segunda-feira, 26 de abril de 2010

LIVRO "DO REAL IMAGINADO"


fffffffRol de ímãs
fffffffffmanhãs
fffffffrolimãs do firmamento

água fremida,
fendida
ffffffffffffffffffffffffromãs
broto na estrela
ativa

fffffffnaturo
fffffffffffpalavra
fffffffrebento
fffffffffffviva

fffffffuniverso




interior

o rio corre em teu rosto
onde inda brilha o sol posto

o rio dorme em tua face
e cada estrela que nasce

banha-se a lua na rede
te acordo: tenho sede




Canção de noite

Tempo sem foz, o universo
palpitava, apenas,
para chegares:
entre os arbustos.

“Vai chover!”, disseste.

E eras o primeiro pingo,
lágrima alegre.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


61 - Improviso com tempo


Se o tempo fosse uma bola, eu teria oito anos e seria “gandula de estrelas”. Se fosse uma árvore, eu retornaria, com mil anos, para a beira do rio.

Se o tempo fosse uma cidade, eu compartilharia cevada e lúpulo. Se fosse o mar, eu incitaria um turbilhão de sereias.

Se o tempo fosse um poeta, eu quereria distância.

Se o tempo fosse tão somente a água, o mel não teria memória; se fosse vácuo, eu voltaria a voar.

Se o tempo fosse a mulher, eu investiria brusco e humilde; se fosse o filho, não haveria morte.

Se o tempo fosse um poeta – se o tempo fosse o Tempo - eu ficaria longe.

Se o tempo não fosse cego, eu seria um samurai; se não fosse neutro, eu seria pedra.

Se o tempo não fosse o homem, eu me converteria à obra; se não fosse em mim, eu desenterraria uma nova roda.

Se o tempo não fosse palavra, eu seria música; se não fosse o silêncio, eu não ouviria. Se o tempo não fosse o fim sem fim - se o tempo não fosse, simplesmente.

O cotidiano todo dia me vira a cara: se o tempo fosse, se o tempo não fosse, se fosse e não fosse, senão.

O tempo é o nada que é tudo e o tudo que é nada.

O tempo é o único deus de si mesmo.

Vou andar oitenta anos até entender o tempo.

Vou nadar oitenta anos até aceitar o tempo.

Vou vencer o tempo por um segundo.

Vou banir o tempo com a música; a música é a arte preferida do tempo.

O tempo é o único que é, no espaço; eu, sou e não sou; acima da linha do mar, fico da altura do tempo.

O tempo existe quando não existe; eu, penso. O tempo não pensa, logo, existe.

O tempo é o mais charmoso vilão de Quentin Tarantino.

O tempo até hoje lê o Sítio do Pica-pau Amarelo.

Escrevi quatro poemas sobre o tempo, que os ignorou.

Não vejo a hora de acertar as contas com o tempo.

O tempo detesta o domingo - a abrir e abrir as semanas fatigadas (que o contam), uma atrás da outra, portas num casarão infinito. (Se o tempo fosse o homem, sofreria até o não-fim.)

Dedico este domingo ao tempo.

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


60 - Água

Este relato se passa no ano cem mil e quatorze anos depois de Cristo, mas serviria melhor ao século XXI.

Por uma daquelas inexplicáveis circunstâncias da política, o futuro presidente do Universo Conhecido era Edward Lydon, escultor de apenas dezessete anos. No dia da posse, horas antes de discursar para dois trilhões de seres em duas galáxias, Edward apagou as luzes do quarto com um dispositivo cerebral (instalado em seu corpo cibernetizado) e entregou-se a um banho de vapores vertebrais: vapores perfumados, coloridos e de temperaturas variadas. O jovem ergueu-se do banho de olhos fechados e, sem acender as luzes, andou em direção ao pátio do enorme apartamento flutuante (como uma plataforma espacial). Quando chegou ao pátio, sentiu as luzes se acenderem sozinhas, abriu os olhos e viu, através do vidro, um corpo celeste produzir lá fora um clarão - Edward baixou a cabeça e teve uma visão, que se passava centenas e centenas de séculos antes: uma moça banhava-se em água corrente, num planeta que só podia ser a Terra.

Edward (ao contrário de quase 100% das pessoas) já fora à Terra e vira o rio Amazonas, ou o que restara dele, e assim pôde reconhecer o cenário da própria visão: o riozinho parecia canalizado diretamente nas gordas nuvens entrevistas sobre as copas das árvores; a água percorria a pequena cascata de pedras até chegar a uma grande rocha; ali formava um pequeno lago, que transbordava sobre a rocha e sobre a moça.

Edward sabia que era uma visão, não um sonho, e que não era um simples delírio, mas uma revelação.

Ele revia a imagem como um profeta, e sabia que o rio (o tempo) encharcava o corpo da moça sem arrastá-lo, minava a pedra sem dissolvê-la; de tal forma que as impregnava de uma substância eterna parecida com musgo. Assim (sem a mediação do tempo) a menina banhava em êxtase, e aquela água banha-a até hoje, e tal certeza ninguém tiraria de Edward. Mais: ao recordar depois a visão, o jovem sentiria algo que nunca vira ou experimentara, e não sabia de onde vinha, a não ser da ancestralidade que já durava cem mil anos: Edward compreendia o rio que banhava a moça como se ali passara a infância, e sentia até o limo frio que a água criava nas pedrinhas, ao roçá-las incessantemente pelo fundo.

Em menos de duas horas, Edward se tornaria o homem mais poderoso do Universo. No entanto, se comportava como o escultor. Arroubado pela juventude, ele fez então o que nem a política explicaria: discursou de improviso no evento mais importante do ano. Gastou longos minutos explicando o que era a água e os benefícios que, no passado, trazia ao corpo. Falou de como ainda hoje parte da angústia humana era provocada pelo desconhecimento da água (cujas funções no corpo foram substituídas por outras substâncias ou programações cibernetizadas). “Caso o ser humano volte a ingerir água regularmente, se curará da melancolia que atinge a espécie em tantos planetas...”, escandalizou Edward a todos.

Ora, caro leitor, Edward Lydon não seria um presidente de fachada. Era um jovem extraordinariamente dotado. Só se aceitou sua condição de herdeiro (até atingir a maioridade para o cargo, de 25 anos) porque todos o amavam. Mas aquele súbito elogio à água poderia ressuscitar um antigo e insensato projeto: reproduzir a natureza terrestre noutro planeta, infinitamente maior; e a um custo que poderia comprometer projetos com os quais já estavam comprometidos tantos parlamentares e governantes de países e planetas.

Após o discurso, Edward recolheu-se com familiares, amigos íntimos e membros do poder. Anunciou que só voltaria no dia seguinte à que já era a palavra mais falada do universo: água. A despeito do sufocante assédio de que era alvo, não demorou a isolar-se no quarto enorme - pensando em como encontrar a moça, a fonte, o sol, as árvores, o limo das pedrinhas no fundo do rio.


segunda-feira, 12 de abril de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


59 - Aparelhagem

O pai de Carlo, Genaro Miaggi, migrou do interior de São Paulo para o interior do Pará com espinhosa missão: superar uma desilusão amorosa, pela qual tentara matar um primo. Na Vila Concórdia, refez a vida: casou-se com Alda Kobayashi, inventou um sistema de manejo de gado (para terras sem água natural) e, em poucos anos, transformou leite em iogurte e montou o primeiro posto de gasolina. Carlo, filho único, cabelos claros e olhos castanhos e “puxados”, foi tristemente tímido na infância, mas melhorou na adolescência entre os carros no posto (às vezes como frentista) e aprendeu a dançar em festas populares. Aos 17 anos, veio morar, a contragosto, em Belém – o pai montou um equipado posto de serviços no Marco e parte da família transferiu-se para o bairro. Meses depois, o tio de Carlo que administrava os negócios na Concórdia acidentou-se, e o garoto foi enviado à cidade natal para ajudar. Em Concórdia, trabalhou duro no escritório, tratou com bancos e fornecedores e com os grandes clientes do posto. Um dia antes de voltar para Belém, compareceu a uma divulgada festa de aparelhagem. Na festa, típica daquele início de anos 80, Carlo conheceu Ana Carolina, que já o conhecia.

- Vi você no posto. Minha tia fala muito sobre sua família - disse Ana, apresentada por uma prima. - Nasci em Paragominas, mas moro há três anos em São Bernardo, interior de São Paulo.

(São Bernardo, de onde Genaro Miaggi migrara para a Vila Concórdia.)

Carlo e Ana Carolina logo começaram a dançar. Duas horas depois, saíram da festa, e se beijaram e beijaram embebidos por bilhões de estrelas. Ana estava não corada, mas brilhante, um brilho de dentro para fora, de tal forma que se afastou de Carlo e retornaram para o salão.

Dançaram outra vez de tudo, e se beijavam sob as luzes apagadas, e também sob as luzes acesas, Ana se recusava a voltar lá fora, para a privacidade estrelada, 'Celebration', Donna Summer, e ritmos caribenhos (a voz do Caribe, negra-marfim, era tão metalizada que se imantava: voz que saía das paredes sonoras da descomunal aparelhagem e se grudava - se atraía pelos ímãs - nos minérios em geral pelo salão). E foi o Caribe que grudou Ana e Carlo, mas não um ritmo quente, e sim uma balada: a balada mais linda que ouviriam.

O minuto que não se apagará no tempo - o que guardaremos na memória - é sempre a síntese de bilhões de minutos, situações, sonhos e sentimentos. Mas esse processo de circunstâncias precisa de um desfecho (fechar o ciclo) e, aí, elementos até bem fortuitos desempenham papéis extraordinários. A balada caribenha - metalizada, imantada, ritual - tornou-se inesquecível por três situações íntimas entre si: os beijos do casal adolescente; o fato de que, já de madrugada, o corpo precisara do auxílio do corpo para varar a noite, e eles receberam aquele respiro de adrenalina que nos redobra a energia e clarifica os sentidos (no caso, passaram a 'sentir' mais a música, o andamento, as belezas sutis); e, por fim, o suor.


Carlo e Ana Carolina estavam tão apaixonados que, até ali, é como se não tivessem se apercebido do suor: grudados, mas sem se importar, encharcados do próprio cheiro, sem se aperceber: durante a balada, tomaram consciência (sem uma só palavra) do suor a misturar-lhes, a uni-los para além do corpo e do acaso, e, eu diria, tiveram não consciência, mas uma iluminação - compreensão tácita entre si, sem palavras - dos próprios cheiros a defluí-los no vento, eternizando-os, aquele suor tão íntimo quanto um toque, e esse esfregar-se, empapar-se mútuos sem nojo, sem refluxos (ao contrário, cheiravam-se como a esbanjar-se) tornou-se tanto mais memorável por outra providencial iluminação e, quando a balada caribenha deu vez a outra, Carlo e Ana, sem palavras, fugiram da festa para o turbilhão de estrelas.

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


58 - Açaizeiros

A Amazônia é a maior mãe da natureza e penso, agradavelmente, que nós, paraenses, somos seus filhos preferidos. O mesmo devem sentir os açaizeiros.


Estamos num quintal em Mosqueiro, serão 18 horas; noto que uma touceira de açaizeiros disputa espaço com uma mangueira. A mangueira, enraizada, projeta e espalha os galhos, e sombreia várias pequenas palmeiras na disputa pelo sol. Acima da copa da mangueira, porém, balança um açaizeiro que cresceu mais do que os irmãos, e atravessou os galhos e a fronde. As folhas deste açaizeiro-primôgenito, mais verdes que as dos irmãos, atestam a inteligência de sobrevivência da touceira, que concentrou numa árvore o melhor de suas raízes, fincadas em feixes envolvendo raízes de outras espécies. Do jeito que, na vida, disputamos espaços e outros objetivos, e quanto maior o triunfo, maior o verdor.

Veja, no quintal ao lado (em Mosqueiro, os terrenos são quintas) exibem-se outras touceiras de açaizeiros. Duas, a uns quinze metros uma da outra, parecem rivais. Dir-se-ia que adotaram estilos diferentes para competir em altura: enquanto a maior árvore da touceira à direita tem igualmente o tronco mais grosso, consistente sobre as irmãs, a maior da touceira à esquerda é, digamos assim, um palito. As folhas das altas rivais têm quase a mesma tonalidade/intensidade (as da que tem o caule mais consistente são mais intensas, puxando ao musgo). Ambas as palmeiras estão entre as mais altas entre todos os quintais e, como se enxerga, o vento está forte, quase friorento. E nossas duas rivais balançam, não, bailam, em gestual.

O açaizeiro é um dos traços mais lindos da natureza. Mão de artista o desenhou num único movimento (tenho a impressão impossível de que foi de cima pra baixo) com lápis de ponta fina. Aquelas raízes em feixe, cada vez mais fincadas, erguendo-se em contraponto, mais alto, mais alto, e tanto mais alto o açaizeiro, mais parece feito de uma só ondulação com o lápis.

No ar, as raízes viram folhas e cachos, e à medida que estes caem, o tronco alteia-se em nódulos de fibra, que se projetam em novos nós, sempre para o alto, como se o tempo, quanto mais tentasse abatê-lo, mais lhe prolongasse a elegância.

Muitas árvores se protegem do vento com grandes raízes; enfrentam-no, fincadas como braçadas de clorofila. O açaizeiro relaciona-se com o vento sendo esguio. O vento não se choca contra ele, e sim parece atravessá-lo, ou melhor, quase não o toca. E assim desenvolveram ambos tal bailado: o esguio das palmeiras é vergado a partir das pequenas copas (como se o vento as puxasse pela cabeleira) para um lado e outro, e às vezes a linha ondulada do caule verga-se tanto que parece obedecer a forças opostas, apontando para lados diferentes, e é evidente o prazer comum que sentem, árvore e vento, de tal forma que o friozinho que nos acalenta se prolonga por horas: mais do que química, rola uma física nessa noite de sábado, e é como se hoje estivesse tão perfeito que árvore e vento ultrapassassem os próprios limites, e agora a cintura da palmeira está a ponto de partir-se, e lhe podemos até adivinhar-se na ponta das sapatilhas, digo, das raízes e outras terminações nervosas.

O paraense é bom de dança, sabemos, de tal forma que, em qualquer periferia ou interior, os casais girando parecem pré-selecionados num concurso. Mas tirar o vento para dançar, ou aceitar-lhe o convite, de forma que o estar das folhas seja como o estar da dança, e não o contrário, é um capricho e tanto da Amazônia. Pensar que tal palmeira ainda dá o açaí...

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57 - Cenas paraenses

A pata grotesca

Isopor em aeroporto é sinal de paraense. Se a pessoa chega de Santarém, não há dúvida: traz comida, pronta com o tempero da avó, ou por fazer, em forma de peixe ou pato. Ou de tartaruga.

Vôo de Santarém, e os passageiros gargalhavam ao recolher a bagagem na esteira rolante.
Até que só restou um grande isopor, girando, abandonado pelo dono com medo do Ibama.
Motivo: uma tartaruga, a despeito de cuidadosamente amarrada, libertara a potente pata dianteira direita e com ela furara o isopor.
A PF vigiando, a esteira rolando e aquela pata pra fora, a acenar.


Só excomungando

Aquele jornalista chegou ao apartamento de manhã, bêbado e sedento. Não tinha água. Nem na torneira. Dormiu atormentado, e acordou à beira da desidratação. Sem uma gota dágua.

Numa decisão de vida ou morte, resolveu lamber a parede do congelador da geladeira vazia. E a língua grudou.

Foi pior que dormir na sarjeta: a língua grudada, o telefone longe, o interfone perto, mas fora do alcance, a língua queimando e o risco de, ao se mexer muito, perder a ponta do ressecado músculo.

Alcançou, por meio de contorções indescritíveis, uma enorme chave de fenda, com a qual agrediu o congelador, salvando a língua, mas perfurando o plástico: o ressaibo ardido e pressuroso do gás a vazar.


No interior

O cumprimento é sagrado nas veredas interioranas. Por mais que não se conheça a pessoa, diz-se 'Bom dia!', 'Boa tarde!', ou simplesmente 'Ooooi!'. Este 'Ooooi!' é destinado, inclusive, àqueles a quem não se enxerga. Se, por exemplo, ouvimos vozes ou o trotar de um cavalo, longe, dizemos 'Ooooi!' e recebemos de volta o cumprimento. Um gesto automático, cultural.

Cultural também (sobretudo seis décadas atrás) era a caça para a alimentação da família. E os ribeirinhos garantem: sempre foi quase impossível abater um maguari.

Seu Renato tentava há anos levar um maguari para o jantar, mas sempre falhava: o pássaro, arisco e esperto, nunca se deixara surpreender.

Num belo entardecer às imediações de Alter-do-Chão, seu Renato vinha com dois filhos, quando enxergou à distância, na copa de uma árvore, uma turma de maguaris. Aproximou-se sorrateiramente com um dos filhos, Zezinho. Parecia um milagre: estavam já sob a árvore, e nenhuma ave voara. Seu Renato estremeceu de alegria quando firmou a mira. No segundo em que ia puxar o gatilho, ouviu-se baixinho, quilômetros distante, o cumprimento: “ooooi!”. E Zezinho, automático: “OOOOOOII!!”, espantando a passarada.


Poraquê

Na palafita, o jovem pulou da cozinha para a água enlameada do quintal, na tentativa de aparar um papagaio que chinava. Na água, pegou um cano de ferro para enrolar na rabiola - e foi parar no hospital.

Levou uma descarga de centenas de voltts: de um peixe elétrico que morava no cano de ferro, embaixo da palafita: à espera de se restabelecer o contato das águas do quintal com as do rio Tucunduba, ali no Guamá.


O veneno da bacurinha

Um jornalista boêmio senta-se ao lado de outro, no Cosanostra. E espanta-se.

- Caramba! Vieste da guerra, da Transamazônica, de Woodstock? Maluco, tu tá pior que o bagaço da laranja!

O outro permanece calado, baixa a cabeça diante do copo de uísque e retorna à divina comédia de pecados.

Minutos depois, intrigado, o amigo indaga:

- Afinal, o que diabos te aconteceu?

O moribundo busca no fundo do ser todas as forças, puxa o ar para fazer chegar à boca a débil fala, e responde como se lhe fora a última frase:

- Bu-buceta!

Foi instantaneamente deixado em paz.