mar
homero e a memória da jangada
ir pela margem da íris desvelar
sílabas na aurora
tão simples é andar

andar para se preparar pro mar
caminhar não para saber mas para sentir
escutar a cabeça branca dos casarões
e as jovens flores aos borbotões
falar ao decote de uma rua estreita
e saltar da derradeira fachada
infinito do mar instantâneo
tão simples é se encontrar

não tarda amanhecer
na areia até os pombos são marinheiros desembarcados
aqui os pensamentos viram sentidos
e as sensações se materializam ao lado
se penso pirata ele surge colorido e faz amizade com a gaivota
se penso helena ela logo se encanta por algum azul iridescido
pétala de beleza bramida
mito com sereia
tão simples é navegar

a canção
dessa pauta de sensação
foi preciso despertar
porque os carros são movidos a sol
e daqui a pouco a cor prefere se calar


Ao Pedro Beccari



Dualistas

há fúrias que seqüelam a vontade
mesmo do mar; ignaro, sanho e estrujo,
arrebento-me ao meu tempesto jade
e contra mim descanso a tempestade
e parto em mim o polvo-subterfujo;
sou, sem saber, o mar e o marujo;
sempre em turvas fraturas, a verdade,
e tanto mais valente, inda mais fujo
e tanto mais covarde, inda mais rujo,
minha vítima própria em dualdade;

sonhei-me um mar com foz: em caramujo
: afloro a fundo a íntima metade



- maremoto -

olho do trans
tornado
mândubla-moenda

MMM MTUBARÃO

O que nunca dorme
- marsibério
MMMMMMMJsimério -
chama de sal incessante
acorrentada
à busca sem rosto

O que nunca pára
(reatorcontínuomar
correntes)
músculos da água
obstinada
até fender a fronteira

MMMJMMMe

MMM- maremorto -

arrebentar a busca nas geleiras

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Matrix

Ser e Não Ser,
a máscara ao espelho
de um labirinto noutro.

Prestes a virar imagem,
a palavra uma última vez
dá-se ao poeta:
terá a própria
ir’realidade.



A realidade é um polvo de mentiras
debatendo o oceano da suspeita.
Mais triste do que o custo da receita
é ser falso o xarope, em que deliras.
Sem saber já abraçamos assassinos,
quanta vez sobraçamos vis enganos;
o real racharia como os sinos
se revelasse o lançador de arcanos.
No embaraçado mar do sentimento
quem dera ir de libreto em libreto,
porém o amor, solvido num soneto,
se extingue enquanto raia o fragmento.
No real corroído de ilusão,
falsa é a fantasia, a imaginação.




Não existe o presente.
Apenas,
na imaginação de adiamentos,
arcas, ânsias,
pendões pêndulos.
O futuro é um espelho em bólide
e reflete a fuga que nos esmaga.

Estou, ausente.

Sou só as palavras-vínculo
entre a fonte - sua constante -
e a dimensão do invento.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Estado de poema

Sair atrás de uma estrofe
e não mais voltar.
Cruzar mil palavras;
compactar o cérebro,
agrupar-se, prosseguir-se;
deparar o estado
de poema.

É como um lago fundamental
de idéias em silêncio
onde a voz gera o que nomeia.

Minha estrofe forma-se
do próprio substrato:
atende não ao esforço,
mas ao chamado.


Do imaginário

Na canoa veleira,
Rildo queixa-se:
Dezesseis anos atrás,
uma arraia atravessou-lhe
a perna;
até hoje sente fisgadas –
quando é lua cheia.
Inventa?
Pesco a noite marajoara
que o orienta.


O Eu de João

João Cabral
não expressou
a personalidade:
concretizou-a.
Não se forjou
um Eu: forjou-o.
Blocos e lâminas,
rombudo de tão solar.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Pulsar

Pelo tempo plano, inteiriço,
viajar a um ponto
em que o Sol for já extinto

e detonar um verso
na indiferença
ggggggggggggiplena

gggggdo universo.


Ciclos

Re’começar,
concluir um círculo
e partir noutro,
e dentro de um
espira outro dentro de outro
e todos dentro de outro:
a partir do universo,
redondo como um rio.

Meu pensamento é um cometa
por expansas esferas
desprendendo frases diretas:
o último círculo
encerrará o infinito.


Quase gravura

Na selva de hemácias e água,
o dicionário artesiano
abre-se sozinho,
após o tempo’ral;
o sol, aos pingos,
desabotoa-se
sobre casulos-de-verbo.
À pedra – à sua medida vulcânica -
se não retempera a chama borbulhante:
gema – de magma extinto,
clara - de carvão.
A pedra, condenada a estar-se:
ainda que lhe prorrompa a água
no alto da serra.

Reverdecer a própria lava.

Onde o sol não se assola,
onde não se greta o rio,
nem o vento sopra ferrugens
nas lanugens,
um diamante forma-se: de tempo.

terça-feira, 27 de julho de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Ator(es)

No entorno do Eu profundo
a máscara forma a máscara:
re’encontra um susto, uma lágrima,
certo amor astuto.
Tão próximos que o Eu fresta-se
ao olho do público.

Enceno-me e revelo
no espelho dessa verdade
que te revela e encena:
completos no tempo duplo,
vago, vagas,
sobre a técnica como um náufrago:
consumido e pleno,
ludo.


Lâmpaga

metapoeta
eu-universo que, à luz de um raio,
em si mesmo revela um planeta:
íntima e súbita região
só tocada pelas palavras


A imaginação e os cristais

Nossas células-tronco,
lago anterior à clara,
banharam milenarmente plácidas
as gradações de medula;
a imaginação eclodiu sobre as gemas
como se a água nos criasse
para ver-se.

O que meu corpo
sonha
agora?
Que fulgor se grota
ao leito túrgido
das simulações?
Quantas eras
até consumar-se, noutro demiurgo,
a palavra da qual apenas
sou uma existência?


terça-feira, 20 de julho de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"



É ele, o homem que saiu
à rua.
Nem atravessa o semáforo:
à frente estão os famintos.
Nem pode olhar pros lados,
espreitam-no os seriais e as tribunas.
E o homem não pode ficar parado,
cercam-no os corruptos e as crianças prostíbulas.


De que lado você está

Inacessível ilha, asa de sede,
ou o contrário, voo cercado de mar.
E também, por incompleta a asa,
o coração mutilado de um artista jovem.
Calidoscópio, palavra do que é livre.
À noite, às vezes, o infinito ficava tão lindo
que o podíamos visitar;
era, no entanto, a Poesia
e a própria palavra a negaria.

Banalizamos o que vivemos;
acostumamos, matamos, morremos;
o tempo em nós é certo como no eclipse.

Matei quando, a poesia?
Há beleza nas cidades,
mas a abstração envolve-a de tédio
sem vivê-la;
há pontes estendidas nos sonares,
mas o real é uma sucessão de viadutos;
então, nos cais e trapiches,
o delfim de chapéu declama às moças.

Toda normalidade é gris,
mais quando a barba desilude-se
de manhã;
perpasso ruas cansadas
no diazinho eterno,
rumo ao horizonte pôr-de-sol;
(num lampejo, topei com sereias
e extraterrenas
e pensei que eram sentidos novos
que o próprio corpo
acrescentava aos sentidos);
se chover, a melancolia trará à superfície
as rachaduras das águas
e nas súbitas locas do ar
a poesia permanecerá um pouco,
como as pessoas.

E a plenos becos, mas impávida,
a contemplatividade lembrará
que o sentido da vida é o lado de que estamos,
nesta temporada de objetivos idiotas:
apenas isto, o lado de que estamos:
aceitar ou não ser vulgar.

A chuva chega, com ruflos de ilha.
Migrarei como a crista de um veleiro.
Metáforas desabam raias,
engulo o canto do coração impulsivo.
E ao menos recupero, inenarrável,
um tempo saciado de inacessível.


Manhãs

Somos só a cantata cardeal,
cabala em seda ao tato do menino.
O tempo é simples e belo. Graal
é o mar com seu fole violino.

Somos só o café mais quentinho, a mãe
ficando para trás até o final.
A juventude de cheiros mamíferos
nas orquídeas ferroadas do quintal.

A luz transporta sua tapeçaria
e resta a fábula das sete vidas.
Relógio cuco das idéias rotas.

Somos só as varandas ressequidas,
o saleiro do sol sobre o fastio.
As mãos da avó abertas nas papoulas.

terça-feira, 13 de julho de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Tempo ditado

Livro-solo
e solar;
faço o parto da terra:
flor;
na minha filha
a água mina.


À Neoma



Os binôminos

O tempo somos nós.
Cada homem, feixe de tempo
tecido a outro -
tempo passado
de pai para filho -
cultura de tempo
em frascos,
hordas em ondas migrando -
futuro que é pretérito,
presente que virá;
o espaço somos nós -
impassivados, ignorados, desastrados
pelo tempo inexorável,
tempo que o espaço reproduz,
insaciável do próprio infinito.



Outra mudança

Proceder à transformação
é suportá-la.
Morarei num lugar
que ainda não conheço:
eis a primeira dor da vida;
e sua dádiva, sobre
todas, revelação.
Ao despedir-me
deste apartamento,
nos tornaremos irredutíveis;
mas não como nostalgia
às descobertas -
pela vida vivida;
a memória é a densidade
em cuja duração
o tempo é quase um amigo.


Março de 2005

segunda-feira, 5 de julho de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Tudo o que sobrevive foge, verso
contraverso da natureza havida
em clara, que mina ao reverso
para, morte em lua, repontar-se à vida.

Se sobrevive, foge a sol inverso
num pêndulo de messe inconsentida;
pêndulo de si mesmo, nem o universo
paralisou em si sua saída.

Se sobrevivo, fujo, fendo o real
e a vertigem tange em timbreastral:
chamas graxas roxas no eixo do dia.

O universo chega - expande-se, explode
gerando estrelas sobre o vácuo em ode.
Só forjo em jorro, trânsfuga poesia.



Panfleto gotejante

O que explodia,
há bilhões de anos?

Galáxias em clara
de fogo
e ninguém para encerrar um universo
e inaugurar outro;
ninguém para sonhar o poema da água,
odisséia carbonária e sílabas libélulas.

Hoje, dois mil e três, 2003,
sonho que um dia, ao continuarmos a água
com improváveis matemáquinas,
uma haverá para o passado
na qual voltaremos
através das eras,
olho de poeta
contemplando o tempo
até gerar-se de novo
o primeiro incêndio;

sonho, pois o poema da água
encerramos.




Concebi no rio o poema
e escrevi-o com as pontas das mãos -
nascimento para a água.
Agora,
nessa beira de mar
no Pará
que não é de areia
mas de barro,
surge uma espécie nova
de líquen:
e contemplo na concha dos dedos
minha palavra ainda sem nome.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Alumbramento

O universo se aninha
à minha filha
que ainda não nasceu.
Dar-lhe um nome
é gerar nos feixes amnióticos
o espaço paralelo
dos símbolos.
Palavra-genética
como o liquor da biosfera
e o colostro da Via Láctea,
que não eu, mas a mãe
(condão de verbo
sobre todas as coisas)
deve amar
até pronunciar.






Minha filha nascerá em dois meses.
Escuta tudo.
O mundo a dez centímetros
e desconhecido.
Sei que ela já viu
alguma imagem
aqui de fora:
cena de sonho
gerada como um jambeiro
na mente ansiosa.
A vida serão as imagens
das vozes - essas vozes - mais perto,
nítidas, tal um fogo.
Minha filha sabe sem pensar
- aliás, ainda não tem nome,
estado de palavra:
pensamento
é pra quando olhar o mundo
de fora pra dentro.


Lamento da mãe do campo atrás

Minha mãe, casa de clara,
vira chuva como as frutas
e voltará se eu estiver aqui.
Esperarei contigo, filho de minha lua,
longe de teu pai, sol do meu parto.
Aqui, chegarei.
A água fez o melhor por mim,
tenho medo de não retornar;
medo de ficar só,
longe do rio de meu filho;
aqui, chegarei.
Rebento do meu solstício,
fala das borboletas
que sofri para teu vale;
fala para não esqueceres.
O universo é uma gota dos olhos
e velarei toda a noite:
dorme, o rio está parado.
Se for preciso, cantarei.
E onde nunca ninguém saberá,
morrerei.

RESENHA DE PAULO NUNES

O texto abaixo é do escritor, poeta e professor Paulo Nunes, sobre meu livro "Do real imaginado", que publico aqui no blog.


Palavra: que instigante potência a vossa – Paulo Nunes[1]

Este livro pode passar despercebido aos olhos de um apressado visitador de livrarias. Miúdo, capa branca, de editora de tímida projeção. Estou a falar de Do real imaginado, do jornalista e cronista Édson Coelho. 92 páginas, 11 X 20 cm. Trata-se de um investimento seguro da Projecto Editorial, de Brasília. A editora, capitaneada por um poeta também, investe em escritores das mais diversas tendências e nos brinda, neste início de 2008, com esta coletânea de poemas, prefaciada pelo mestre Ernani Chaves.

Não digo que o livro é irretocável de lés a lés (como o são as crônicas deste criativo escritor), haveria, certamente de se selecionar (a seleção entretanto é uma busca individual) alguns textos e pedir a outros que se retirassem do livro? Faltaria educação para tanto (falo da “educação pela pedra”, bem dito). O poema que dá nome ao livro é uma peça instigante. Nele, elementos da narrativa deixam antever um prosador engrenado nos artelhos da narrativa (tempo, espaço, margem/ns), mas salta aos olhos o intertexto com Age de Carvalho e, sobretudo, Drummond, o Carlos, que nos batizou a todos que gostamos de poesia em língua portuguesa. Outro vetor de inspiração (espelho a contemplar-se?) é certamente Fernando Pessoa e seus heterônimos (a primeira parte do poema “O Andarilho” é de fina, sofisticada, beleza). Neste mesmo texto pululam entrançados textos, que vão desde os gibis até escritores clássicos. O intertexto, insisto, é uma funda inclinação da poética de Édson, que neste poema parece reescrever, em versos, o Atlas de lugares imaginados. O “nonsense” é uma busca constante do poeta, que ali teve seu ponto alto.

Das fortes emoções que tocaram este leitor que vos fala é o poema “do Éden”. A força do texto está na dicção precisa, na falta de conexão, pois poesia ali é sugerir e não a sintaxe da argumentação, que é explicitadora. Na mesma linha está “Canção da noite”. Bela geografia de desejos com poucas palavras, em sete versos (o número cabalístico é mera coincidência?). A cultura das aparências, por sua vez, é defenestrada num ácido poema-confissão – “Sílica”: “[a mulher afronta a todos com] plásticas até no clitóris”, dizem dois versos – em que o eu-lírico se desnuda (ah adolescência nossa o quanto devemos a ti!) e parece reavaliar a si próprio.

A metalinguagem é, pelo que percebi, o mais forte traço do livro. E ela está a todo vapor em “Arte poética”; nele, o poeta recoloca a máxima de que o silêncio é de ouro (mesmo que a palavra faça muito). A metalinguagem, agora mais rolambarthiana do que nunca (falo da idéia de que o corpo da letra é uma re-significação da escrita da vida), traspassa o poema “Tempo ditado”, uma pungente homenagem do poeta à sua filha.

É isso. “Do real Imaginado” faz jus ao escriba que transita habilmente no solo da palavra-terra (a metáfora está recriada no livro), onde poetas tão bons se fizeram, se fazem: Bruno de Menezes, Paulo Plínio de Abreu, Ruy Barata, Mário Faustino, Age de Carvalho e o incomparável Max Martins, somente para se citarem alguns de gerações que nos antecedem.


[1] Paulo Nunes é doutor em literatura; professor da Universidade da Amazônia, Belém-Pa.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

UM RAIO DE TEMPO


LIVRO "DO REAL IMAGINADO"

Cecília

Canto como o instante existe:
sôo, apenas: poeta.
Há dias não fico triste.
Onde andarás, hora dessas?

Nossas canções se entenderam
como asas, de par em par.
Busco-te agora nas ondas,
retorno pra te esperar.
Se estás fora do espaço,
um verso talvez te ache.

(À noite,
o firmamento é um barco
que navega em si

e teu nu é um raio de tempo -
uma sereia - na aragem.)

Haverá uma passagem?



Pequena morte

A paixão - vertiginosa
alquimia dos sentidos -
gerou um sol
longe do espaço.

Tudo era impalpável e mutante
e simultâneo como uma fonte:
a satisfazer
nossa semelhança.

(Teu desejo mais íntimo
a imaginação reservou
num favo de chispas.)

Dormieacordei
no mesmo sonhoeinstante
e ao me reanimares
chorei e cantei.

Estávamos ainda
noutro lugar?


Arte poética

O pensamento a vertiginar-se
com verbos e galáxias;
as estrelas, polens
do fogo,
soam no casco
dos insetos;
luzferrão,
marimbondos.
Assenti ou mareei
ao sentir
como vinhas;
hoje, calo.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

AO ENCONTRO DO TEMPO: PARATY


LIVRO "DO REAL IMAGINADO"



Na varanda dos tijolos verdes

Fugir ao encontro
do tempo: Paraty.
Amurados com o antigo,
os telhados transformam
as ruas em pátios;
acobertados pelo casario,
amor e livros.
A réstia de um milênio
se esvai sobre nós -
a concretude de raiz,
as árvores súbitas


climax lux


cerração de sílabas na lua,
abalada por tua morenice.
Para ti esta fresta-
fronde paralelepípeda
esgalhada ao sol da memória.


Para o Amor

Dou graças ao sal luxuriante
de tuas bodas de perda,
àqueles dias
no jardim das delícias,
quando bestiais contrários
se completaram sem destroços.

Amor em asas,
migração de duas aves sempre perdidas,
também agradeço este adeus incessante
pela ilusão de um espaço
sem aniquilamento.


Dando voltas com um Eu do Outro

Há mais de um predador todos os dias,
talvez um rex, talvez uma serpente.
É o alimento, bela, da libélula,
da tilápia, da aranha, dos suspiros.
Há vírus - Tróia das hemácias - que
se fazem cópias ardilosas para
surpreender nossa defesa.
Toda
célula mata e morre, e a fuga
angula um tango com a perseguição.

(São como uma elegia em corrupio
o ataque e a defesa entre as espécies.
Reparo os truques do camaleão,
que ganha a vida ao viver de ilusão;
o limão laborou o azedo, a abelha
tem veneno na bundinha de mel;
o gambá escafedeu-se borrifante
da cascavel que eriça guizos áridos;
toda roseira exibe espinho, toda
felina arranha mesmo sem querer.)

Conformes aos vírus que se copiam,
ludibriamos nosso in-consciente:
por trás do Eu há outros Eus, gerados
ao se conter ou liberar instintos.
De acordo com a situação, um Eu
assume, muitas vezes em surdina.
Tenhamos por exemplo esse amante
que surge, esgueirado aos lampiões:
qual, agora, o seu Eu, se vemos dois,
um que é casado, resistiu bastante
e teme imaginoso pelas conseqüências,
e outro que, como um Iago de si mesmo,
plantou-se frases, sugestões, e foi-se
convencendo sem suspeitar, até
sucumbir-se a uma versão final,
complicadíssima, da moça à espera:
qual é verdade, o que engana a si
resistindo à paixão, ou o que se engana
sugestionando-se, a ponto de, após
o idílio, se jurar viva inocência?

Quanto a nós, diva, quem sabe, entre tantos
Eus marcados pela fração da rua,
não teríamos também um para esta lua?

terça-feira, 25 de maio de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Do real imaginado

Abro este bairro antigo
como a um pergaminho de sensações.
Aqui o tempo mora em casarões
e acena da janela aos barcos.

Meu primeiro bairro antigo
foi a Cidade Velha, Belém.
E tanto o preservei comigo
que, agora, não sei se ando esta rua
ou alguma de outrora.

À sensação no tempo visitado
chamou-se poesia;
na vizinhança,
outros nomes deram forma
a causas fora do espaço:
esperança, sorte, fé,
destino, imponderável,
pressentimento.
Nascentes
à nossa margem.
H
g
Poesia
H
Em casa de Tarcísio –
ateliê-galeria –
tudo ao mesmo tempo é real e imaginação:
o armário, as cadeiras, o cinzeirosão
mais que objetos, são objetos:
personificações.
G
Clima perfeito
como numa nostalgia,
transposta entre amigos e:
as coisas nos são se as somos.
E hoje reproduzimos
uma cena antiga,
imaginada mas nunca escrita,
obra apenas da memória da arte:
cena que se recorda em nós,
transfigurantes,
supra-reais
H
H
H
leio uma crônica de argumentos
e Bóris comenta: “Cercou o frango!”;
Neoma desenha;
(Tarcísio foi ao bar): TELAS;
Gaya gargalha para Shakespeare;
a comida avisa
que está quase pronta.



Sílica

Na tv, mulher mostrava
dezenas de plásticas;
até no clitóris.
Essa ela não mostrou.



Por causa do silicone,
criou-se outra categoria
de peitos grandes:
naturals”, os naturais.



Turbinadas heroínas
de quadrinhos futuristas
da minha adolescência.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


A véspera

A cor é o único tempo.
A aurora já balança os galhos
e o inverno está próximo.
Narciso não abre os olhos.
outra vez, o sonho
Três lembranças do sol nas bétulas,
nove canções para vozes azuis.
A luz aninha a fronde no Lago.
O Sol está triste - não há nuvens
mas a morte chegou.

Narciso já desmaiou entre as estrelas
que adornavam a água admirada;
lançou-se nas simultaneidades
de futuro e passado, sonho e imaginação;
recebeu o Sol como a si mesmo
e as moças estrelas, incendiadas,
rolavam das órbitas de estertor e êxtase.
Hoje apenas sente, lá fora, as angulações do dia pleno.
um pesadelo que o entrega ao escuro
Súbito, abre os olhos -
por um momento,
não pensa em nada, repleto;
presságios na luz da vida.

Silêncio em tudo.
Expectativa nas folhas, alegria nas frutas.
Os pés chegam ao Lago, hesitantes.
Quinze sóis até as chuvas,
Narciso apalpa o rosto como se sonhasse um incêndio.
Curva-se ritual para a própria imagem,
recupera-se sem esperança;
nunca presenciara a despedida de um herói.

Uma sombra tolda o movimento na água:
pela primeira vez, a chuva surpreendia-o:
Narciso a pressentia nas cores e temperaturas,
sons e hábitos dos bichos; sabia-a na pele,
nos ossos, membranas;
e agora tal nuvem – sem fala
e tão corrompida.

Ele mira-se no lago trêmulo
e o rosto distorce-se.
Transparecem o orgulho, o desprezo, a arrogância;
no espelho por trás dos olhos, o horrendo:
cuspe nas rosas, lama no poço.
Imóvel sobre o Lago, Narciso
chora pela beleza desperdiçada;
lembra da mãe e de si mesmo, beleza
perdida, e chora por nenhuma amada;
as palavras estão por toda parte,
beleza comentada, e ele chora pelo Sol, único poeta.
Ri triste como os homens.
Lágrimas de amor, seus últimos olhos.
Amanhã, morrerá.



RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRÀ Cristina Souza



neolítica


a serra é um estado da memória



(



a rocha
poliniza-se
roxa
e na transparência porosa
volteia
asas e pétalas corrosas



)



aqui
uma mariposa lítica
é a poesia
e deixa
à margem do papel
a plumagem por testemunho



BBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBBAo Antônio Moura

segunda-feira, 10 de maio de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Brinquedos

Não estava acostumado
com televisão,
e o Falco foi massificado:
um precursor do Rambo.

Desembrulhado, porém,
o herói era estático
como plástico
e o menino sofreu
de publicidade.

II

A boneca
ou o Soldadinho de Chumbo
têm que realidade,
agora que só os lembramos?

Que palavra de verdade
dizer ao Saci de pano
com quem numa gaveta
topamos?

III

Primeiro ela sente o cheiro
da caixa: patchouli
envelhecido.
Retira a Emília de pano,
e cuidadosamente absorta
lava-a: corrige cada
pequeno furo
ou imperfeição:
perfuma-lhe
e enlaça o cabelo.
Quando era criança,
falava mais que a boneca;
hoje, apenas chora,
chora, chora cuidadosamente,
e a Emília de novo lhe sorri.



O Andarilho

Carlitos fora visitar Alberto Caeiro
e Fernando Pessoa o fizera esperar.
(Disse-me que só em Portugal
o lirismo pôde um dia virar cristal.)
Quando Caeiro acenou,
poeta situado a meio do outeiro,
Carlitos também viu odes campestres
A brincar com sensações.

*

Pinóquio manda da Terra-do-Nunca
poema para Wendy em Macondo:

“Duas borboletas voam para o alto, para o alto,
para se esconder do sol entre as estrelas...”

Wendy responde, do País das Maravilhas:
“Você ainda tem
espinhas no rosto?”

*

No inverno, Iessiênin percorre a cidade,
até o bar das goteiras;
tenta namorar Ofélia, que tem medo;
Maiacóvski às vezes aparece
e briga até com Cecília Meireles;
hoje, do nada, Ofélia pergunta:
“Que é feito de Isadora Duncan?”

*

Haurir a imaginação
feito a memória de Borges
através do xadrez de estrelas;
entregar a órbita do menino
que há séculos passou por mim
e até ontem me buscava.



Ao lado do cisne

“- A água fenece, brota:
o tempo de uma borboleta.

Tua forma
é como o vôo do urubu

estarão contigo
estes fogos de estrelas.

Eu, por mais de um rio
lastimei a vida, lamentei o amor;

cantas antes de morrer.”

segunda-feira, 3 de maio de 2010

LIVRO “DO REAL IMAGINADO”




Antes de amanhecer


rrrralvorrrrrrrrrarco

rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrlua lançada

rrrcrescente vazante

rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrnosso b

rrrrarcorrrrrrrrrrralvo:


frrrrrrrrflecha
rrrrrrrrrrrrrrrrrre
rrrrrrrrrflexa


rrrrrrrrralva

rfrà beira de Belém.


rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrvvvvvvrrrrrrrrrrrrrrrrrrÀ Daniela



Do Éden

Ave
bbbbbbbanida
que se arrasta com seu êxtase


na origem do Tempo


Eva deixa de novo
os cabelos crescerem.




Na eternidade

- Lembro que eras pedra
e eu, vento,
e milhões de anos depois
falei: "Pode abrir os olhos!”
e viste o mar.

Diazinho inolvidável:
tomaste, na areia,
minha primeira Helena
e distribuímos o mar
entre deuses aparvalhados.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


fffffffRol de ímãs
fffffffffmanhãs
fffffffrolimãs do firmamento

água fremida,
fendida
ffffffffffffffffffffffffromãs
broto na estrela
ativa

fffffffnaturo
fffffffffffpalavra
fffffffrebento
fffffffffffviva

fffffffuniverso




interior

o rio corre em teu rosto
onde inda brilha o sol posto

o rio dorme em tua face
e cada estrela que nasce

banha-se a lua na rede
te acordo: tenho sede




Canção de noite

Tempo sem foz, o universo
palpitava, apenas,
para chegares:
entre os arbustos.

“Vai chover!”, disseste.

E eras o primeiro pingo,
lágrima alegre.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


61 - Improviso com tempo


Se o tempo fosse uma bola, eu teria oito anos e seria “gandula de estrelas”. Se fosse uma árvore, eu retornaria, com mil anos, para a beira do rio.

Se o tempo fosse uma cidade, eu compartilharia cevada e lúpulo. Se fosse o mar, eu incitaria um turbilhão de sereias.

Se o tempo fosse um poeta, eu quereria distância.

Se o tempo fosse tão somente a água, o mel não teria memória; se fosse vácuo, eu voltaria a voar.

Se o tempo fosse a mulher, eu investiria brusco e humilde; se fosse o filho, não haveria morte.

Se o tempo fosse um poeta – se o tempo fosse o Tempo - eu ficaria longe.

Se o tempo não fosse cego, eu seria um samurai; se não fosse neutro, eu seria pedra.

Se o tempo não fosse o homem, eu me converteria à obra; se não fosse em mim, eu desenterraria uma nova roda.

Se o tempo não fosse palavra, eu seria música; se não fosse o silêncio, eu não ouviria. Se o tempo não fosse o fim sem fim - se o tempo não fosse, simplesmente.

O cotidiano todo dia me vira a cara: se o tempo fosse, se o tempo não fosse, se fosse e não fosse, senão.

O tempo é o nada que é tudo e o tudo que é nada.

O tempo é o único deus de si mesmo.

Vou andar oitenta anos até entender o tempo.

Vou nadar oitenta anos até aceitar o tempo.

Vou vencer o tempo por um segundo.

Vou banir o tempo com a música; a música é a arte preferida do tempo.

O tempo é o único que é, no espaço; eu, sou e não sou; acima da linha do mar, fico da altura do tempo.

O tempo existe quando não existe; eu, penso. O tempo não pensa, logo, existe.

O tempo é o mais charmoso vilão de Quentin Tarantino.

O tempo até hoje lê o Sítio do Pica-pau Amarelo.

Escrevi quatro poemas sobre o tempo, que os ignorou.

Não vejo a hora de acertar as contas com o tempo.

O tempo detesta o domingo - a abrir e abrir as semanas fatigadas (que o contam), uma atrás da outra, portas num casarão infinito. (Se o tempo fosse o homem, sofreria até o não-fim.)

Dedico este domingo ao tempo.

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


60 - Água

Este relato se passa no ano cem mil e quatorze anos depois de Cristo, mas serviria melhor ao século XXI.

Por uma daquelas inexplicáveis circunstâncias da política, o futuro presidente do Universo Conhecido era Edward Lydon, escultor de apenas dezessete anos. No dia da posse, horas antes de discursar para dois trilhões de seres em duas galáxias, Edward apagou as luzes do quarto com um dispositivo cerebral (instalado em seu corpo cibernetizado) e entregou-se a um banho de vapores vertebrais: vapores perfumados, coloridos e de temperaturas variadas. O jovem ergueu-se do banho de olhos fechados e, sem acender as luzes, andou em direção ao pátio do enorme apartamento flutuante (como uma plataforma espacial). Quando chegou ao pátio, sentiu as luzes se acenderem sozinhas, abriu os olhos e viu, através do vidro, um corpo celeste produzir lá fora um clarão - Edward baixou a cabeça e teve uma visão, que se passava centenas e centenas de séculos antes: uma moça banhava-se em água corrente, num planeta que só podia ser a Terra.

Edward (ao contrário de quase 100% das pessoas) já fora à Terra e vira o rio Amazonas, ou o que restara dele, e assim pôde reconhecer o cenário da própria visão: o riozinho parecia canalizado diretamente nas gordas nuvens entrevistas sobre as copas das árvores; a água percorria a pequena cascata de pedras até chegar a uma grande rocha; ali formava um pequeno lago, que transbordava sobre a rocha e sobre a moça.

Edward sabia que era uma visão, não um sonho, e que não era um simples delírio, mas uma revelação.

Ele revia a imagem como um profeta, e sabia que o rio (o tempo) encharcava o corpo da moça sem arrastá-lo, minava a pedra sem dissolvê-la; de tal forma que as impregnava de uma substância eterna parecida com musgo. Assim (sem a mediação do tempo) a menina banhava em êxtase, e aquela água banha-a até hoje, e tal certeza ninguém tiraria de Edward. Mais: ao recordar depois a visão, o jovem sentiria algo que nunca vira ou experimentara, e não sabia de onde vinha, a não ser da ancestralidade que já durava cem mil anos: Edward compreendia o rio que banhava a moça como se ali passara a infância, e sentia até o limo frio que a água criava nas pedrinhas, ao roçá-las incessantemente pelo fundo.

Em menos de duas horas, Edward se tornaria o homem mais poderoso do Universo. No entanto, se comportava como o escultor. Arroubado pela juventude, ele fez então o que nem a política explicaria: discursou de improviso no evento mais importante do ano. Gastou longos minutos explicando o que era a água e os benefícios que, no passado, trazia ao corpo. Falou de como ainda hoje parte da angústia humana era provocada pelo desconhecimento da água (cujas funções no corpo foram substituídas por outras substâncias ou programações cibernetizadas). “Caso o ser humano volte a ingerir água regularmente, se curará da melancolia que atinge a espécie em tantos planetas...”, escandalizou Edward a todos.

Ora, caro leitor, Edward Lydon não seria um presidente de fachada. Era um jovem extraordinariamente dotado. Só se aceitou sua condição de herdeiro (até atingir a maioridade para o cargo, de 25 anos) porque todos o amavam. Mas aquele súbito elogio à água poderia ressuscitar um antigo e insensato projeto: reproduzir a natureza terrestre noutro planeta, infinitamente maior; e a um custo que poderia comprometer projetos com os quais já estavam comprometidos tantos parlamentares e governantes de países e planetas.

Após o discurso, Edward recolheu-se com familiares, amigos íntimos e membros do poder. Anunciou que só voltaria no dia seguinte à que já era a palavra mais falada do universo: água. A despeito do sufocante assédio de que era alvo, não demorou a isolar-se no quarto enorme - pensando em como encontrar a moça, a fonte, o sol, as árvores, o limo das pedrinhas no fundo do rio.


segunda-feira, 12 de abril de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


59 - Aparelhagem

O pai de Carlo, Genaro Miaggi, migrou do interior de São Paulo para o interior do Pará com espinhosa missão: superar uma desilusão amorosa, pela qual tentara matar um primo. Na Vila Concórdia, refez a vida: casou-se com Alda Kobayashi, inventou um sistema de manejo de gado (para terras sem água natural) e, em poucos anos, transformou leite em iogurte e montou o primeiro posto de gasolina. Carlo, filho único, cabelos claros e olhos castanhos e “puxados”, foi tristemente tímido na infância, mas melhorou na adolescência entre os carros no posto (às vezes como frentista) e aprendeu a dançar em festas populares. Aos 17 anos, veio morar, a contragosto, em Belém – o pai montou um equipado posto de serviços no Marco e parte da família transferiu-se para o bairro. Meses depois, o tio de Carlo que administrava os negócios na Concórdia acidentou-se, e o garoto foi enviado à cidade natal para ajudar. Em Concórdia, trabalhou duro no escritório, tratou com bancos e fornecedores e com os grandes clientes do posto. Um dia antes de voltar para Belém, compareceu a uma divulgada festa de aparelhagem. Na festa, típica daquele início de anos 80, Carlo conheceu Ana Carolina, que já o conhecia.

- Vi você no posto. Minha tia fala muito sobre sua família - disse Ana, apresentada por uma prima. - Nasci em Paragominas, mas moro há três anos em São Bernardo, interior de São Paulo.

(São Bernardo, de onde Genaro Miaggi migrara para a Vila Concórdia.)

Carlo e Ana Carolina logo começaram a dançar. Duas horas depois, saíram da festa, e se beijaram e beijaram embebidos por bilhões de estrelas. Ana estava não corada, mas brilhante, um brilho de dentro para fora, de tal forma que se afastou de Carlo e retornaram para o salão.

Dançaram outra vez de tudo, e se beijavam sob as luzes apagadas, e também sob as luzes acesas, Ana se recusava a voltar lá fora, para a privacidade estrelada, 'Celebration', Donna Summer, e ritmos caribenhos (a voz do Caribe, negra-marfim, era tão metalizada que se imantava: voz que saía das paredes sonoras da descomunal aparelhagem e se grudava - se atraía pelos ímãs - nos minérios em geral pelo salão). E foi o Caribe que grudou Ana e Carlo, mas não um ritmo quente, e sim uma balada: a balada mais linda que ouviriam.

O minuto que não se apagará no tempo - o que guardaremos na memória - é sempre a síntese de bilhões de minutos, situações, sonhos e sentimentos. Mas esse processo de circunstâncias precisa de um desfecho (fechar o ciclo) e, aí, elementos até bem fortuitos desempenham papéis extraordinários. A balada caribenha - metalizada, imantada, ritual - tornou-se inesquecível por três situações íntimas entre si: os beijos do casal adolescente; o fato de que, já de madrugada, o corpo precisara do auxílio do corpo para varar a noite, e eles receberam aquele respiro de adrenalina que nos redobra a energia e clarifica os sentidos (no caso, passaram a 'sentir' mais a música, o andamento, as belezas sutis); e, por fim, o suor.


Carlo e Ana Carolina estavam tão apaixonados que, até ali, é como se não tivessem se apercebido do suor: grudados, mas sem se importar, encharcados do próprio cheiro, sem se aperceber: durante a balada, tomaram consciência (sem uma só palavra) do suor a misturar-lhes, a uni-los para além do corpo e do acaso, e, eu diria, tiveram não consciência, mas uma iluminação - compreensão tácita entre si, sem palavras - dos próprios cheiros a defluí-los no vento, eternizando-os, aquele suor tão íntimo quanto um toque, e esse esfregar-se, empapar-se mútuos sem nojo, sem refluxos (ao contrário, cheiravam-se como a esbanjar-se) tornou-se tanto mais memorável por outra providencial iluminação e, quando a balada caribenha deu vez a outra, Carlo e Ana, sem palavras, fugiram da festa para o turbilhão de estrelas.

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


58 - Açaizeiros

A Amazônia é a maior mãe da natureza e penso, agradavelmente, que nós, paraenses, somos seus filhos preferidos. O mesmo devem sentir os açaizeiros.


Estamos num quintal em Mosqueiro, serão 18 horas; noto que uma touceira de açaizeiros disputa espaço com uma mangueira. A mangueira, enraizada, projeta e espalha os galhos, e sombreia várias pequenas palmeiras na disputa pelo sol. Acima da copa da mangueira, porém, balança um açaizeiro que cresceu mais do que os irmãos, e atravessou os galhos e a fronde. As folhas deste açaizeiro-primôgenito, mais verdes que as dos irmãos, atestam a inteligência de sobrevivência da touceira, que concentrou numa árvore o melhor de suas raízes, fincadas em feixes envolvendo raízes de outras espécies. Do jeito que, na vida, disputamos espaços e outros objetivos, e quanto maior o triunfo, maior o verdor.

Veja, no quintal ao lado (em Mosqueiro, os terrenos são quintas) exibem-se outras touceiras de açaizeiros. Duas, a uns quinze metros uma da outra, parecem rivais. Dir-se-ia que adotaram estilos diferentes para competir em altura: enquanto a maior árvore da touceira à direita tem igualmente o tronco mais grosso, consistente sobre as irmãs, a maior da touceira à esquerda é, digamos assim, um palito. As folhas das altas rivais têm quase a mesma tonalidade/intensidade (as da que tem o caule mais consistente são mais intensas, puxando ao musgo). Ambas as palmeiras estão entre as mais altas entre todos os quintais e, como se enxerga, o vento está forte, quase friorento. E nossas duas rivais balançam, não, bailam, em gestual.

O açaizeiro é um dos traços mais lindos da natureza. Mão de artista o desenhou num único movimento (tenho a impressão impossível de que foi de cima pra baixo) com lápis de ponta fina. Aquelas raízes em feixe, cada vez mais fincadas, erguendo-se em contraponto, mais alto, mais alto, e tanto mais alto o açaizeiro, mais parece feito de uma só ondulação com o lápis.

No ar, as raízes viram folhas e cachos, e à medida que estes caem, o tronco alteia-se em nódulos de fibra, que se projetam em novos nós, sempre para o alto, como se o tempo, quanto mais tentasse abatê-lo, mais lhe prolongasse a elegância.

Muitas árvores se protegem do vento com grandes raízes; enfrentam-no, fincadas como braçadas de clorofila. O açaizeiro relaciona-se com o vento sendo esguio. O vento não se choca contra ele, e sim parece atravessá-lo, ou melhor, quase não o toca. E assim desenvolveram ambos tal bailado: o esguio das palmeiras é vergado a partir das pequenas copas (como se o vento as puxasse pela cabeleira) para um lado e outro, e às vezes a linha ondulada do caule verga-se tanto que parece obedecer a forças opostas, apontando para lados diferentes, e é evidente o prazer comum que sentem, árvore e vento, de tal forma que o friozinho que nos acalenta se prolonga por horas: mais do que química, rola uma física nessa noite de sábado, e é como se hoje estivesse tão perfeito que árvore e vento ultrapassassem os próprios limites, e agora a cintura da palmeira está a ponto de partir-se, e lhe podemos até adivinhar-se na ponta das sapatilhas, digo, das raízes e outras terminações nervosas.

O paraense é bom de dança, sabemos, de tal forma que, em qualquer periferia ou interior, os casais girando parecem pré-selecionados num concurso. Mas tirar o vento para dançar, ou aceitar-lhe o convite, de forma que o estar das folhas seja como o estar da dança, e não o contrário, é um capricho e tanto da Amazônia. Pensar que tal palmeira ainda dá o açaí...

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57 - Cenas paraenses

A pata grotesca

Isopor em aeroporto é sinal de paraense. Se a pessoa chega de Santarém, não há dúvida: traz comida, pronta com o tempero da avó, ou por fazer, em forma de peixe ou pato. Ou de tartaruga.

Vôo de Santarém, e os passageiros gargalhavam ao recolher a bagagem na esteira rolante.
Até que só restou um grande isopor, girando, abandonado pelo dono com medo do Ibama.
Motivo: uma tartaruga, a despeito de cuidadosamente amarrada, libertara a potente pata dianteira direita e com ela furara o isopor.
A PF vigiando, a esteira rolando e aquela pata pra fora, a acenar.


Só excomungando

Aquele jornalista chegou ao apartamento de manhã, bêbado e sedento. Não tinha água. Nem na torneira. Dormiu atormentado, e acordou à beira da desidratação. Sem uma gota dágua.

Numa decisão de vida ou morte, resolveu lamber a parede do congelador da geladeira vazia. E a língua grudou.

Foi pior que dormir na sarjeta: a língua grudada, o telefone longe, o interfone perto, mas fora do alcance, a língua queimando e o risco de, ao se mexer muito, perder a ponta do ressecado músculo.

Alcançou, por meio de contorções indescritíveis, uma enorme chave de fenda, com a qual agrediu o congelador, salvando a língua, mas perfurando o plástico: o ressaibo ardido e pressuroso do gás a vazar.


No interior

O cumprimento é sagrado nas veredas interioranas. Por mais que não se conheça a pessoa, diz-se 'Bom dia!', 'Boa tarde!', ou simplesmente 'Ooooi!'. Este 'Ooooi!' é destinado, inclusive, àqueles a quem não se enxerga. Se, por exemplo, ouvimos vozes ou o trotar de um cavalo, longe, dizemos 'Ooooi!' e recebemos de volta o cumprimento. Um gesto automático, cultural.

Cultural também (sobretudo seis décadas atrás) era a caça para a alimentação da família. E os ribeirinhos garantem: sempre foi quase impossível abater um maguari.

Seu Renato tentava há anos levar um maguari para o jantar, mas sempre falhava: o pássaro, arisco e esperto, nunca se deixara surpreender.

Num belo entardecer às imediações de Alter-do-Chão, seu Renato vinha com dois filhos, quando enxergou à distância, na copa de uma árvore, uma turma de maguaris. Aproximou-se sorrateiramente com um dos filhos, Zezinho. Parecia um milagre: estavam já sob a árvore, e nenhuma ave voara. Seu Renato estremeceu de alegria quando firmou a mira. No segundo em que ia puxar o gatilho, ouviu-se baixinho, quilômetros distante, o cumprimento: “ooooi!”. E Zezinho, automático: “OOOOOOII!!”, espantando a passarada.


Poraquê

Na palafita, o jovem pulou da cozinha para a água enlameada do quintal, na tentativa de aparar um papagaio que chinava. Na água, pegou um cano de ferro para enrolar na rabiola - e foi parar no hospital.

Levou uma descarga de centenas de voltts: de um peixe elétrico que morava no cano de ferro, embaixo da palafita: à espera de se restabelecer o contato das águas do quintal com as do rio Tucunduba, ali no Guamá.


O veneno da bacurinha

Um jornalista boêmio senta-se ao lado de outro, no Cosanostra. E espanta-se.

- Caramba! Vieste da guerra, da Transamazônica, de Woodstock? Maluco, tu tá pior que o bagaço da laranja!

O outro permanece calado, baixa a cabeça diante do copo de uísque e retorna à divina comédia de pecados.

Minutos depois, intrigado, o amigo indaga:

- Afinal, o que diabos te aconteceu?

O moribundo busca no fundo do ser todas as forças, puxa o ar para fazer chegar à boca a débil fala, e responde como se lhe fora a última frase:

- Bu-buceta!

Foi instantaneamente deixado em paz.

terça-feira, 2 de março de 2010

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56 - Desnaturadas e imperdoáveis considerações de um bebê

“Cara madrinha Cristina,

Desculpe o português pretensioso, mas, se eu já não nascesse escrevendo, meu pai morreria de desgosto. Falar nisso, passo a dever uma crônica para minha outra madrinha, Regina, pois que tenho duas: uma católica e afetiva (Regina) e outra apenas afetiva, por arte e manha dessa nuvem de calças, dessa temeridade abismal, meu próprio pai, Edson Coelho de Oliveira. Como ainda não fui batizado e nem conheci a Regina, é contigo, Cristina, que divido graves preocupações.

Nos meus primeiros dias de vida, eu achava que só o meu pai era louco. Hoje, prestes a completar quatro meses, constato que a loucura não é a exceção. Teu amigo Edson continua a ser um campeão, claro, e não vai aqui simples vingança por me obrigar a folhear o “Ulisses” do Joyce. Basta dizer que, anteontem, o desmiolado precisou cuidar de mim de madrugada e, em vez de acalentar, despachou-me para o carrinho e ainda tentou engambelar lendo versos de lavra própria. Que cristão agüentaria? Abri mais o berreiro, e o desnaturado então me pegou no colo, e teve a brilhante idéia de liberar logo a mamadeira de leite que eu só veria duas horas depois. O que se seguiria, Cristina, vale por cerca de quatro horas de agonia: inchado de leite, aceitei ficar no conforto do carrinho, e o azuretado do Edson voltou ao texto que escrevia, ou, melhor, que não conseguia escrever: aproximava-se do computador, lia em silêncio, lia em voz alta, mudava a entonação da voz, e voltava sempre aos mesmos versos, e voltava e voltava, e empacava no mesmo ponto, às vezes anotava outras palavras fora do texto do poema, e retornava ao trecho encasquetado, e passou a andar pelo quarto, repetindo em voz alta as mesmas palavras, e eu, que achava que tinha visto tudo, fiquei bem assustado, ele fundira de vez a cuca e parecia uma secretária eletrônica avariada, a repetir as mesmas palavras empacando no mesmo lugar. Claro, perdi o sono - e se acontecesse algo ainda mais trágico? Muuuuuito tempo depois, o que é o meu pai deu um grito inopinado, aproximou-se do computador e escreveu, vermelho, uma única palavra. Leu todo o trecho, berrou “Eu sou um gênio!” e eu quase chamo o 192: quatro horas pra achar uma palavra e se achar a cereja da cocada preta? Coitado. Como vês, o quadro é apavorante.

Bem, meu pai não ter salvação é, de qualquer forma, indiferente para a humanidade, mas a humanidade não ter a menor chance preocupa: estou no auge dos meus três meses e ainda sonho em fazer algo diferente. Acontece que vou acabar é dando razão ao Edson: o mundo é todo biruta. Tudo o que nos cerca está imiscuído de birutice. A loucura (ou seria a mentira?), entranhada nas estruturas, nos hábitos, nas convenções. É-se levado a crer em fantasias, em símbolos, em ícones para além do plausível. A fantasia é um dos elementos mais determinantes da realidade, da “verdade”. A vida é uma imperfeita invenção.

Pra não achar que é implicância com o mundo (imagem e semelhança do meu pai) olhe bem para as pessoas, o que fazem do tempo, como consomem e se consomem, as ansiedades, as pressões, olhe direitinho, e veja quanto tempo e trabalho são gastos para que os adultos façam certas coisas, todo dia, todo dia, como se as horas se repetissem tal na secretária eletrônica modelo Edson Coelho. Todos doidos, inexplicáveis, robóticos, mecânicos desde o último fio de cabelo do universo que nos ignora.


Cristina, confesso: detecto em mim gestos e arroubos só presenciados em meu pai, e temo ser estigmatizado como boi-bumbá da lua. Pega urgente um avião!

Pedro Damaso de Oliveira

P.S. cuidado com este e-mail: meu pai tá tão surtado que seria capaz de publicar como crônica.”

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

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55 - Jaguatirica não é onça

Quando um felino ronca na mata, o tremor no chão nos contagia da aproximação da morte: a boca de cada bicho recebe o amargor que clareia os olhos e tudo se enxerga num alvoroço de lampejos – todos os troncos, buracos, gotas, galhos, grotas.

Onça, pantera, puma, suçuarana: a portentosa atravessa, às vezes, os limites do mato para o capinzal, e certa manhã uma enxergou-me de longe, sem se intimidar. Olhei para a cerca de arame farpado que me separava do estábulo e concluí que seria desmembrado em três minutos. Comecei a descer de costas a ladeira em 90 graus, de olho na assassina que se aproximava estratégica. Se eu passasse pelo arame e chegasse ao estábulo, escaparia - sem uma perna, talvez, mas com vida. Só quem curtiu um perrengue desses sabe o quanto custa a humildade.

Uma onça é igual ao pêlo lustroso, às garras, à elasticidade das presas. Pantera, pela força, onça, pelo roçagar da perseguição, suçuarana, pela respiração compassada de cobra, puma, pelo grito que, em minha garganta, se esvaiu por sufocamento como se eu fora abocanhado no pescoço. Mas, graças aos deuses, cheguei a tempo ao estábulo.

E jaguatirica? Que é sobre este nome, leitor, a não-crônica de hoje.
Jaguatirica não me evoca a malhada em sangue, o estraçalhar indiferente da vida, e sim sutilezas de finas setas a tecer a destruição, não como osso ou marfim, mas como sons: um ataque feito de sons, o grito do jaguar a materializar-se em invisíveis pontas de osso, fenômeno produzido menos pelo urro em busca do estilhaçamento e mais por estas letras de marfim: jaguatirica, como se, por meio das palavras, a onça revivesse nas células as domésticas gatas engatadas pelas agulhas dos gonzos, lancinantemente extasiadas nos telhados. Jaguatirica, palavra de gato que se defende na rua com as unhas lacerantes do esganiçar, jaguatirica, nome mais do que presa, agudo mais do que sólido.
Acontece que, para além dos angorás, o nome jaguatirica me remete ao reino vegetal, não só por meio de metáforas espinhentas, mas fisicamente: o talhe do bambu, a lâmina de bambu, a folha-penacho, o gume flepado, bambu-zarabatana, vento estilhaçado, o grito do gato-jaguatirica tem mesmo íntimo parentesco biológico com o bambu: do mesmo jeito que, hoje, os humanos passam pelo estágio inicial das células-tronco, matéria-prima que se transforma em todas as células do corpo, houve tempo em que a própria vida ainda não era vegetal ou animal, mas uma matéria comum que tudo viraria, vida apenas, e durante a evolução das espécies, tenha a certeza, o bambu e as tigresas demoraram um tempão para se separar, siamesas.
Como acredito que o leitor ainda não pediu minha internação, é fácil também notar que a onça já foi pássaro, ou que uma capacidade não desenvolvida na onça virou asa num parente próximo (separados por uns quinhentos milhões de anos). Pois que a onça voa, aos pares de patas, são quatro asas em cadência que cria a ilusão de descompasso, e a onça parece por vezes ir de lado como uma canoa que avança enviesada pela força articulada de quatro remos: o vôo da onça é como duas águias a remar no céu do cerrado.
A onça, portanto, já foi peixe, não tão somente tubarão, que é por demais inquieto, mas da adorável família das ariranhas, gênero em franca mutação (ainda não decidiu se vai ser peixe ou uma espécie curiosa de tigre de casaca).
Jaguatirica, lontra de bambu, flauta de setas de marfim, voa sobre minha imaginação, plana como dois urubus as raízes com chocalhos, mas erra minha carcaça: o tremor que causas na terra nunca mais me enganará e nega as minhas palavras.
(Bendito arame farpado.)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

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54 - Reaver todo o tempo

Uma das realizações humanas mais extraordinárias é a formulação (pela filosofia, pela arte e pela ciência) do, digamos assim, mito do eterno retorno. Imagine: tudo o que agora acontece se repetindo, rigorosamente igual, em determinado estágio do espaço, daqui a milhões de anos. O argentino Jorge Luis Borges, no conto “A escritura do Deus”, trata de um homem aprisionado, Tzinacan, cuja divinidade, Qaholom, no início do mundo teria previsto todos os males e ruínas e deixou uma forma de saná-los: uma frase, que pronunciada recriaria/restauraria tudo, sentença que conteria toda a obra do paralelismo entre o tempo e o espaço. Borges quase nos faz crer que tal frase existe, afinal um deus “só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhuma voz por ele articulada pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo.” Ao final do conto, o prisioneiro descobre a sentença total: cifrada nas malhas dos tigres. Pronunciá-la seria tornar-se onipotente, tornar-se o próprio Deus, mas Tzinacan, mesmo senil e encarcerado, nobremente não a pronuncia: “Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo, não pode pensar num homem, em suas vulgares ditas ou desditas”. Imagine, leitor, pronunciar uma frase e poder absolutamente tudo...

Mais fantástico do que a formulação poética ou filosófica é ter a física prometido a concretização do retorno: não apenas nos livros, mas no real, o universo se repetiria de cabo a rabo, e, a meu ver, o único problema aí é que demoraria demais considerando-se ser uma repetição: os exatos bilhões de anos transcorridos até fechar o ciclo-reinício. Vou fazer uma pergunta humilde: e se este retorno estiver se dando agora, se a atual vida já foi vivida desde o começo dos tempos, se formos uma reprise como um reflexo no lago? A resposta mais agradável é a possibilidade de intervir no universo, de lhe acessar o passado e o futuro, pois que estes estão em algum lugar, preservados, e, portanto, é menos impossível descobri-los. Encontrar uma máquina, uma conta, uma fórmula, uma sentença, e instaurar a navegação pelo tempo, tornar real o mais recorrente sonho dos poetas. Honestamente, eu não hesitaria em dizer a palavra, a sentença, eu entraria na matemáquina, eu aproveitaria a fresta e atravessaria as eras a despeito de minhas vulgares ditas ou desditas. Aliás, se é pra sonhar, eu gostaria de escolher, selecionar - apenas alguns fatos e pessoas de passado e futuro, algumas sensações raras para depois lembrar.

O que você, leitor, escolheria para re’ver, re’viver?

Noutra extensa demonstração de humildade, enumerarei algumas coisas de que não abriria mão. Em agradecimento ao Borges, eu assistiria à imagem em que “Adão descobre a frescura da água” no Paraíso. Antes, porém, eu observaria um pouco da formação das espécies, e presenciaria o surgimento da fala e das primeiras palavras. (Tenho quase que certeza de que a primeira palavra foi “mãe” e o filho estava com fome ou em perigo). Pena que Helena e Tróia provavelmente foram inventadas, mas passaria um tempo conversando com Homero, se ele aturasse. Submeteria poetas como Dante e Rimbaud à minha maviosa presença, e aproveitaria todos os minutos entre as décadas de 1910 e 1930, quando estavam no auge Fernando Pessoa, Pound, Lorca, Eliot, Joyce e Maiacóvski. Também viveria de novo muito da minha vida (uns 3%) e daria um salto tremendo para o futuro, primeiro duzentos anos, depois dez mil, depois um milhão de anos. Disso tudo eu selecionaria, para depois lembrar em 2006, as sensações de felicidade de alguns bilhões de pessoas, o segundo mais intenso de cada vida, e os ficaria curtindo em série, encadeados, como se eu, e não Platão ou as conjecturas dos teósofos, fosse a memória do universo.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

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53 - Os descarados

Esta crônica não trata do desonesto, do mal, do cínico, mas do descarado puro: cara-de-pau misturada a desfaçatez, temperadas com mentira e promessa e arrematadas por total sem-cerimônia. Eis o início da classificação do tipo, que cada leitor deve ampliar:

- Encosto – aquele conhecido descarado que chega para passar três dias e consegue ficar três semanas.

- Encosto com agravante – mora de favor e faz que não vê a dona da casa gastar, por causa dele, um litro de desinfetante todo dia no banheiro.

- Godzila e os mortos-vivos – após 70 milhões de anos, homens e dinos se reencontram por obra do descaramento: nos shows macabros de bandas exumadas, como o Kiss.

- Godzila e os vivos-mortos – Nos shows bizarros de bandas que morreram e não foram enterradas, como o Simply Red.

- Godzila executivo – Newton Cardoso, o Newtão, ex-governador de Minas que amealhou na política, às trombadas, quer dizer, na marra, bilhões de reais.
- Filho de mãe idosa separada – Representa o papel de garoto carente de 8 anos e a genitora, como todas, só falta passar talquinho no cinqüentão desbundado.

- Filho de mãe idosa separada com agravante – Além de saquear a bolsa da mãe; além de comida, roupa lavada e total silêncio até as cinco da tarde (para descansar das noitadas); além de ter, como as grávidas, desejos madrugadeiros (por novas tecnologias), o desalmado estragou o show de Roberto Carlos pela tv: ensaiou até meia-noite com a banda cover de punk-heavy-trash (a mãe teve uma estafa batendo na porta, mas ninguém ouviu, o quarto impermeabilizado com cubas de ovo).

- Filho-da-puta – George W. Bush.

- Funcionário público – Aquele parente, ou colega de bairro, ou de trabalho, que se porta como um rei e arrota importância, promete apoios, “faz questão” de ajudar a resolver problemas, mas virou o folclore da rapaziada: também conhecido como “descarado-guichê”.

- Gato de hotel – Seduz mulheres da classe média alta, se aplastra na mordomia e três anos depois desaparece, não sem antes limpar o apartamento e a conta bancária.

- Gato de hotel com agravante – Mantém, nessas circunstâncias desalmadas, três casamentos simultâneos.

- Gato de hotel com agravante do agravante – Grava um vídeo para chantagear a “esposa”, o vídeo cai na internet e o descarado fatura como ator pornô.

- Tesoureiro de campanha política – Este, como é peso-pesado, eu preferiria reenquadrar: na categoria de cinismo, não de descaramento.

- Tesoureiro de campanha política com agravante – Ir à tv três vezes ao dia negar o que já se comprovou. (Situação, aliás, que o enquadra em dupla categoria: é um descaradão, além de cínico.)

- Descaradinho – Aquele que, nas enormes filas de shows, bancos e órgãos públicos, fica por ali, tentando engatar um papo furado, com a evidente intenção de furar na sua frente.

- Descaradinho com agravante do agravante – O débil mental chantagista do namorado da sua filha mais nova, que agora até dorme na casa do “sogrão”: porque você o flagrou com outra no momento errado: você também estava com outra.