Quando quero amar Belém, digo chuva, e a cidade me reconhece de longe, e amo Belém nas ruas, sob as mangueiras cacheadas, amo Belém na Cidade Velha, onde o Tempo mora em casarões, amo Belém no Reduto e no Telégrafo, onde o cinza luminoso dos crepúsculos polvilha nossa alma e gera uma melancolia alegre, amo Belém na Pedreira e na Matinha, onde as meninas desfilam na volta da academia e os garotos transpiram pela fala indelicadezas hormonais: essa Belém que só encontro quando chove, e o asfalto reflete não a luz, mas a luminosidade, como se o Sol não se importasse com tanto brilho, ou a Lua se dissolvera numa tela delicadíssima que nos envolve secretamente, tal um jardim sem cigarras.
segunda-feira, 29 de junho de 2009
LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"
Quando quero amar Belém, digo chuva, e a cidade me reconhece de longe, e amo Belém nas ruas, sob as mangueiras cacheadas, amo Belém na Cidade Velha, onde o Tempo mora em casarões, amo Belém no Reduto e no Telégrafo, onde o cinza luminoso dos crepúsculos polvilha nossa alma e gera uma melancolia alegre, amo Belém na Pedreira e na Matinha, onde as meninas desfilam na volta da academia e os garotos transpiram pela fala indelicadezas hormonais: essa Belém que só encontro quando chove, e o asfalto reflete não a luz, mas a luminosidade, como se o Sol não se importasse com tanto brilho, ou a Lua se dissolvera numa tela delicadíssima que nos envolve secretamente, tal um jardim sem cigarras.
segunda-feira, 22 de junho de 2009
LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"
Semana passada, fui, como jornalista, ao Paracuri (entre a Pratinha e Icoaraci, uma das áreas mais pobres de Belém) e senti-me no mínimo em Marajó. O pescador Daniel Romão nos conduziu numa rabeta (tipo de canoa motorizada, muito veloz) e em dois minutos estávamos, eu e o fotógrafo Gilmar Farias, no meio de uma pequena mata, onde se destacava o traço esguio dos açaizeiros. Descer da rabeta era dificultoso, pois chovia e à beira-rio o chão cobria-se de lama, e ainda havia que se equilibrar numa palmeira-pinguela. No clarão, três casas espaçadas, entre árvores e sem energia elétrica (a água é encanada) onde vivem famílias de pescadores. Na maior, de um único e grande cômodo, moram nove pessoas. Naquela manhã molhada, a morrinha se espichava nos recém-acordados, outros estavam espertos há horas, à beira do fogo. Pegaram um porco na própria área (conviviam, soltos, espécimes variados de patos, galinhas, cachorros) e os caldeirões de água quente o pelariam dali a pouco. Faria companhia a outros três, cevados durante treze meses, para os quinze anos de Jéssica, filha de um dos pescadores.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
DOIS POEMAS DO LIVRO "DO REAL IMAGINADO"
Ao lado do cisne
“- A água fenece, brota:
o tempo de uma borboleta.
Tua forma
é como o vôo do urubu
estarão contigo
estes fogos de estrelas.
Eu, por mais de um rio
lastimei a vida, lamentei o amor;
cantas antes de morrer.”
Dando voltas com um Eu do Outro
Há mais de um predador todos os dias,
talvez um rex, talvez uma serpente.
É o alimento, bela, da libélula,
da tilápia, da aranha, dos suspiros.
Há vírus - Tróia das hemácias - que
se fazem cópias ardilosas para
surpreender nossa defesa. Toda
célula mata e morre, e a fuga
angula um tango com a perseguição.
(São como uma elegia em corrupio
o ataque e a defesa entre as espécies.
Reparo os truques do camaleão,
que ganha a vida ao viver de ilusão;
o limão laborou o azedo, a abelha
tem veneno na bundinha de mel;
o gambá escafedeu-se borrifante
da cascavel que eriça guizos áridos;
toda roseira exibe espinho, toda
felina arranha mesmo sem querer.)
Conformes aos vírus que se copiam,
ludibriamos nosso in-consciente:
por trás do Eu há outros Eus, gerados
ao se conter ou liberar instintos.
De acordo com a situação, um Eu
assume, muitas vezes em surdina.
Tenhamos por exemplo esse amante
que surge, esgueirado aos lampiões:
qual, agora, o seu Eu, se vemos dois,
um que é casado, resistiu bastante
e teme imaginoso pelas conseqüências,
e outro que, como um Iago de si mesmo,
plantou-se frases, sugestões, e foi-se
convencendo sem suspeitar, até
sucumbir-se a uma versão final,
complicadíssima, da moça à espera:
qual é verdade, o que engana a si
resistindo à paixão, ou o que se engana
sugestionando-se, a ponto de, após
o idílio, se jurar viva inocência?
Quanto a nós, diva, quem sabe, entre tantos
Eus marcados pela fração da rua,
não teríamos também um para esta lua?
segunda-feira, 15 de junho de 2009
LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"
No clássico romance “A selva”, o português Ferreira de Castro afirma que o amazônida se contenta com pouco, o mínimo já “faz a Tróia dessa gente”. Por anos, tal sentença me doeu, como se, mais do que constatação sociológica, fosse quase uma leviandade de estilo, algo preconceituosa.
segunda-feira, 8 de junho de 2009
LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"
Você tem vergonha do Pará? Melhor: tens vergonha do Pará? Ou, por outra: conheces a importância, para a humanidade, do médico Gaspar Vianna?
Tratar-te por tu, leitor, já cria um fraseado, um caquiado na língua, e nessa toada cheguemos à terra do você, ou melhor, do cê, ou, mais precisamente: de Noel Rosa. Para encontrar um nome escondido aqui na floresta, na água descomunal.
Repito a máxima de Noel: tudo aquilo que o malandro pronuncia, com voz macia, é brasileiro, já passou de português. É brasileiro, não inglês, ou norte-americano, ou senegalês. Não apenas um falar próprio, “português do Brasil”, mas o homem que daí emerge: mais do que emancipado, um homem livre, que se assume do jeito que é, que tem a própria personalidade, o próprio lugar no tempo e no espaço: brasileiro, substantivo fagueiro.
terça-feira, 2 de junho de 2009
LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"
22 - O gigante desentranha-se
O Brasil é, ao mesmo tempo, a negação, afirmação e revolução de si mesmo. Define-se como pacífico e cordial, mas tem algumas das cidades mais violentas do mundo. É uma das maiores economias e sacrifica um dos povos mais pobres. Tem uma imensa massa de analfabetos e é o 13º maior produtor de ciência. É um país do terceiro mundo e contribuiu com alguns dos maiores artistas para o século XX (Villa-Lobos, Guimarães Rosa, Niemeyer). É um “país que não lê”, mas tem alguns dos grandes poetas musicais (Aldir Blanc, Chico, Caetano); aqui um poeta consagrado pela academia tornou-se ícone em letra de canção (Vinícius) e é improvável, em qualquer outro país, que um letrista popular tenha, como Noel Rosa, tanta importância para a afirmação de uma língua e de um jeito de ser.
O Brasil latente, “país do futuro”, o “gigante adormecido”, esse já foi verificado e constatado por autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Todos os brasis que abrem esta crônica estão, de certa forma, contemplados em suas origens por nossos sociólogos. O Brasil que sente o futuro cada vez mais próximo, quase no presente, o gigante que desperta, esse é que não parece se justificar pelo próprio passado, não parece previsto em nenhum tratado: desentranha-se de si mesmo, segue fora de controle, mas sentindo não no corpo, e sim nas mãos, uma força tão pujante quanto estranha, ainda que se confirme a negação, afirmação e revolução de si mesmo.
Os casos a seguir ilustram, sem dúvida, o mesmo velho Brasil; mas acrescentam algo de maravilhoso e diabólico, pululâncias do ser que começamos a ser:
- O reitor de uma universidade acusou o povo da Bahia (onde quase 100% da população ou é negra ou tem íntima ligação sanguínea e cultural) de primarismo intelectual, exemplificando com dois símbolos da cultura afro: o toque do bloco Olodum e o berimbau (“baiano só toca berimbau porque tem só uma corda”, disse o reitor - em nossa chamada “democracia racial”, o nazi-fascismo);
- A menina que foi asfixiada e, desacordada, jogada do sexto andar de um prédio (estão presos pelo crime o pai e a madrasta, de classe média alta);
- Elegemos presidente um intelectual de padrão internacional e, a seguir, um operário, nordestino, “pobre”, “feio” e sem um dos dedos da mão esquerda;
- Acabamos de ser classificados, pela primeira vez na história, como um país seguro para investimentos (o que nos abre um mercado de 17 trilhões de dólares) e somos o maior “fornecedor” mundial de prostituição infantil;
- País que desenvolveu a melhor tecnologia para extrair petróleo de águas profundas, o Brasil torna-se, com a descoberta de uma gigantesca reserva pré-sal, potência mundial nessa fonte que se esgota (já o somos em água doce e dominamos como nenhum outro a tecnologia do biodiesel, o que nos torna triplamente estratégicos para o futuro);
- O Brasil-Santos Dumont, que inventou o avião (revolucionando o século XX), é referência mundial na fabricação de boeings; e, no entanto, institui cotas para negros nas universidades, porque não encontrou outra forma de compensar a escravidão de antes e depois da Lei Áurea;
- Fama de povo mais alegre, mulheres mais bonitas, sexo livre, a natureza mais exuberante – o mesmo Brasil que transforma a biodiversidade amazônica em carvão e que é tachado de bazar do sexo (“carne”) mais barato;
- Aqui, a “fresta” (como, num tribunal, os advogados aproveitando brechas na legislação) incorporou-se à cultura, à personalidade, à identidade do povo, legitimando o “jeitinho brasileiro”.
O Brasil desperta mais confiante, mais arrogante em seu gigantismo, mais generoso em sua multiplicidade de tudo. Surge agora de si, de seu amálgama-unidade, e não da anterior “mistura estratificada” de raças: mais maravilhoso e irrecuperável (“o Brasil não é um país sério”) e vergonhoso do que pensáramos.