segunda-feira, 27 de abril de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


Máximas para tornar-se humilde

A – Ao acordar, lembra dos gênios de tua área – Mozart, Stálin, Mané Garrincha; se não resolver, lê qualquer página do Machado de Assis.
B – Ao dormir, pergunta: teu dia hoje foi, de fato, o mais importante da História?
C – O espelho não mentiu: abundam egos duas vezes maiores que o teu.
D – É preciso que te entre na cabeça: vais morrer.
E – Não há dúvida: a arte em nada se parece com as profundezas do teu umbigo.
F - Sê solidário pelo menos duas vezes na vida.
G – Teu tipo boêmio é um dos mais ridículos da civilização.
H – Aceita: correste décadas atrás de quinze minutos de fama.
I – Bebe menos: o álcool separa os blocos de gelo da consciência, e, separados, estes blocos produzem uma nova consciência, icebergs que se dissolvem chocando-se entre si, num legítimo delirium tremens.
J – (In Memorian) Não tentes brilhar mais que Lúcifer.

Respostas à dor-de-cotovelo acima

A – Todos os gênios antes de mim morreram.
B – A História será minha obra pos-mortem.
C – Espelho meu só admira: caladinho.
D – Será um paraíso: a Morte ofereceu tudo o que eu queira.
E - Pior é imaginação de perna curta.
F – Minha solidariedade é o Imposto de Renda.
G – Não tenho auto-estima, tenho alta estima: a paciência é que se esgota.
H – Todo dia o Tempo me convida pra alguma coisa.
I – Beba mais.
J – (In Vitro) Deus tenha muita piedade de ti.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


17 - Meu pai e João do Vale

Quando eu era pequeno, meu pai, Antônio Coelho, chamava de “vagabundagem” a maioria dos prazeres. Isso incluía o futebol e todas as artes, com marcação cerrada em música, dança e “literatura”: bolsilivros de bang-bang e espionagem, Brigite Montfort, Gisele, a Espiã Nua que Abalou Paris. (Adulto, descobri que a maioria dos bolsilivros da época era de um só autor, o brasileiro Riyuki Inoue, recordista do Guiness com mais de mil títulos publicados.) Vida dura, pelos interiores de vários Estados, meu pai mudava-se com a família às vezes de mês em mês, destemido, e assim constituía riquezas e, de um golpe, perdia tudo. Basta dizer que, após morar numa centena de municípios, foi parar na selva amazônica, 1972, a 75 quilômetros de Altamira. Um homem com tal têmpera não entendia de primeira porque uma cidade cantava “Eu hoje quebro esta mesa/Se meu amor não chegar”.


Esse Antônio Coelho de Oliveira, que beira os 81 anos, recebe na Cidade Nova, por algumas semanas, o irmão Sebastião, 83. Tenho certeza de que ambos ultrapassarão os 100 anos, meu pai falando sem parar, meu tio a ouvir de forma infinita, mas agudo de esperto e, quando preciso, entrecortado de frases sem piedade. No sábado passado, para provocar a memória dos irmãos, levei o “som” pra varanda e botei a última paixão de meu pai, o CD “Tião Carvalho interpreta João do Vale”, com músicas-retratos-histórias-paisagens do Maranhão de cinqüenta anos atrás. (O Maranhão que meu pai vivera de forma tão abrupta, jovem sobre os lombos dos cavalos que comerciava, indiferente a qualquer refrão e qualquer cantor.) Os personagens das canções de João eram antigos conhecidos que voltavam à memória de seu Antônio e seu irmão; e as músicas, sim, eram também as mesmas daqueles tempos, seu Antônio ouvira-as pelas ruas, mas sem ouvir, não lembrava de um só verso (minha mãe lembrava de todos, e foi a primeira a se encantar quando presenteei o CD). Meu pai, que, por desconhecimento, atacara a arte em nossa infância, tinha, por arte das mesmas canções que combatera, o passado de volta e a graça da vívida nostalgia.

De uma varanda da Cidade Nova, os irmãos octogenários embarcam no trem de uma música de João do Vale, trem que tomaram tantas vezes. As cores dos vagões, a poeira, a precariedade total: “Atrasava tanto que mais certo seria dizer que não tinha hora pra passar”, meu pai falou para o irmão aprovar. Quando Nara Leão trocou a bossa nova pelo samba de morro – trocou a beira do mar pelo subúrbio do Rio –, no final dos anos 60; e artistas como Glauber Rocha buscavam uma estética e um “Brasil profundo” não apenas no subúrbio, mas nos sertões, ou melhor, na mitologia assombrada dos sertões: quase assombradora foi a aparição de João do Vale no palco Zona Sul do Canecão, descalço não como um universitário “descolado”, mas como um agricultor que não tivesse sapatos: os dedões que toparam com pedra a vida inteira, João negro, entroncado como uma árvore que crescesse não para o alto, ou para o lado, mas para dentro da própria dureza, e era sem dúvida assombrante aquele homem soar tão emocionado, aquela voz gretada soar tão sensível e confortadora, aquela aparência encarapaçada de tatu peba tornar-se insopitável porta-voz do erotismo, ambivalências de baião com malagueta. Meu pai infindável, a quem é tão clara a palavra “vencedor”, meu pai que fará cem anos em duas décadas, meu pai e João do Vale, que se tinham encontrado, sem se ver, nas ruas e veredas do Maranhão, se encontram agora para sempre, por tal arte de João que soa não na memória, mas na alma: um jeito de ser que não será esquecido na “alma brasileira”.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"



16 - Neoma

A passagem do tempo sobre nosso esqueleto é a mais triste das condições para a vida. E a natureza não olha pros lados: para que minha filha Neoma festeje quinze anos, preciso ter quarenta e dois; o tempo que lhe se lhe dá é o que me esgota. Amar o filho é cuidar para que sua vida se desdobre e cumpra, enquanto a nossa busca o sossego dos atalhos. Quinze anos, quinze anos, eu também tenho quinze anos, pois ontem mesmo falei que jamais teria quarenta e dois, e sonhava incendiado de convicção, e só agora percebo que o tempo é a mais silenciosa de nossas tragédias.


Ofereço, Neoma, em teus quinze anos, o melhor dos meus quarenta e dois, qual seja, algumas palavras que ganhei contra o tempo, que nos dão a ilusão de estar fora do calendário, acima da vã matéria: palavras como “amor”, “amizade”, “arte”, “Neoma”, “água”, “sabedoria”. Destas, basta comentar “sabedoria”, não minha, que a idade não a produziu, mas dos povos, da civilização: na forma de três ditados eleitos pela memória de centenas de gerações.


Dois dos ditos equilibram a vida num terrível alerta: “Nos menores frascos, os melhores perfumes”; “Prefira um minuto de intensidade a mil anos de banalidades”. O melhor perfume é raro, devotado às constelações, daí o frasco menor; o raro é o intenso, o profundo, o inesquecível, o momento que contém milhões de outros; uma gota de bom perfume vale mais que um garrafão de lavanda. A intensidade implica riscos, escolhas; enfrenta-los é assumir mudanças; a mudança traz dor - mas revela o novo, o desconhecido. O que te dizer hoje, filha, senão isto: que vivas intensamente, que assumas os riscos, nesse tempo de intensas mudanças, que não temas o abismo da gota do melhor perfume, que estejas atenta à banalidade, mas não em troca só de um minuto (tendo a alma aberta e o coração bom, a vida concederá ótimas temporadas), enfim, aproveita a vida, mas te cuida, cuida da noite e do dia, da manhã e da tarde, que já passei da idade de integrais preocupações.


O minuto de intensidade jamais será esquecido - em torno dele gravitam bilhões de minutos –, e para depurar uma gota de perfume gaste-se o estoque de acetato com baunilha. O intenso não apenas enfrenta o tempo, como o vence, cristalino, intacto, em nossa memória. O intenso se prolonga. Preserva-se. O intenso rende, multiplica-se. Daí que a profundidade da experiência – ainda que resumida num segundo – é a melhor forma de se pôr a salvo do tempo silencioso.


O terceiro ditado combate o tempo naquilo que ele tem de melhor (o tempo de criar é o mesmo de destruir): “Plante uma árvore, tenha um filho, escreva um livro.” A árvore, além de durar milhares de anos, se prolonga, vive nas folhas das sementes; o filho levará (não é, Neoma?) nossa linhagem a outros milênios; o livro pode imortalizar o nome, o Eu. Nesse terceiro ditado, o corpo humano fica como o corpo das palavras, nosso sangue, como a seiva das árvores, como os filhos que a vida nunca deixou de convidar à sua festa. De certa forma, aí nos imortalizamos fisicamente.


Tudo isto é sonho, claro, como a vida o é das células e das seivas (apenas os sonhos da natureza duram mais); assim, quero te ensinar hoje, Neoma, outro truque contra o tempo, outro sonho: a esperteza da imaginação. Esta crônica é publicada no jornal de amanhã; hoje é sábado e a leio no jornal de domingo; garanto que jornalistas e gráficos não anteciparam a produção; eu é que fui ao futuro e voltei, com este caderno, e o coitado do tempo até agora procura por mim. Tá ligada, né?

segunda-feira, 6 de abril de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


15 - A Mãe da Cidade Velha

Não era à tarde de um domingo ou feriado, quando a Cidade Velha repousa na própria substância e só o tempo é visto nas ruas. Era madrugada de sexta-feira, e alguns points do bairro fervilhavam: rock, MPB, reggae. Após a fama do quadro (óleo sobre tela), alguns afirmaram ter visto a senhora retratada, mas as informações foram tão desencontradas que pareciam invenções. O único ponto em comum era a estranha roupa, de séculos atrás, as formas rendadas e coloridas captadas com precisão pelos pincéis. Os lugares e horários eram contraditórios – alguns descrevem a senhora admirando a igreja do Carmo no mesmo minuto em que foi vista perto do bar do Rubão; e mais: para uns, aparentava mais de cem anos e, para outros, era uma jovem de vinte vestida para algum espetáculo.

A tela em questão não é um mosaico, mas híbrida, misturando lugares diferentes da Cidade Velha, numa paisagem ao mesmo tempo nova, harmônica, e, para quem conhecia as figuras ali misturadas, também surpreendente e “incomodativa”. Os estilos igualmente se misturavam – os entreespaços de Dina Oliveira, a cor-textura de Jorge Eiró, o assombro angulado de Paulo Ponte Souza, a impiedade de PP Conduru. Como o autor da obra não se revelava, mas era certamente conhecido, dado o alto domínio do métier, uma enquete na televisão evidenciou o nome de Emmanuel Nassar. Procurado, Emmanuel deu uma sonorosa gargalhada e negou veementemente, apontando “defeitos” no quadro, “meio careta”.

A cidade não falava noutra coisa, a tela foi parar na internet e virou matéria nacional no “Jornal Hoje”. E, como cada um vê o que quer, confirmavam-se todas as contraditórias versões: a aparência primeira da retratada era de senhora, mas logo se argumentava que as mãos eram jovens, ou que as pernas eram de anciã, e que os cabelos não eram peruca, mas de fato brancos e lisos, como de uma índia albina. Também se disse que a personagem da tela nunca existiu, e tudo não passava de uma brincadeira articulada e disseminada por três ou quatro pessoas. Como vemos o que queremos, algumas circunstâncias, por demais “organizadas”, pareciam tudo confirmar: olhando bem, perscrutando, revelando detalhes, muitos concluíram que os lugares onde a pessoa fora vista eram os mesmos que apareciam (de forma explícita ou “disfarçada”) na tela: o conjunto que tem ao centro o arcebispado e o Museu de Arte Sacra (onde a retratada fora vista por um pescador de Igarapé-Miri); a rua Siqueira Mendes, chegando ao Carmo (onde dois jovens viram-na admirando as casas e a igreja - mas se descobriu que os rapazes haviam tomado ácido e a história ficou desacreditada); o Forte do Castelo (ali o segurança viu-a já a sair, e ia tão reflexiva que ele nada indagou da presença fora de hora: na tela, o Forte foi representado em verde, não que fosse tomado pelo mato, mas como se os canhões fossem clorofilados); a rua Gurupá, perto do Boteco do Rubão (onde um casal gay de músicos-estudantes foi o único a notar a presença inusitada); o Ver-o-Peso (onde uma feirante viu-a lagrimando, e ainda quis ajudar, mas a senhora abriu um sorriso e se dirigiu à beira do rio); e a beira do Guajará (onde ela prostrou-se no chão e chorou, sendo assim representada pelo anônimo pintor).

Passados quase 100 anos, resta pouca esperança de solver o mistério, confirmando-se apenas a data da feitura da tela, ou de sua conclusão (“23 junho 2008”) e o título assinado embaixo pelo próprio autor: “A Mãe da Cidade Velha”.