segunda-feira, 21 de junho de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


Alumbramento

O universo se aninha
à minha filha
que ainda não nasceu.
Dar-lhe um nome
é gerar nos feixes amnióticos
o espaço paralelo
dos símbolos.
Palavra-genética
como o liquor da biosfera
e o colostro da Via Láctea,
que não eu, mas a mãe
(condão de verbo
sobre todas as coisas)
deve amar
até pronunciar.






Minha filha nascerá em dois meses.
Escuta tudo.
O mundo a dez centímetros
e desconhecido.
Sei que ela já viu
alguma imagem
aqui de fora:
cena de sonho
gerada como um jambeiro
na mente ansiosa.
A vida serão as imagens
das vozes - essas vozes - mais perto,
nítidas, tal um fogo.
Minha filha sabe sem pensar
- aliás, ainda não tem nome,
estado de palavra:
pensamento
é pra quando olhar o mundo
de fora pra dentro.


Lamento da mãe do campo atrás

Minha mãe, casa de clara,
vira chuva como as frutas
e voltará se eu estiver aqui.
Esperarei contigo, filho de minha lua,
longe de teu pai, sol do meu parto.
Aqui, chegarei.
A água fez o melhor por mim,
tenho medo de não retornar;
medo de ficar só,
longe do rio de meu filho;
aqui, chegarei.
Rebento do meu solstício,
fala das borboletas
que sofri para teu vale;
fala para não esqueceres.
O universo é uma gota dos olhos
e velarei toda a noite:
dorme, o rio está parado.
Se for preciso, cantarei.
E onde nunca ninguém saberá,
morrerei.

RESENHA DE PAULO NUNES

O texto abaixo é do escritor, poeta e professor Paulo Nunes, sobre meu livro "Do real imaginado", que publico aqui no blog.


Palavra: que instigante potência a vossa – Paulo Nunes[1]

Este livro pode passar despercebido aos olhos de um apressado visitador de livrarias. Miúdo, capa branca, de editora de tímida projeção. Estou a falar de Do real imaginado, do jornalista e cronista Édson Coelho. 92 páginas, 11 X 20 cm. Trata-se de um investimento seguro da Projecto Editorial, de Brasília. A editora, capitaneada por um poeta também, investe em escritores das mais diversas tendências e nos brinda, neste início de 2008, com esta coletânea de poemas, prefaciada pelo mestre Ernani Chaves.

Não digo que o livro é irretocável de lés a lés (como o são as crônicas deste criativo escritor), haveria, certamente de se selecionar (a seleção entretanto é uma busca individual) alguns textos e pedir a outros que se retirassem do livro? Faltaria educação para tanto (falo da “educação pela pedra”, bem dito). O poema que dá nome ao livro é uma peça instigante. Nele, elementos da narrativa deixam antever um prosador engrenado nos artelhos da narrativa (tempo, espaço, margem/ns), mas salta aos olhos o intertexto com Age de Carvalho e, sobretudo, Drummond, o Carlos, que nos batizou a todos que gostamos de poesia em língua portuguesa. Outro vetor de inspiração (espelho a contemplar-se?) é certamente Fernando Pessoa e seus heterônimos (a primeira parte do poema “O Andarilho” é de fina, sofisticada, beleza). Neste mesmo texto pululam entrançados textos, que vão desde os gibis até escritores clássicos. O intertexto, insisto, é uma funda inclinação da poética de Édson, que neste poema parece reescrever, em versos, o Atlas de lugares imaginados. O “nonsense” é uma busca constante do poeta, que ali teve seu ponto alto.

Das fortes emoções que tocaram este leitor que vos fala é o poema “do Éden”. A força do texto está na dicção precisa, na falta de conexão, pois poesia ali é sugerir e não a sintaxe da argumentação, que é explicitadora. Na mesma linha está “Canção da noite”. Bela geografia de desejos com poucas palavras, em sete versos (o número cabalístico é mera coincidência?). A cultura das aparências, por sua vez, é defenestrada num ácido poema-confissão – “Sílica”: “[a mulher afronta a todos com] plásticas até no clitóris”, dizem dois versos – em que o eu-lírico se desnuda (ah adolescência nossa o quanto devemos a ti!) e parece reavaliar a si próprio.

A metalinguagem é, pelo que percebi, o mais forte traço do livro. E ela está a todo vapor em “Arte poética”; nele, o poeta recoloca a máxima de que o silêncio é de ouro (mesmo que a palavra faça muito). A metalinguagem, agora mais rolambarthiana do que nunca (falo da idéia de que o corpo da letra é uma re-significação da escrita da vida), traspassa o poema “Tempo ditado”, uma pungente homenagem do poeta à sua filha.

É isso. “Do real Imaginado” faz jus ao escriba que transita habilmente no solo da palavra-terra (a metáfora está recriada no livro), onde poetas tão bons se fizeram, se fazem: Bruno de Menezes, Paulo Plínio de Abreu, Ruy Barata, Mário Faustino, Age de Carvalho e o incomparável Max Martins, somente para se citarem alguns de gerações que nos antecedem.


[1] Paulo Nunes é doutor em literatura; professor da Universidade da Amazônia, Belém-Pa.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

UM RAIO DE TEMPO


LIVRO "DO REAL IMAGINADO"

Cecília

Canto como o instante existe:
sôo, apenas: poeta.
Há dias não fico triste.
Onde andarás, hora dessas?

Nossas canções se entenderam
como asas, de par em par.
Busco-te agora nas ondas,
retorno pra te esperar.
Se estás fora do espaço,
um verso talvez te ache.

(À noite,
o firmamento é um barco
que navega em si

e teu nu é um raio de tempo -
uma sereia - na aragem.)

Haverá uma passagem?



Pequena morte

A paixão - vertiginosa
alquimia dos sentidos -
gerou um sol
longe do espaço.

Tudo era impalpável e mutante
e simultâneo como uma fonte:
a satisfazer
nossa semelhança.

(Teu desejo mais íntimo
a imaginação reservou
num favo de chispas.)

Dormieacordei
no mesmo sonhoeinstante
e ao me reanimares
chorei e cantei.

Estávamos ainda
noutro lugar?


Arte poética

O pensamento a vertiginar-se
com verbos e galáxias;
as estrelas, polens
do fogo,
soam no casco
dos insetos;
luzferrão,
marimbondos.
Assenti ou mareei
ao sentir
como vinhas;
hoje, calo.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

AO ENCONTRO DO TEMPO: PARATY


LIVRO "DO REAL IMAGINADO"



Na varanda dos tijolos verdes

Fugir ao encontro
do tempo: Paraty.
Amurados com o antigo,
os telhados transformam
as ruas em pátios;
acobertados pelo casario,
amor e livros.
A réstia de um milênio
se esvai sobre nós -
a concretude de raiz,
as árvores súbitas


climax lux


cerração de sílabas na lua,
abalada por tua morenice.
Para ti esta fresta-
fronde paralelepípeda
esgalhada ao sol da memória.


Para o Amor

Dou graças ao sal luxuriante
de tuas bodas de perda,
àqueles dias
no jardim das delícias,
quando bestiais contrários
se completaram sem destroços.

Amor em asas,
migração de duas aves sempre perdidas,
também agradeço este adeus incessante
pela ilusão de um espaço
sem aniquilamento.


Dando voltas com um Eu do Outro

Há mais de um predador todos os dias,
talvez um rex, talvez uma serpente.
É o alimento, bela, da libélula,
da tilápia, da aranha, dos suspiros.
Há vírus - Tróia das hemácias - que
se fazem cópias ardilosas para
surpreender nossa defesa.
Toda
célula mata e morre, e a fuga
angula um tango com a perseguição.

(São como uma elegia em corrupio
o ataque e a defesa entre as espécies.
Reparo os truques do camaleão,
que ganha a vida ao viver de ilusão;
o limão laborou o azedo, a abelha
tem veneno na bundinha de mel;
o gambá escafedeu-se borrifante
da cascavel que eriça guizos áridos;
toda roseira exibe espinho, toda
felina arranha mesmo sem querer.)

Conformes aos vírus que se copiam,
ludibriamos nosso in-consciente:
por trás do Eu há outros Eus, gerados
ao se conter ou liberar instintos.
De acordo com a situação, um Eu
assume, muitas vezes em surdina.
Tenhamos por exemplo esse amante
que surge, esgueirado aos lampiões:
qual, agora, o seu Eu, se vemos dois,
um que é casado, resistiu bastante
e teme imaginoso pelas conseqüências,
e outro que, como um Iago de si mesmo,
plantou-se frases, sugestões, e foi-se
convencendo sem suspeitar, até
sucumbir-se a uma versão final,
complicadíssima, da moça à espera:
qual é verdade, o que engana a si
resistindo à paixão, ou o que se engana
sugestionando-se, a ponto de, após
o idílio, se jurar viva inocência?

Quanto a nós, diva, quem sabe, entre tantos
Eus marcados pela fração da rua,
não teríamos também um para esta lua?