terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Em Belém



Ando pela cidade que foi nossa,
que somos nós
(agora que estás tão distante quanto possível,
ao alcance apenas dos olhos, das mãos)
em busca da palavra que geramos
dentro da palavra adeus,
nossa palavra-refúgio,
palavra-verbo, palavra-sopro –
mas só tua imagem
num sonho
se revela e esvai
e a gravidade baixa a memória
sobre mim.

Não, a poesia não nos valerá –
ainda que agora,
milhares de anos depois,
outra vez o rio da fala
mova o moinho
antes da nascente
e as primevas palavras,
por magia, insolvam o humano
nos precipícios do sal –
cessaram as fontes:
toco só a beleza
nessa rua de prédios e carros
onde um casarão esquecido
se cobre de umidade e hera
e entre tijolos e musgo
desloco um verso
como uma placa de cascalho
libera o fogo
- a beleza, apenas,
 envolvendo o burburinho
da solidão.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Memória de sangue



Era sempre assim: aonde ia, Adelmo incomodava. As pessoas não entendiam por que, mas era instantâneo: incomodavam-se, baixavam a cabeça, sem o que dizer. No refeitório da fazenda Ituano, um grande galpão, o mal-estar se repetiu: Adelmo entrou com o mestre de obras Antônio Dias, foi apresentado aos mais próximos (“Este é Adelmo, o nosso responsável pela barragem”) e logo os semblantes se fecharam, e as vozes próximas hesitavam, e gaguejavam, e se calaram. De forma tão estranha que, em pouco mais de três minutos, todo o refeitório se calou, e ninguém saberia dizer como o silêncio começara. Um silêncio tumular, incomodativo, a ponto de muitos pararem de comer, os pratos depositados sem estrépito sobre a mesa gigantesca.
 

- Foi um prazer – Adelmo disse sem hesitar aos que estavam perto. E, para Antônio Dias: - Pode me levar ao alojamento? Gostaria também de tomar um banho, antes de ir ao rio.

- Cla-claro – disse Antônio Dias, aliviado, a forte sensação de estranhamento. – Claro, por aqui, por aqui!
E saíram do galpão, Adelmo com uma enorme mochila às costas, roupa surrada, botas sujas da terra molhada da fazenda.

*

Em que momento começara mesmo aquela maldição? Adelmo aprendera a falar tarde, aos cinco anos de idade, menino solitário e soturno. Os pais, pequenos agricultores, desde cedo estranharam a ausência de sorrisos, a recusa em brincar, o olhar sempre perdido e distante do filho. O pequeno falava pouquíssimas palavras, e a mãe passou a angustiar-se, ainda que os médicos nada diagnosticassem de anormal. Mas como, se Adelmo esquecia tudo? Se não se lembrava dos perigos, da ameaça de certos animais, se não recordava, minutos depois, de palavras que a mãe lhe ensinava, com afinco, a entender e a pronunciar?

Para o próprio Adelmo, no entanto, a maldição se instalou no momento mesmo em que nascera. Aos cinco anos, se comunicava com dificuldade, mas entendia quase tudo o que lhe diziam, e falava as palavras triviais do dia a dia. Até a manhã em que viu seu pai matar um porco na roça onde moravam. O menino foi despertado ainda de madrugada, pelos gemidos incessantes do porco, pressentindo a morte, com as quatro patas atadas e preso a um toco grosso fincado na terra. Adelmo fechava os olhos e o atormentavam os guinchos, cobria-se com o lençol, levantava-se, deitava-se outra vez na rede, o porco estrebuchando lá fora, até que a mãe lhe trouxe um remédio que o fez dormir logo, pesadamente. Durante o sono, um pesadelo: um bebê que nascera há poucos segundos via o próprio nascimento, a cabeça grande saindo da vagina da mãe, o sangue, os miasmas, as gosmas, o grude, o cheiro, os cabelos em chusmas, a náusea, e, nesse nascer, o bebê abriu os olhos e olhou diretamente para si mesmo, e ambos gritaram, as mãos tentando agredir-se, e ambos engulharam um sobre o outro, beliscando-se, arranhando-se com as unhas sangrentas.

Adelmo então acordou, horrorizado, ouvindo lá fora os gritos lancinantes do porco, agora o estavam matando, o menino pulou da rede e desabalou para o pequeno aglomerado de pessoas, perto do poço, e, quando chegou, o pai abria a barriga do porco com uma grande faca, e as entranhas, liberadas, ainda pulsavam como gigantescas minhocas, e o menino teve a impressão de que o porco vivia, e o fitava – e desmaiou nos braços da mãe, que viera ampará-lo diante da cena macabra.

Adelmo ficou meses sem falar. O olhar sempre perdido, sem expressão, atônito. Voltou a falar, aos poucos, mas não houve jeito de fazê-lo estudar, ou a ter amigos, ou participar de atividades sociais mínimas, como gincanas no povoado, por ocasião de festas de santos, ou simples banhos de igarapés em companhia de outras pessoas.

Os anos se passaram, Adelmo sempre solitário, na lida com a roça, com a madeira, com o pouco gado, com a construção de casas, pontes, galpões, em roças e fazendas.

Essas habilidades não esquecia – fazia automaticamente, calculava distâncias, forças e pressões de forma instantânea, e, ao chegar para um trabalho, parecia já ter elaborado todos os cálculos, imaginado todas as soluções, tal a velocidade e a segurança com que se entregava à tarefa. Semanas depois, já tudo esquecia. Era incapaz de lembrar até de grandes obras, como a ponte nova, de 40 metros, que construíra com apenas quatro operários sobre um rio que cruzava quase que diariamente. Esquecia, simplesmente, e de nada sentia falta, o olhar distante, atônito.

Mas o rosto, ao longo dos anos – passou a incomodar, a assustar. Pálido como cera. Os olhos fundos, vazios. Um cansaço pesado. Como se Adelmo não dormisse há meses, há anos. Como se não tivesse em si mesmo nada mais que indiferença, que desprezo. Um vácuo tão evidente e tão inapelável que passou a ser evitado até pelos pais, tão preocupados com a solidão do filho. Solidão que se tornou, então, absoluta, sem um só amigo, uma só pessoa que se lhe aproximasse fora de alguma obrigação.

                                                                                             *

A aparição de Adelmo sempre causara impacto, mas no refeitório da fazenda Ituano fora diferente – todos pararam de falar, inclusive os que não o tinham visto. O primeiro impacto, na verdade, fora no próprio Adelmo: antes de ali entrar, após descer de uma caminhonete e enxergar Antônio Dias, próximo ao portão da fazenda, Adelmo sentiu um estremecimento no corpo, como se ameaçado por um perigo desconhecido: o corpo literalmente tremeu, sacudiu-se, e ele interrompeu no ar o cumprimento que dirigia ao mestre de obras.

A caminho, Antônio Dias aproveitava para explicar como era a fazenda, o dono, Cícero Antunes, a barragem, as várias obras que aconteciam ao mesmo tempo, envolvendo toda a estrutura de uma planta de laticínios integrada às demais atividades da Ituano.

Barragem para a qual Adelmo e Antônio Dias se encaminhavam em silêncio, após o constrangimento no refeitório.

Adelmo já não levava a mochila, apenas uma pequena faca que mudava de mão sem perceber, enquanto Antônio Dias falava pausado, evitando fitá-lo. Ao longe, cerca de cem metros, ambos enxergaram ao mesmo tempo a imagem de uma mulher loura, de calça jeans e blusa branca, jogando comida no pequeno lago que havia paralelo ao rio, ligado a este por uma comporta de madeira guarnecida por uma tela. Antônio Dias prosseguiu, abrindo um leve sorriso, Adelmo parou, enregelado. Dali, nem poderia dizer como era mesmo a moça, os detalhes do rosto, ou mesmo da roupa, mas uma série de imagens percorreu Adelmo de forma aterrorizante: lembranças, sim, memórias da infância, há tanto apagadas: ele pescando ao lado da mãe, sentados lado a lado à beira do pequeno rio; um primo que viera da cidade e o seguia a todos os lugares da roça, tentando puxar conversa; uma jovem convidada que passou com eles três meses – o menino, então com nove anos, descobriu que a moça era amante de seu pai, quando viu os dois agarrados, em pé, no mato. O pai saiu, constrangido, ordenando “Não fale disso com a sua mãe!”, e Adelmo ficou parado, na frente da moça, que sorria sem graça. Ela, então, desabotoou os últimos três botões do vestido, enfileirados pela frente, abriu-o completamente e mostrou o corpo nu para o menino, imóvel e fascinado, com o rosto em fogo. Ela fechou o vestido sem abotoar, e saiu em silêncio, na direção oposta à casa.

Antônio Dias já se aproximava da moça loura, e Adelmo continuava parado, confuso pelo impacto que lhe causava alguém que não conhecia, que nem ao menos vira de perto, e, mais ainda, pelas súbitas lembranças que lhe invadiam, depois de quase quatro décadas sem nada recordar com emoção. Um vento violento varreu a terra e o céu, e, em segundos, nuvens muito baixas e escuras se posicionavam sobre eles, logo desabando numa chuva imprevista. Adelmo então avançou com pressa em direção à moça, e percebeu pelo movimento das folhas que o vento parecia convergir de várias direções justamente para ela, e essas correntes unificadas formaram um redemoinho perto da árvore onde a jovem, parada, segurava nas mãos o pequeno saco com a ração que jogava aos peixes. Também a chuva convergia para ela, vento, chuva, folhas, as copas das árvores, tudo se centrava nela, Antônio Dias quase correndo, tropeçante, automático numa atitude sem sentido, tropeçou mais uma vez, caiu, Adelmo apressou o passo, sem também entender o porquê, os pensamentos embaralhados, resoluto, ultrapassou Antônio Dias, que se levantava com dificuldades, avançou diretamente para a moça, que deixou cair o saco no chão, sem dar-se conta, atônita para o homem que se aproximava, e quando Adelmo estava a uns quinze metros ouviu-se um grande borbulhar em vários pontos do lago, Adelmo parou, fitando a água, e então centenas de peixes emergiram do lago como se voassem em direção à moça, milhares de pequenos peixes, caindo sobre ela, perto, por todos os lados, e outros ainda, cardumes aéreos se estatelando no ar buscando a moça que levou as duas mãos à boca, aterrorizada, e caiu, desmaiada, com alguns peixes ainda lhe resvalando pelo rosto.

Adelmo correu para a moça, agachou-se e amparou-a ao colo, ela respirava pesadamente, os peixes já não mais saltavam do lago, Antônio Dias também parecia desmaiado, o vento cessou, a chuva cessou, a moça era tão bonita, tão bonita, o rosto assombrado, mas com um leve sorriso, a pele muito branca, muito corada, os cabelos louros e crespos, longos, brilhantes, tão bonita, sem brincos, sem relógio, sem nenhuma maquiagem, sem nenhuma jóia, a mais bonita de todas que já vira, a mais bonita, a mais bonita.

Cinco minutos depois, a moça recobrou a consciência, no colo de Adelmo, assustou-se sem lembrar ou entender, ele atarantou-se, como a querer explicar-se, nada falou, a moça levantou-se, olhou em volta, tirou lama com as mãos da calça e dos braços, viu ao longe Antônio Dias levantar-se, voltou-se outra vez para Adelmo. “O que... o que aconteceu?”, perguntou, ele fez um gesto de perplexidade com as mãos, Antônio Dias aproximou-se, “O que aconteceu?”, também indagou, todos se calaram, e só então a moça e Antônio Dias pareceram se dar conta dos milhares de peixes mortos ao redor. “Meus Deus!”, ela exclamou, de alguma forma se sentindo culpada, “O que aconteceu?”, voltou a perguntar, e Adelmo entendeu que ela e o mestre de obras nada lembravam de minutos antes.

*
A mortandade dos peixes foi o grande assunto na fazenda nos dias que se seguiram. A moça, Vanessa Antunes, filha do dono da fazenda, Cícero Antunes, foi posta em repouso forçado, e consultada por três médicos diferentes. “Está apenas assustada”, os médicos concluíram, susto que não passaria tão cedo, considerando que nem ela, nem Antônio Dias, nem Adelmo lembravam-se do que acontecera (Adelmo lembrava-se, mas disse que também desmaiara e de nada recordava, a não ser que acordara e vira a moça caída entre os peixes).

No dia seguinte ao fenômeno, Vanessa pediu para ver Adelmo; ele chegou cabisbaixo, com o chapéu na mão, e ela exigiu que a conversa fosse a sós.

Seu Cícero Antunes ainda pensou em protestar, mas conhecia bem a filha, e retirou-se com os protestos incomodando a garganta. “Sente-se”, ela indicou uma cadeira a Adelmo, que hesitou; sentou-se, por fim, enquanto Vanessa ocupava uma cadeira à frente, a uns dois metros dele.

- O que realmente aconteceu ontem? – ela perguntou. – É impossível você não lembrar de nada!

- Nã-não lembro! – ele gaguejou, e emendou, mais seguro. – Também desmaiei.

Vanessa olhou-o demoradamente, meticulosamente, sem pressa, sem vergonha, sem educação, sem escrúpulo. O rosto, de expressão vazia, era moreno, enorme, quase quadrado, o nariz grande e forte, as faces marcadas por buracos de antigas espinhas, os olhos plissados, de índio, o cabelo crespo, muito curto. E uma voz assustadora! Foi assim que pareceu à jovem, que não fez novas perguntas para recuperar-se do estremecimento provocado pelo timbre anasalado, baixo, que tentava ser controlado, suave, mas parecia conter uma ameaça indisfarçada.

- Adelmo, é esse mesmo o seu nome, não? – ela perguntou sem propósito, ele apenas confirmou com a cabeça. – Está certo. Está certo. Se você se lembrar de algo, você ou o Antônio... por favor, me comuniquem.

Adelmo fez sinal de positivo com a cabeça, levantou-se e saiu em silêncio.

- Se eu lembrar de alguma coisa – ela disse, e ele parou, de costas para ela, e apenas virou um pouco a cabeça para ouvi-la – também avisarei vocês.

Adelmo fez que sim com a cabeça já virando outra vez o rosto e saindo da enorme sala da sede da fazenda.

*

Os dias seguintes foram de trabalho incessante. Com a planta elaborada por arquitetos e engenheiros, Adelmo comandou cerca de quinze trabalhadores na obra de barrar, com terra, o curso da água, construir dois desvios, também com terra, para “manejar” a água de acordo com as necessidades, e, por fim, a construção, com concreto e cimento, da comporta que controlaria a quantidade de água que sairia da pequena barragem, bem como os três reservatórios que já se encheriam mecanicamente com a nova vazão. Obra simples, mas que garantiria água na fazenda e matéria-prima para o laticínio mesmo durante a inevitável estiagem de oito meses por ano.

Quatro semanas depois (durante as quais não viu Vanessa, que viajara à cidade, nem travara maior intimidade com Antônio Dias, sempre perguntador de detalhes das obras, como mestre de obras, e constrangido de falar sobre o episódio dos peixes) Adelmo deu a obra por concluída, e avisou a todos que voltaria em três dias, para fazerem o teste do sistema completo e ver se faltava algum ajuste nas construções. Ninguém protestou quando ele afastou-se, a pé, com a enorme mochila às costas, a roupa surrada, terra seca nas botas, um mês inteiro de sol sem trégua, após aquela estranha tempestade.

*

Dois dias depois, à noite, a chuva surpreendera Adelmo na entrada da fazenda, completamente molhado, sentado no mato, chorando, sem lembrar do que acabara de acontecer. Chorava, chorava, gemendo, gritando, erguia-se, gritava, sentava-se, e por fim, sentado, curvado para as folhas encharcadas, silenciou, quieto, até que os faróis de uma caminhonete se aproximaram, e ele viu Vanessa descer e correr em sua direção.

Ele ergueu-se, de pronto, “O que aconteceu?”, ela perguntou, e viu que Adelmo chorava, em desespero, “Não sei, não sei, não sei!”, e ela agarrou-se a ele, num abraço destemido que não era de amor, ou de desejo, ou de desespero, apenas abraço como se fossem impelidos pela chuva e pelo vento. E então Adelmo lembrou.

Lembrou-se numa torrente de toda a sua vida, de tudo o que vivera e esquecera, de tudo o que perpetrara e apagara, de tudo o que sofrera e silenciara, de tudo o que morrera e enterrara e ressuscitara e vagara e se perdera e se afastara e de novo morrera e de novo renascera e matara e esquecera e lamentara e se desesperara e de novo matara e fugira e se afogara e emergira e se esquecera e prosseguira.

Lembrava-se e falava, entrecortado, para Vanessa, atônita, sem nada entender, sem entender grande parte das palavras, sem entender as situações, duvidando das circunstâncias, delírio, delírio, mas Adelmo chorava descontrolado e seu jorro de lembranças não cessava, a voz doída como se todas as mortes do mundo lhe pesassem sobre o corpo e a alma em frangalhos.

Adelmo tem seis anos, aproxima-se da avó que o castigava por considerá-lo um demônio, ela dormita numa cadeira de rodas, ele empurra a cadeira varanda abaixo, a avó cai de uma altura de três metros, e quebra as duas pernas e um braço – Adelmo, sete anos, joga DDT no rio, um enorme trecho branco, e os peixes e cobras boiando, envenenados – Adelmo, sete anos, aproxima-se do primo da cidade, que sempre o perseguia no sítio, empurra-o no rio, o menino consegue nadar até a beira, e salva-se agarrado na grama, sem perceber quem o empurrou - Adelmo, nove anos, oferece-se para matar o porco, o pai entrega-lhe a faca afiada, repete instruções, e o menino mata o porco olhando-lhe nos olhos, impassível entre guinchos e respingos de sangue – Adelmo, quinze anos, observa dois adolescentes a namorar, no mato, tudo escuro, e, quando ouvem um chamado, a menina corre para as luzes em festa da escola, Adelmo segue o rapaz, e mata-o com uma enorme pedra batida várias vezes contra a cabeça – Adelmo degola pássaros, galinhas, ameaça várias pessoas, não larga mais a faca, ameaça a mãe, que lhe questiona as atitudes – Adelmo sofre, sofre, na chuva, entre árvores, de noite – Adelmo anda pensativo de manhã, na roça, como se tentasse lembrar de algo – Adelmo mata uma moça que lhe esbofeteia, perto de um poço – Adelmo chora, chora, sempre na chuva, sempre de noite – “Meus Deus, quantas pessoas eu matei!”, ele exclama para uma Vanessa atordoada, “Quantas pessoas eu matei, quantos eu matei!”, ele geme, andando em volta da jovem, então para de gritar, apenas rodeia, sem controle, “Quantas pessoas eu matei?”, fala agora baixo, “Calma, calma!”, Vanessa finalmente gritou, “Você não está bem, está delirando!”, “Não, Vanessa, não!”, e ele parou, deixou cair os braços e fitou-a com o rosto mais desesperado que já se viu. “Não, é tudo verdade! É verdade!”. Ela ainda pensou em aproximar-se dele, mas desistiu, ele afastou-se um pouco, encostou-se numa pequena árvore.

- Vanessa, me escute! – disse, erguendo as duas mãos num gesto de calma, indefeso. – Me escute!
Respirou, olhou o vazio, voltou a fitar a jovem parada, com medo.

- Desde pequeno, eu não lembrava das coisas... Minutos depois, eu esquecia tudo! Não lembrava de nada... Apenas vagas imagens, sem clareza, sem por que... Isso dava uma angústia, um desespero, uma vontade de morrer, o tempo inteiro, sem paz. Não sei como fui ficando mau, sem piedade. Sem consciência! Até que comecei a matar. Bichos. Pássaros. E pessoas. Eu matava, passava horas em desespero, e depois desmaiava – quando acordava, não lembrava de nada, apenas o mal-estar ainda maior. Mas agora lembro... Sabe, eu esquecera tudo, tudo. Mas agora lembro. Lembrei dos detalhes. Eu matava para... lembrar. Não da minha vida. Não da minha família. Não das pessoas que conhecia. Eu lembrava de mim... antes de... antes de eu ser humano... eu era um bicho, um animal – matava pelo sangue, pela carne. Enquanto matava pessoas, tinha lampejos de lembrança – eu mordia, di-di-dilacerava... eu era um lobo. Era também um macaco. Macacos e lobos, juntos, caçando – eu saltava, sempre na frente, muito forte. Os outros vinham sempre depois. Sempre me seguiam. Obedeciam... Eu não lembrava nada de minha mãe, da minha casa. Lembrava de quando era bicho... macaco... lobo... Matava para lembrar!

Adelmo então parou de falar, como se retomasse a consciência – “A barragem!”, gritou, “A barragem! Eu... eu destravei as comportas... os trabalhadores... Seu pai... Eles, eles...”, “Não, não!”, Vanessa gritou, e correu pro carro, “Não, não!”, gritava ainda, e quando viu outro carro vir em sua direção, velozmente, entendeu que era verdade, que Adelmo matara os trabalhadores... e seu pai.

Ela então ficou sentada no banco, à espera de que chegassem os homens que saíam do carro, e, em meio à chuva, viu Adelmo erguer a faca e degolar a própria garganta.