quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


55 - Jaguatirica não é onça

Quando um felino ronca na mata, o tremor no chão nos contagia da aproximação da morte: a boca de cada bicho recebe o amargor que clareia os olhos e tudo se enxerga num alvoroço de lampejos – todos os troncos, buracos, gotas, galhos, grotas.

Onça, pantera, puma, suçuarana: a portentosa atravessa, às vezes, os limites do mato para o capinzal, e certa manhã uma enxergou-me de longe, sem se intimidar. Olhei para a cerca de arame farpado que me separava do estábulo e concluí que seria desmembrado em três minutos. Comecei a descer de costas a ladeira em 90 graus, de olho na assassina que se aproximava estratégica. Se eu passasse pelo arame e chegasse ao estábulo, escaparia - sem uma perna, talvez, mas com vida. Só quem curtiu um perrengue desses sabe o quanto custa a humildade.

Uma onça é igual ao pêlo lustroso, às garras, à elasticidade das presas. Pantera, pela força, onça, pelo roçagar da perseguição, suçuarana, pela respiração compassada de cobra, puma, pelo grito que, em minha garganta, se esvaiu por sufocamento como se eu fora abocanhado no pescoço. Mas, graças aos deuses, cheguei a tempo ao estábulo.

E jaguatirica? Que é sobre este nome, leitor, a não-crônica de hoje.
Jaguatirica não me evoca a malhada em sangue, o estraçalhar indiferente da vida, e sim sutilezas de finas setas a tecer a destruição, não como osso ou marfim, mas como sons: um ataque feito de sons, o grito do jaguar a materializar-se em invisíveis pontas de osso, fenômeno produzido menos pelo urro em busca do estilhaçamento e mais por estas letras de marfim: jaguatirica, como se, por meio das palavras, a onça revivesse nas células as domésticas gatas engatadas pelas agulhas dos gonzos, lancinantemente extasiadas nos telhados. Jaguatirica, palavra de gato que se defende na rua com as unhas lacerantes do esganiçar, jaguatirica, nome mais do que presa, agudo mais do que sólido.
Acontece que, para além dos angorás, o nome jaguatirica me remete ao reino vegetal, não só por meio de metáforas espinhentas, mas fisicamente: o talhe do bambu, a lâmina de bambu, a folha-penacho, o gume flepado, bambu-zarabatana, vento estilhaçado, o grito do gato-jaguatirica tem mesmo íntimo parentesco biológico com o bambu: do mesmo jeito que, hoje, os humanos passam pelo estágio inicial das células-tronco, matéria-prima que se transforma em todas as células do corpo, houve tempo em que a própria vida ainda não era vegetal ou animal, mas uma matéria comum que tudo viraria, vida apenas, e durante a evolução das espécies, tenha a certeza, o bambu e as tigresas demoraram um tempão para se separar, siamesas.
Como acredito que o leitor ainda não pediu minha internação, é fácil também notar que a onça já foi pássaro, ou que uma capacidade não desenvolvida na onça virou asa num parente próximo (separados por uns quinhentos milhões de anos). Pois que a onça voa, aos pares de patas, são quatro asas em cadência que cria a ilusão de descompasso, e a onça parece por vezes ir de lado como uma canoa que avança enviesada pela força articulada de quatro remos: o vôo da onça é como duas águias a remar no céu do cerrado.
A onça, portanto, já foi peixe, não tão somente tubarão, que é por demais inquieto, mas da adorável família das ariranhas, gênero em franca mutação (ainda não decidiu se vai ser peixe ou uma espécie curiosa de tigre de casaca).
Jaguatirica, lontra de bambu, flauta de setas de marfim, voa sobre minha imaginação, plana como dois urubus as raízes com chocalhos, mas erra minha carcaça: o tremor que causas na terra nunca mais me enganará e nega as minhas palavras.
(Bendito arame farpado.)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


54 - Reaver todo o tempo

Uma das realizações humanas mais extraordinárias é a formulação (pela filosofia, pela arte e pela ciência) do, digamos assim, mito do eterno retorno. Imagine: tudo o que agora acontece se repetindo, rigorosamente igual, em determinado estágio do espaço, daqui a milhões de anos. O argentino Jorge Luis Borges, no conto “A escritura do Deus”, trata de um homem aprisionado, Tzinacan, cuja divinidade, Qaholom, no início do mundo teria previsto todos os males e ruínas e deixou uma forma de saná-los: uma frase, que pronunciada recriaria/restauraria tudo, sentença que conteria toda a obra do paralelismo entre o tempo e o espaço. Borges quase nos faz crer que tal frase existe, afinal um deus “só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhuma voz por ele articulada pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo.” Ao final do conto, o prisioneiro descobre a sentença total: cifrada nas malhas dos tigres. Pronunciá-la seria tornar-se onipotente, tornar-se o próprio Deus, mas Tzinacan, mesmo senil e encarcerado, nobremente não a pronuncia: “Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo, não pode pensar num homem, em suas vulgares ditas ou desditas”. Imagine, leitor, pronunciar uma frase e poder absolutamente tudo...

Mais fantástico do que a formulação poética ou filosófica é ter a física prometido a concretização do retorno: não apenas nos livros, mas no real, o universo se repetiria de cabo a rabo, e, a meu ver, o único problema aí é que demoraria demais considerando-se ser uma repetição: os exatos bilhões de anos transcorridos até fechar o ciclo-reinício. Vou fazer uma pergunta humilde: e se este retorno estiver se dando agora, se a atual vida já foi vivida desde o começo dos tempos, se formos uma reprise como um reflexo no lago? A resposta mais agradável é a possibilidade de intervir no universo, de lhe acessar o passado e o futuro, pois que estes estão em algum lugar, preservados, e, portanto, é menos impossível descobri-los. Encontrar uma máquina, uma conta, uma fórmula, uma sentença, e instaurar a navegação pelo tempo, tornar real o mais recorrente sonho dos poetas. Honestamente, eu não hesitaria em dizer a palavra, a sentença, eu entraria na matemáquina, eu aproveitaria a fresta e atravessaria as eras a despeito de minhas vulgares ditas ou desditas. Aliás, se é pra sonhar, eu gostaria de escolher, selecionar - apenas alguns fatos e pessoas de passado e futuro, algumas sensações raras para depois lembrar.

O que você, leitor, escolheria para re’ver, re’viver?

Noutra extensa demonstração de humildade, enumerarei algumas coisas de que não abriria mão. Em agradecimento ao Borges, eu assistiria à imagem em que “Adão descobre a frescura da água” no Paraíso. Antes, porém, eu observaria um pouco da formação das espécies, e presenciaria o surgimento da fala e das primeiras palavras. (Tenho quase que certeza de que a primeira palavra foi “mãe” e o filho estava com fome ou em perigo). Pena que Helena e Tróia provavelmente foram inventadas, mas passaria um tempo conversando com Homero, se ele aturasse. Submeteria poetas como Dante e Rimbaud à minha maviosa presença, e aproveitaria todos os minutos entre as décadas de 1910 e 1930, quando estavam no auge Fernando Pessoa, Pound, Lorca, Eliot, Joyce e Maiacóvski. Também viveria de novo muito da minha vida (uns 3%) e daria um salto tremendo para o futuro, primeiro duzentos anos, depois dez mil, depois um milhão de anos. Disso tudo eu selecionaria, para depois lembrar em 2006, as sensações de felicidade de alguns bilhões de pessoas, o segundo mais intenso de cada vida, e os ficaria curtindo em série, encadeados, como se eu, e não Platão ou as conjecturas dos teósofos, fosse a memória do universo.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


53 - Os descarados

Esta crônica não trata do desonesto, do mal, do cínico, mas do descarado puro: cara-de-pau misturada a desfaçatez, temperadas com mentira e promessa e arrematadas por total sem-cerimônia. Eis o início da classificação do tipo, que cada leitor deve ampliar:

- Encosto – aquele conhecido descarado que chega para passar três dias e consegue ficar três semanas.

- Encosto com agravante – mora de favor e faz que não vê a dona da casa gastar, por causa dele, um litro de desinfetante todo dia no banheiro.

- Godzila e os mortos-vivos – após 70 milhões de anos, homens e dinos se reencontram por obra do descaramento: nos shows macabros de bandas exumadas, como o Kiss.

- Godzila e os vivos-mortos – Nos shows bizarros de bandas que morreram e não foram enterradas, como o Simply Red.

- Godzila executivo – Newton Cardoso, o Newtão, ex-governador de Minas que amealhou na política, às trombadas, quer dizer, na marra, bilhões de reais.
- Filho de mãe idosa separada – Representa o papel de garoto carente de 8 anos e a genitora, como todas, só falta passar talquinho no cinqüentão desbundado.

- Filho de mãe idosa separada com agravante – Além de saquear a bolsa da mãe; além de comida, roupa lavada e total silêncio até as cinco da tarde (para descansar das noitadas); além de ter, como as grávidas, desejos madrugadeiros (por novas tecnologias), o desalmado estragou o show de Roberto Carlos pela tv: ensaiou até meia-noite com a banda cover de punk-heavy-trash (a mãe teve uma estafa batendo na porta, mas ninguém ouviu, o quarto impermeabilizado com cubas de ovo).

- Filho-da-puta – George W. Bush.

- Funcionário público – Aquele parente, ou colega de bairro, ou de trabalho, que se porta como um rei e arrota importância, promete apoios, “faz questão” de ajudar a resolver problemas, mas virou o folclore da rapaziada: também conhecido como “descarado-guichê”.

- Gato de hotel – Seduz mulheres da classe média alta, se aplastra na mordomia e três anos depois desaparece, não sem antes limpar o apartamento e a conta bancária.

- Gato de hotel com agravante – Mantém, nessas circunstâncias desalmadas, três casamentos simultâneos.

- Gato de hotel com agravante do agravante – Grava um vídeo para chantagear a “esposa”, o vídeo cai na internet e o descarado fatura como ator pornô.

- Tesoureiro de campanha política – Este, como é peso-pesado, eu preferiria reenquadrar: na categoria de cinismo, não de descaramento.

- Tesoureiro de campanha política com agravante – Ir à tv três vezes ao dia negar o que já se comprovou. (Situação, aliás, que o enquadra em dupla categoria: é um descaradão, além de cínico.)

- Descaradinho – Aquele que, nas enormes filas de shows, bancos e órgãos públicos, fica por ali, tentando engatar um papo furado, com a evidente intenção de furar na sua frente.

- Descaradinho com agravante do agravante – O débil mental chantagista do namorado da sua filha mais nova, que agora até dorme na casa do “sogrão”: porque você o flagrou com outra no momento errado: você também estava com outra.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


52 - Medo das palavras

O palavrão é o patinho feio dos dicionários. A diferença entre o palavrão e o cisne da fábula é que o primeiro é quase sempre, de fato, feio de constranger e o Patinho Feio do Christian Andersen era, afinal, um cisne. Bem, o palavrão também não é nenhum patinho, está mais pra águia ou urubu, e vive longe de ser o personagem – ou linguajar – adequado para uma narrativa infantil. Como este começo, portanto, fracassou, tentemos outro.

A tv pode mostrar – sexo, sexo, sexo – mas não se pode falar sobre. As crianças de 0 a 6 anos – que formam ainda a personalidade e têm a memória melhor que a dos elefantes – podem assistir, depois das 18 horas, a vários triângulos sexuais encadeados na tv, mas não se fale disso na sala. Metade da grana gasta com publicidade é para construir apelos sensuais, e nem precisava tanto. O que mais a censura represou, por séculos, nas palavras (o sexo) a emancipação feminina botou nos eixos em duas gerações. O estranho é ainda termos mais medo das palavras do que da coisa em si, poder assistir, mas não falar.

Para mim, o principal motivo desta quase incongruência é: falar implica em confissão.

A ciência já deixou claro: não estamos aqui para ser felizes, ou pensar, mas para nos reproduzir. O “resto” é o humano, suas profundidades complexas, complexos: transformou em pecado o gesto “mais natural da natureza”: aquele que assegura a perpetuação da espécie. O pecado é uma tentativa de sufocar na mente o que não se sufoca no instinto. Todo mundo quer, mas não se pode: e se criaram mecanismos do tipo vergonha, pudor, corar, recalcar, sublimar. Não interessa se o mundo sabe o que carregamos no íntimo, desde que não sejamos confrontados com o que de fato pode esclarecer tudo: a palavra. Como somos todos culpados (atire, você sabe, a primeira pedra quem não morreu por amor) a programação explícita da tv ao menos resolveu a necessidade de expressão do corpo. Falta resolvermos o humano, os verbos.

Calma, leitor, que não vou insuflar nova revolução feminina, desta feita pelo domínio do palavrão. Aproveito pra observar que a queima dos sutiãs como marco feminista é meio brega, salva pela força simbólica da liberdade inaugural: considerando-se os milênios de repressão, tirar o sutiã em massa foi como abrir comportas hidrelétricas. Felizes tempos, os nossos, brasileiros, em que a bagunça dos sentimentos ainda sobrevive à baderna corporal. Chegamos ao corpo, ao vídeo, galãs e mocinhas transando às 18h, mas o Eu continua misterioso, obnubilado por uma redoma, por um muro, uma comporta – de cuidados, de zelos, de carga cultural, de hipocrisia.

Tenha ciência disso: o que mais ocultamos é que é a verdade; o de que mais fugimos é a verdade; o que mais evitamos, o que não verbalizamos: eis a verdade. Chegar à verdade é mais simples do que se ameaça: feche os olhos, e responda em dois milésimos: o que você mais quer? A primeira coisa que vier é a verdade. De novo, em dois milésimos: se você fosse de fato livre, o que faria neste momento? A palavra que você não diz, por iniqüidade, por timidez, por fineza, é a verdade. Com Clarice Lispector: quando aprendo uma palavra, conheço mais a mim mesmo. De quais palavras vivemos fugindo? O que ocultamos, o que negamos, o que reprimimos, o que comportamos em nós? Sempre a verdade, a liberdade.

Encarar as palavras de frente é a última odisséia sexual. E estamos bem longe do porto: a verdade é simples, mas não é possível, e assim a liberdade, aquela que não se explica, mas todo mundo entende.