segunda-feira, 25 de maio de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


21 - Fresta


Nas três estrofes de “A volta do malandro” (1985), Chico Buarque sintetiza uns 500 anos de Brasil: “Eis/o malandro na praça outra vez/caminhando na ponta dos pés/como quem pisa nos corações/que rolaram dos cabarés”. Mais à frente, este pisar macio, na ponta dos pés, “anda assim de viés” (um “penetra”) entre parangolés e patrões. No final, nosso personagem “corporal” sai da restrição de salões e cassinos para brilhar ao ar livre: “deixa a praça virar um salão/que o malandro é o barão da ralé”. (É de se notar esse “volta” do título, ao mesmo tempo o malandro que retorna e o que “dá uma volta” em alguém.) Cerceado pela ditadura militar, o elepê “Sinal Fechado” (1974) traz Chico cantando só músicas de outros autores; a cedida por Caetano Veloso, “Festa imodesta”, exalta o compositor popular em tempos de censura, e revela que “toda festa que se dá ou não dá/passa pela fresta da cesta e resta a vida”. (Em letra sobre “Os Trapalhões” - o quarteto de humor, “humor brasileiro” -, Caetano fala em “jeito de corpo”.) Recorde-se que em “Sinal fechado” Chico gravou, sim, uma música própria, “Acorda, amor”, mas assinada por um tal Julinho de Adelaide, que nunca existiu. Nela, um sujeito de sono atormentado repete “Chama o ladrão!”, porque chamar a polícia poderia ser pior. Essa afronta à ditadura só passou, claro, pela censura porque Chico utilizou a “fresta” do nome falso (fresta que se tornou uma das principais características de sua obra). Eis algumas sínteses de um certo Brasil irradiado a partir do Rio de Janeiro: a progressão do malandro que pisa macio, e entre as classes sociais “anda assim de viés” com seu “jeito de corpo”, e dribla as dificuldades e usufrui por meio de “frestas”: a praça então “vira um salão” numa “festa imodesta”.

Mário de Andrade atestou que a mais original contribuição do (povo) brasileiro à cultura planetária é a música popular. Mário não vivenciou outra contribuição extraordinária: no futebol. Veja bem, leitor: todo esporte arrebata, estica ao extremo as cordas cordiais, e às vezes em minutos nossa vida ganha uma intensidade não experimentada em meses; acontece que o esporte do Século XX foi o futebol, aquele que rendeu ídolos maiores que os do boxe, o único que enlouquece em massa quase todos os países: pois nesse esporte de histórias surreais, nesse esporte pelo qual milhões estão dispostos a matar e a morrer (e matam, e morrem), justamente o brasileiro é a referência insopitável.

É tanta moral que mudei de parágrafo, a saborear melhor: o brasileiro (o jeito de corpo, a ginga, a pisada macia, o viés, o samba – o drible) foi lá e transformou o futebol em arte: arrebata pela adrenalina e pelo prazer estético. Os antigos falavam de pão e circo, entendido o circo como uma forma de “dar uma volta” no povo e fazê-lo esquecer a fome. O futebol não admite tal máxima (você tem fome de quê?), pois futebol é filé mignon, ou melhor – é ao mesmo tempo o filé e o balé.

E, no futebol, quem melhor expressa esse jeito no corpo é Romário.

Quando a bola fervilha na grande área, e todos se desestabilizam, Romário é o único frio, e se não houver espaço, ele inventa, e se não houver distância, ele cria uma vertigem, e se não houver como alcançar a bola, ele apenas enfia a chuteira entre as pernas adversárias. Romário faz gols por “frestas”, clarões enxergados ao longe ou em algum cantinho, e ali ele aplica um estampido ou uma bicudinha, é isso mesmo, uma bicudinha rasteira, sem apelação. Já o vi, de costas, deslocar a medula de um zagueiro; já o vi, prestidigitador, mundiar tanto um goleiro que este botou a seus pés a bola que já estava segura. No início, Romário não tinha dinheiro para ir treinar; aprendeu então a “fresta”, jeito de corpo - pular a roleta do ônibus, descer pela frente -, igualzinho a Chico, quando pressionado: deu um jeitinho como o brasileiro, “Julinho de Adelaide”, que passa fome, mas abusa de um dos manás do planeta.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


20 - Esportes: superação

Os desfiles das escolas de samba têm um lado kitsh, exagerado, às vezes caricato na grandiloqüência: faz parte da catarse, de nosso extravasar desregrado, da “carnavalização”. O desafio a se temer, na abertura dos jogos Pan-Americanos do Rio, era a transposição descontextualizada, para o estádio, desse lado quase bizarro do carnaval. Pois o samba, elementar, seria o mestre da cerimônia.


Arrisco que o samba é a maior contribuição do Brasil para a cultura planetária – ao menos do Brasil por ele mesmo, pelo povo. A maior contribuição do “brasileiro”.

Sem exageros: a dança samba é tão complexa que revoluciona a relação entre o corpo e os ritmos. Como diria Tom Jobim, o que balança na música é Brasil, Estados Unidos, Caribe, Cuba. “O resto é valsa.” Só o Brasil, no entanto, sintetizou, no corpo, correspondência tão profunda entre um ritmo (samba) e uma dança (samba). Não há dúvida, leitor: primeiro, divida, na imaginação, a orquestra de quinhentos músicos percussivos, os tipos de instrumentos, as funções harmônicas e os naipes de batuque; agora divida (isole), para facilitar a vista, em várias partes o corpo de uma passista em ação: braços, pernas, quadril, cabeça, pés; observe cada parte sambar isoladamente - os cotovelos, o sorriso, os artelhos; agora junte as partes aos poucos - pés com pernas, omoplata sambando com pescoço; e aprecie então o corpo inteiro em harmonia, cada centímetro coordenado, tomado pelo samba (a orquestra desatinou), dança do sangue, samba.
Era o Pan do Rio, mar e montanha, cidade negra, morena, Zona Norte, Zona Sul, “mané é mané”. Superação, alvoroço em ebulição. (Bossa é saber pisar.)

“Superação”.

Nenhuma palavra cabe melhor ao atleta, a não ser a palavra “biótipo”: “superação”.

Hortência não seria um mito do basquete, se não tivesse a constituição genética rara; tampouco, se não treinasse horas e horas dia após dia, mês após mês. Vontade, disciplina, garra, valentia – fraturas, tornozelos torcidos, tendões rompidos – biótipo e superação, eis justamente por que amamos os atletas, mais, por que chamamo-los de heróis.

É comovente o aplauso, nas ruas, aos que se aproximam do final da maratona, o corpo a se esvair para ter energia, feixes de dor, todas as regiões do cérebro prestes a pegar fogo: o grande atleta é aquele que, diante de si, a cada passada, a cada segundo supera desafios gigantescos. Daí nosso transbordamento.

E é preciso voltar alguns milhões de anos no tempo, e recordar que o corpo mais veloz, ou mais forte, ou mais “inteligente” (o dos atletas) é justo o tipo de corpo que resistiu à seleção natural das espécies: que sobreviveu à guerra incessante pela vida. Nos esportes, projetamo-nos, de forma inconsciente, naqueles nascidos para viver mais.

Sobre os desafios da cerimônia de abertura, a carnavalização se deu na medida certa (“tropical”, altissonante), sem botar a fantasia na frente do samba, sem botar o samba na frente dos esportes. Belo momento: a alma dos atletas estrangeiros jamais esquecerá o compacto corredor brasileiro feito de pandeiro, surdo, tamborim e o corpo dos nossos nunca esquecerá o momento em que o samba ecoou tão poderoso que é como se acabasse de eclodir (ou explodir) na natureza.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


19 - Você não existe

Na padaria, a primeira coisa que ouvi foi “Não existo, não existo, não existo!”. Duas horas depois, tornava-me amigo daquele que seria um dos personagens mais birutas de tudo.

- É fácil provar que você não é você! – Carlitos Chagas disse de cara, rindo. - E tudo isso que você vê não existe, é só ilusão.

Ainda eram dez da matina, pedi café-com-leite, pão com queijo derretido na chapa, e me pus a ouvir.

- O que julgamos ser é apenas nossa região mais rasa - lembrava Carlitos. - O problema é que nossa região mais profunda, desconhecida, é muito maior e mais poderosa, e nos condiciona. Ou seja, não temos autonomia, somos determinados por um desconhecido, não existimos.

Mais:

- Veja, ali na esquina, o posto de gasolina. Violeta, preto e marrom. Ao motorista ocasional, o posto abastece; ao artista plástico, as cores contrastam; ao dono do posto, o negócio dá lucro; ao fornecedor, a praça é boa; ao empregado, o posto é o lugar em que, talvez, já faça tudo mecanicamente. O posto, portanto, não existe, ou não existe fora de nós. Como, de resto, toda a realidade. O que chamamos de real não o é para a árvore, ou para a pedra, mas apenas ao homem. Como em nós torna-se sempre outra coisa (a “mesma” realidade é diferente em cada um) nada existe de fato, apenas as alegorias, os símbolos, as ansiedades, os valores que atribuímos. A realidade somos nós, nós que não sabemos quem somos.

- Mas há uma realidade em si - objetei, já virando o primeiro chope. - É impossível negar que existe uma espécie de zona neutra, chamada real, que aceitamos como confiável para todos, na qual acordamos, vamos ao cinema, trabalhamos.

- Será mesmo? - questionou Carlitos. - Será que o que chamamos de real é igual para todos, é, digamos assim, imparcial? Talvez o pior de nossa aparência nem seja o lado desconhecido, mais profundo, e sim a manipulação da fantasia, a mentira. Convivemos, sem saber, com gente que mata, estupra, tortura, conscientemente. Não é apenas nosso inconsciente. É o que disfarçamos, escondemos, fingimos, mentimos, enganamos, ludibriamos. Isso atinge todo o espaço, todos os objetos, o cotidiano.

E haja exemplo:

- Digamos que um operário sempre chegue ao trabalho e troque de roupa no banheiro. Em certa manhã, alguém diz, brincando, que pode haver uma cobra no banheiro. Colegas confirmam, e nosso operário desiste de entrar. Troca de roupa noutro lugar e passa o dia evitando o banheiro. Toma cuidado até ao chegar perto da porta. Aquele lugar, tão familiar, tornou-se ameaçador. E era apenas uma lorota de companheiros bem-humorados. Como confiar na realidade, se grande parte dela é fundada em inverdades semelhantes? E você já parou pra pensar que o ser humano só acredita no que quer? Não nos interessa a verdade, mas o pitoresco, o interessante, a fofoca.
Passei, claro, a encontrar Carlitos Chagas com regularidade, bebendo de sua mistura de clichês filosóficos, alguma idéia própria e bastante birutice. O pior é que sua crise de irrealidade se agravava. A cada mês, ele tinha uma aparência diferente. Disse-me que, se já não existia, podia ser qualquer coisa. Arranjou várias namoradas de uma semana, e não sabia se o queriam de fato ou estavam iludidas pelos personagens que representava. Que diferença fazia?

Numa bela tarde, Carlitos disse-me que um cientista o entrevistara por dias seguidos (fez uma anamnese) e o descreveu como o primeiro caso do que seria, de fato, um homem pós-moderno: aquele de identidade tão fragmentada que se sentia despersonalizado, e por isso desejava e mesmo acreditava ser tudo.

Quinta-feira passada, reencontrei Carlitos - seu modelito lembrava uma fantasia de carnaval - triste, arrasado mesmo. O que foi?

- A única coisa que eu tinha certeza de ser era o primeiro caso descrito do homo global. Pois não é que apareceu outro cientista, afirmando ter descrito, antes, caso semelhante, e com um personagem argentino?

Carlitos então abriu um sorrisão e saiu, vermelho de feliz, com ar descarado. A história do homo global era só outra viagem pesada.