segunda-feira, 8 de novembro de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Tríptico do Camaleão


Artífice

Lagarto que ganhou um louro do sol,
aprende a copiar sem ter nascido
e seu ovo é repleto de arrebol,
de gambá, de graveto e de grunhido.

A voz de metonímia ou caracol
do bardo em tudo e nada refletido
mimetiza a metrópole em crisol
calidoscópico, polido.

Camaleão de trema seriado,
imitando entre as gentes imitado,
desvia-se do tempo um dia belo

quando passa aos pincéis o que o passa:
nem que seja a dor o camartelo
e a torre azul da rosa, uma carcaça.

Apaixonado (lagarto-oceano)

Que a nudez (viço em sol, sobretecida
à miragemmaragem do intento)
esvoace sobre as vinhas os sentidos;
o músico contate, à flor do vento,
priscas cenas de cisnes sucumbidos
aos cordames de areia;
IIIIIIIIIIIIiiiiiiIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIo grão momento
do sangue fu(l)gindo em flautas aos bramidos
e leito cravejado de relento;

deixa que a sereia - grânula, guano,
ao deserto salivado de rapinas
demonstre a invenção do oceano;

assim nosso lagarto, ilusionado,
fira as claves do amor e ressacado
nasça e pereça em poças opalinas.

Nostálgico

O presente fragmenta-se em mil zeros
e o camaleão fecha a paleta;
vago trintão industriado em Eros,
viaja à infância-luz numa caneta.
Mas já o sítio passado não existe,
outra história se encena, em sucessão;
só na memória corre a chuva triste,
a primeira que lhe caiu no coração.
Só dentro dele a gleba, abandonada,
existe-se, verões que se entrechocam;
dentro dele a família, a alvorada
mãe em que as cores todas desembocam.
IIIIIIIO que o sol mira na paisagem gasta
IIIIIIIo lagarto restaura, ilude, engasta.



Transamazônica

Nem fotografia tenho
do lugar onde a infância
floresceu e passou;
certa vez,
já vinte anos depois,
estive às pressas,
trabalhando,
numa cidade próxima:
a setenta quilômetros
de minhas lembranças,
e não as conheci.

Hoje, que chove, e a palavra
(espaço sem tempo)
torna, de fato, una
a estrada que me criou
e a que me reconciliaria,
levanto na memória
(tempo sem espaço)
esta poeira-poema;
e a seiva, finalmente, dos olhos
se assenta como um cristal.


Canção em volta

A chuva vésper é a dona da bola.
Retorno sem começo, albor sem fim,
lucidez alagada num delfim.

Ao chão da infância, a papila dos dedos
apanhava as palavras esfregando-as:
arredondadas de água ou erodidas,
verbos ou adjetivos.
IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIISomos só
uma flecha de baladeira, uma
harpa de seixo aos pés de Orfeu. O sopro
do sabiá.
IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIITe trago à infância, onde
a sensação é o espaço; e o verso
trespassa o tempo como os sonhos

(é contra o tempo toda perfeição);

e logro, traquinas, o eterno: rio
atuado pela imaginação.



Infância

Na Ilha de Algodoal, eu, Daniela
e nossas mães. Tranqüilidade, muita
comida, nostalgia compartilhada
da infância no interior.
Na última tarde, almoço em casa de Cuíra,
amigo pescador. Apenas peixe frito com farinha.
Antes da primeira posta, as mães brincaram
de irmos todos ao restaurante da pousada;
mas logo o sabor batia em pleno na alma interiorana:
o quintal, o mato, o peixe recém-pescado,
o fogareiro, a farinha - Maria e Luíza voltaram
aos rios de origem; antes resistentes,
elas agora perderiam até o barco,
mas peixe não sobraria.



Pirenópolis

A clepsidra das cachoeiras
de pedra em pedra
vira a nuvem
que devolve para o cimo
as quedas:
o Tempo é um menino
no escorrega-bunda da serra.



Ars poetica

Sair para a natureza,
tateá-la: instante de milhões de anos.
Subir à unidade
da imaginação: infância;
misturar de novo a água
e lançar a origem.

Voltar da natureza:
reter a palavra prima,
e constituí-la
como àquela fresta em que,
semi-acordados, sonhamos ainda,
furtivamente gerando as imagens.

"Do real imaginado", prefácio

Estrada, vida, poesia.

Ernani Chaves


Afinal, por que o poema, o poeta, a poesia? O “velho” Aristóteles há muito tempo nos disse mais ou menos o seguinte: porque o poeta continua brincando, como uma criança, só que desta vez com palavras. Brincar aqui é “imitar”, isto é, deslocar, construir e reconstruir, reunir e acumular, mas também dispersar, apagar, para mais adiante fazer novamente surgir, transmutado, o que hoje chamamos de “sentido”, ou melhor, de “sentidos”. Como escreve Edson Coelho de Oliveira em “Arte poética”: “o pensamento a vertiginar-se/com verbos e galáxias”.

Os poemas reunidos neste livro, escritos em diferentes épocas e cidades, apresentam mais uma faceta do trabalho de Edson Coelho, mais conhecido entre nós como jornalista, cronista, repórter. Sua atividade à frente do “Segundo Caderno” de O Liberal sempre se “pautou” (para brincar com o jargão dos jornalistas) pela atenção à literatura, que já o havia levado a estudar letras. Dessa perspectiva, os poemas do livro documentam, no melhor sentido dessa palavra, uma trajetória, que a memória, esgarçada pelo tempo e pela ausência de fotografias, esforça-se por restituir. Em “Transamazônica”, isso se deixar ver, com uma força comovedora: “Nem fotografia tenho/do lugar onde a infância/floresceu e passou”. Daí, talvez, a persistência em pensar e tentar dizer as intermitências do tempo: “Não existe o presente./Apenas, na imaginação de adiamentos,/arcas, ânsias,/pendões pêndulos./O futuro é um espelho em bólide/e reflete a fuga que nos esmaga”, lê-se num poema sem nome; ou, ainda, em “Pão-de-açúcar I”: “nesta memória-dia,/acordar é reaver todo o tempo”; em “Quadra do Amor”: “O Tempo ralou-me a pele/na bacia da lua míngua”; em “Nostálgico”, “o presente fragmenta-se em mil zeros/e o camaleão fecha a paleta”; em “neolítica, “a serra é um estado da memória”; em “Amor com edifício”, “Pelo vidro do prédio, sou da altura/do tempo, fora da linha do mar”; “Os binôminos”, que começa com “O tempo somos nós”, é inteiramente dedicado à questão do tempo.

O tempo talvez seja, antes de qualquer coisa, aquilo que nos impõe a tarefa de redenção: “Proceder à transformação/é suportá-la”, como se lê em “Outra mudança”. Redimir o tempo é redimir a vida, na sua dimensão mais crucial e mais amedrontadora: a da finitude necessária, inexorável. Tentar dizer o tempo, por isso, é também, paradoxalmente, desdizê-lo, é procurar flagrar, de algum modo, sua ausência, onde a eternidade nos esperaria: “a memória é a densidade/em cuja duração/o tempo é quase um amigo”, ainda em “Outra mudança”. A escrita, tentativa de fixação, de eternizar aquilo que facilmente se dissipa na modulação encantadora das palavras, sempre quis encontrar, na forma do poema, sua função mais elevada, sagrada, cultural, mística. Nas palavras do poeta, no seu “canto”, os mistérios do mundo deveriam revelar-se sob o risco, sempre presente, de sua própria dissolução. Efêmera aparição do mistério maior – a eternidade existe? – que a memória dos homens, na sua fragilidade constitutiva, esforça-se por conservar, mas que no esforço para transmitir, de geração a geração, uma legião de imagens, de sonhos, de devaneios, só pode servir-se do tecido das palavras: “Tempo sem foz, o universo/palpitava, apenas,/para chegares:/entre os arbustos.//’Vai chover’, disseste.//E eras o primeiro pingo,/lágrima alegre” (“Canção de noite”).

Tempo e memória e a (im)possibilidade de dizê-los ganham várias faces nessa coletânea, que percorre quase todas as formas instituídas da poesia moderna, do verso livre à experiência concretista. No mesmo diapasão, confronta-se, aqui e ali, com a questão da poesia e do fazer poético, onde o poeta, nesse movimento de dobrar-se sobre si mesmo, tateia, à procura de um “Estado de poema”: “Sair atrás de uma estrofe/e não mais voltar/(ausentar-se em azougues)./Cruzar mil palavras;/agrupar-se, compactar-se,/prosseguir-se;/deparar o estado/de poema”. Em “À Poesia”, a própria poesia se faz tema. Em outros momentos, o poeta parece debruçado a sua janela e, diante do olhar, descortinam-se fragmentos de cidades, não só nos já citados “Pão-de-açúcar I” e “Pão-de-açúcar II”, mas também em “enseada em Botafogo” ou ainda em “Na varanda dos tijolos verdes”. Nestes fragmentos, a cidade, encenada como um “objeto parcial”, ou seja, recortada num trecho – um monte, uma enseada, telhados, pátios, o casario – se oferece, deliciosamente libidinal, como uma “helena’ diante de um “Homero” (em “enseada em Botafogo”).

As memórias do Rio de Janeiro, mais próximas, impregnadas pelo que o poeta via de sua janela – que, certa noite, também conheci e, quase sem resistência, me deixei levar pela exuberância “sublime” da paisagem – contrastam com o lusco-fusco das lembranças mais antigas, as da infância. Nesse contraste, ou melhor, nesse espaço de tempo que separa o Rio de Janeiro e a infância às margens da Transamazônica, passando pela vida em Belém para estudar, trabalhar, crescer, vencer na vida – como eu, como a maioria de nós interioranos, migrantes quase por “natureza” – tal como “Alfredo”, o pequeno grande herói dalcidiano, emblema e alegoria dessa busca, a poesia de Edson Coelho de Oliveira finca suas raízes, por mais movediças que elas sejam.

Nesse espaço de tempo, escora e cunha, move-se a palavra, esse “espaço sem tempo”, como se lê, não por acaso, em “Transamazônica”, recriando o que a memória parece não poder mais fazê-lo como o poeta gostaria, tentando suprir a ausência de fotografias, uma das nossas formas técnicas de lembrar. Assim a estrada onde o poeta “se criou” (lembro de uma fotografia da Transamazônica, de Paula Sampaio, onde a estrada serpenteia em meio à floresta, fio de terra e lama, ainda prenhe da esperança por dias melhores, móvel do migrante) pode saltar do poema e adquirir vida própria. Que essa estrada, estrada da vida, que levou Edson Coelho a muitas paragens, possa servir de bússola e guia ao leitor em meio a essa miríade de poemas, que ela própria ajudou a criar. Não necessariamente para que possamos encontrar-nos sempre em segurança no caminho, mas, talvez, ao contrário, para que possamos nos desviar, cair nos buracos, encharcar-nos na lama, levantar-nos, encher os pulmões de ar e prosseguir.


Ernani Chaves é doutor em filosofia e professor da Universidade Federal do Pará