segunda-feira, 9 de maio de 2016

Doze poemas sobre futebol

FUTEBOL

Para a Rizzo Miranda

“A bola tem o formato do acaso”

1 – Quatro linhas

A palavra perpassa o poeta,
trisca, trespassa, transa,
transpassa,
meta
cantares:
a bola:
é preciso se apaixonar.
A bola precisa sonhar com o gol,
desejar,
ir junto buscá-lo:
deixá-la perpassar o gol, triscá-lo, transpassá-lo,
autoral.


2 - Constelação solitária
Para meu filho, Pedro

Te passo essa camisa – do Botafogo –
para assinalar uma linhagem fora do sangue
e, nos estádios, saibas o hábito de torcer em pé
entre os pavilhões
como, nos botecos, de pé se bebe
irrequieto, expansivo, inabordável
ao largo dos balcões.
Te passo essa bandeira – constelação solitária –
para que, uma a uma, a estrela única
preencha o vazio enluarado pelo uivo
de fogo das arquibancadas.
(O menino, mestre sem cerimônias,
lavra a lona e altera o globo da morte.)
Te passo essa determinância – botafoguense –
como quem sagra “Brasileiro”:
a derrota em chamas
fundindo a glória,
a garganta antropófaga
da imaginação.








3 - Alma lavada

Vende bombons, biscoitos, pipoca,
perto da rodoviária.
Mãe solteira, a vida é a filha;
e herdou um título remido
do Clube do Remo.
“Não preciso pagar ingresso,
mas pago: pra ajudar.”
O time na terceira divisão,
e os remistas surfaram, pelo planeta,
a onda Torcida Mais Apaixonada do Mundo.
Com direito a nome
e sobrenome.
“Não existe torcedor do Chelsea,
do Barça não existe,
o que existe é o Fenômeno
Azul, entende?”.


4 - A bola rola

A bola é cega como a injustiça.
A bola tem visão de 360º.
A bola é um melé.
A bola é um palíndromo móbile.
A bola é o prumo dela mesma.
A bola é um caleidoscópio unívoco.
A bola é um tema, como em Ravel.
A bola nunca obedece ao programa.
Bola tem cabeça de vento.
A bola é uma bússola involuntariosa.
A bola é um lapso multitudinário.
A bola é um gênero de tempo.
O tempo da bola é artesanal,
de quintal.
A bola desenrola a imaginação.
A bola é infinita,
a bola está em expansão.
A bola é atemporal.
A bola é mensageira do acaso.
A bola é um conjunto de símbolos
intuídos com os pés.
A bola sofre desvios
mediúnicos.
O arquétipo da bola é Proteu.
A bola só quer uma oportunidade.
Em seu princípio está seu fim:
toda bola é irredimível.
A bola usa, sempre, as duas máscaras,
comédia e tragédia.
O vermelho, no colorido da bola,
é sangue.
O múltiplo da bola é uma dízima.
A bola repete padrões Messi.
A bola se mede em Escala Pelé.
A bola se corta em cutelos Maradona.
A bola tem pernas tortas, alegria
do povo: Garrincha, a estrela
em preto e branco, solitária.
(A paixão chorou nas minhas veias.)
A bola é barroca.
A bola é cartesiana.
A bola é ímpeto e tempestade.
A bola é vontade e representação.
A bola é realista.
A bola é uma convergência.
A bola é uma encruzilhada.
A bola fica entre o ser e o nada.
A bola é infundada.
A bola é o fim e o princípio
das contradições.
A bola não é.
A bola, o vento levou.
A bola não tem lenço, nem documento.
A bola e a felicidade não se compram.
A bola come feijão com arroz
como se fosse uma princesa.
A bola é uma princesa nua, livre,
recolhida aos aposentos, o estádio lotado.
Se a bola é o clitóris das formas,
o gol é o orgasmo dos átomos.
A bola frequenta o mar.
Com a bola, as sereias
se transviam no samba.
A bola é uma metáfora mestra.
A bola decifrou caligramas em massa.
A bola é Rimbaud o tempo inteiro.
No campo, a bola atrai raios.
O Dalai Lama pratica bola.
A bola é um pássaro sem asas.
A bola é um gato.
A bola é uma serpente
mordendo o próprio rabo.
A Terra rola em torno do Sol,
a Lua, em torno da Terra.
A ressonância de um golfinho
vazou a bola da final.


5 - O profissional

Treino do Flamengo,
sensores nos jogadores:
medir-lhes os batimentos
quando interagissem com a bola.
Romário, inalterado:
como uma bala.

Anos depois, artilheiro do título
de 94, ele revelou o único momento
na Copa em que teve medo:
na decisão, contra a Itália,
ao cobrar nosso segundo pênalti.
Aí o profissional da matança
esticou aquela bola até o limite da vida –
bater na trave –
e entrar.


6 - Clássico

Catarse: clássico.
A palavra brasileira para purificação,
arrebites.

Os deslizamentos, as avalanches com fome
se aplacam no mar;
canaviais curtidos à sombra
de pavilhões comovidos;
palafitas em salto alto, palanquins:
gritos desamordaçados, batuca,
improvisos da desopressão:

o nome da liberdade: paixão.

Passeiam de carro
sonhos amestrados;
em fila indiana,
o rebanho de abraços
rotiniza nos shoppings;
pelos canos dos prédios,
vazamentos de tédio:
é preciso verter o imponderável,
garrotear a garganta com a própria jugular,
é preciso fazer experiências
com a imaginação,
hoje:

a bola tem o formato do acaso.

Eu tenho dentes e garras
e febre de fera – sanha, sufocação –,
eu me congestiono e estuporo
como um hidrófobo
e esfolaria o rival
num festim neandertal;
mas ela vai rolar por mim,
a bola vai lacerar, estraçalhar,
flagelar por mim –
ou –
jogo –
me desintegrar
(46 do segundo tempo):
assanhar o barril de pólvora,
assinar o fogo,
assinalar o projétil de um gol
contra a minha perplexidade:

a bola mata aos domingos.

Precisões de aço e andorinha –
a bola vai parar o tempo
por mim –,
assombro, êxtase:
quando a imaginação dos mitos
toca as esferas;
e os raios ferram as potestades;
e a gratidão dos cometas
migra na grande área;
e o todo que sou se concentra
como um poema ou uma pedra;
quando o lúdico esbugalha suas dádivas:

a beleza é uma harmonia entre relâmpagos.

Circo?
Sim, cheio de fel e filé mignon.


7 - Uma odisseia no espaço
A bola é um palíndromo móbile


reter    rotor   mussum   asa   solos
rotor    asa    mussum    asa    rotor

rotor    reter    rotor  


a bola a‘bole,
b
ole

aba’la o b
elo ao acaso

v
aza a b
olha  a
relâmpagos

habla à alba
a b’ala

 (ab
p
ovo)

nós e
a
b


                    ola, halo




reter rotor asa mussum asa rotor reter

rotor mussum solos solos mussum rotor

reter      rotor                reter

grama amarga grama amarga grama amarg



a bola abole:
brincar de movimento,
brincar de espaço,
o galante, o galhofo, o gongorino,
o que tem sempre a sensação de frio,
o que tem sempre a sensação de cor,
tabelar com cirurgia de coração,
andar de bicicleta


elo


                        mussum

            ala          solos            ala

                        mussum

                           solos


(“olé”)


habla à alba – luz a raiar azul – habla à alba,

                                 logos

                       (      ola, halo       )

                                : o gol



8 - Chuva

Na escola, ela só gostava
de mulher: ostentava. E mostrava os seios,
crespos à macheza dos amigos:
eu, adolescente virgem.
Aí conheci-a no campinho:
era a afamada: desvirginara três
dos meus novos colegas.
Febre.

Certa tarde, a chuva chicoteava,
pouco se via à frente;
dois colegas no campinho:
e ela.
Só dribles, sem traves:
a roupa ensopada, as gargalhadas,
e logo os três driblávamos ela,
a bola passando nela,
e cercávamos, braços afogados,
liga, a bola, limo,
joelhos, cama de gato, lama,
pouco se via, e tirou a blusa,
ria alto, tonta,
e girou-se com a blusa no ar,
até desequilibrar-se – segurei-a
pela lateral do corpo, os seios tesos–
esfreguei-os aos choques,
brasa encharcada, a bola,
e aquelas mãos dela,
a bola aos pés –
os amigos pararam, rindo e zoando –
nada se via –
a bola de barro, ambas se desmanchando,
então se desprendeu,
partiu correndo,
vestindo a blusa,
a bola buscando-a ainda

na chuva.



9 - Sou brasileiro

O Maracanaço abriu
uma cratera n’alma do Brasil
porque, emocionalmente, o título seria
nosso maior feito como povo:
fracassamos no momento mais concentrado
da brasilidade.

Os 7 a 1 para a Alemanha, outra vez
no Brasil, não são tão abissais:
protestamos contra a Copa;
denunciamos a Copa;
esnobamos a Copa;
renegamos a glória cultural
dos cinco títulos.

Superávamos o futebol?
Era um efeito da fragmentação?
Virávamos classe média
num mundo instantâneo?

E o avanço da Europa –
pela direita –
sobre o Brasil, sobre a brasilidade:
ordenada, eficiente, branca,
pragmática, retangular.


10 – Irradiando o domingo

Agora me acusam de “futebol”.

Ora, espalho polens dessa luz
que o sol, madrugador,
usa nas memórias do bairro:
mariscar o clássico, petiscar-me:

Naquela esquina, certa vez,
te conheço:
as palavras me chamam
para um dom

Nessa praça, em minutos, pela televisão
um gol de Paolo Rossi vai calcinar uma nação

Temos quinze anos,
ela vem me ver jogar,
pedalamos lado a lado

Ao amanhecer, em vez da moça,
nossos nomes, naquela mangueira

Sete anos: eu e meu irmão,
um contra um, sem traves,
até de manhã

Seis: amo tanto a bola
que tenho visões

De novo no estádio
pela primeira vez:
era justamente essa a luz,
os mesmos gritos vermelhos, choque
de fantasia com paixão salpicada de sangue;
a descoberta da alma e, nela,
a queimadura do êxtase irônico do paraíso,
infância: de onde não se volta.

Sai da frente da minha bola!



11 - Passarinho brasileiro

Lamentas ante bolas de neve,
passarinho brasileiro,
alvejado pelo cume das montanhas;

no deserto embalsamado,
teu canto é oco de estrelas;

ou, encastelado no Velho Mundo,
te sentes o mordomo condenando
o rebuliço nos quintais;

sofres longínquo, passarinho,
o extermínio dos jovens negros:
escapaste para a prisão.

Etnias escalavradas, o Brasil
escraviza o Brasil;
quem não basta para escravo
é desovado à margem do rio;
não te dou uma chance,
dou-te um tiro;
o Brasil dá uma vassourada no Brasil:
barras de pau e fuzil.

Dos corpos empilhados, o sangue
pinga. Pinga. O sangue pinga.
Ano a ano, o sangue pinga.
O sangue pinga. Pinga, pinga,
o sangue pinga.
Não é uma mancha, é um mar;
não é uma mágoa, é uma cobra;
gota a gota, um mar de veneno
que vão querer que eu esqueça.

Bala – bola:
volta, passarinho brasileiro,
vamos cantar nosso quintal;
gol a gol, vamos receber os novos filhos;
dançar como quem canta, transmitir:
sabemos sempre cantar;
gol a gol, como num coral;
canarinho, deixa eu me misturar
ao teu futuro.


12 - Quando digo gol

Quando digo gol,
o melaço pinga na porcelana.
Quando digo gol,
vitórias-régias encobrem os telões.
Quando digo gol,
uma cascavel ataca no Juremá.
Quando digo gol,
o Amazonas nocauteia o mar.
Quando digo gol,
o ouro da camisa
ofusca os holofotes.
Quando digo gol,
o Maracanã faz um minuto de silêncio.
Quando digo gol,
Pelé demonstra uma mutação.
Quando digo gol,
Romário pica só uma vez, basculante.
Quando digo gol,
tem uma pedra no meio do caminho.
Quando digo gol,
é Dona Ivone Lara.
Quando digo gol,
Cafu ergue uma taça.
Quando digo gol,
em qualquer arquibancada,
me sinto em casa: serra,
cerrado, semi-árido, trópico
úmido: quando digo gol,
é de norte a sul.
Vem cá, cintura fina, cintura de:
quando digo gol, cruzo o sertão.
Quando digo gol,
tomo açaí, como feijão.
Quando digo gol,
abro o meu coração.
Quando digo gol, pulo
o carnaval.
Quando digo gol,
bebo pinga duma reserva mineral.
Quando digo gol,
digo Gabriela, Vera Fischer e Norminha:
digo Elza e Garrincha.
Quando digo gol,
invento a bicicleta e a folha seca.
Quando digo gol, Telê entrega
as camisas para Zico, Sócrates,
Cerezo, Júnior, Falcão.
Quando digo gol,
Ronaldo paga de Cascão.
Quando digo gol,
digo 1: 7 a 1.
Quando digo gol,
teu inconsciente é coletivo:
milho, farinha, Francisco,
fole, mate, caminhão,
forró, churrasco, alazão,
libertas que seras tamem,
camarão que dorme,
todos os dias quando acordo,
meu coração, não sei por que,
quando dizemos gol,
deixa a vida me levar.
Um riachão cruza a várzea
de todos os campos do mundo.
O verde dos teus óio
se espalha no Mangueirão.
Onça pintada: gol
do Brasil.

Não te percas de mim,
Amarelinha, estrela

de cinco pontas.