sábado, 2 de junho de 2012

A garota do adeus





Faltavam sete minutos para as cinco da tarde. Thomas poderia simplesmente sair, divagar pela rua, retardar o passo, caso necessário, até o encontro, às seis e meia. Mas deliberara sair às cinco horas, e isso parecia aprisioná-lo no quarto do hotel. Sempre fora assim: metódico, lento, consciencioso, “chato”, maníaco. Sentou-se na cama, abriu a cortina e olhou através da vidraça: carros no estacionamento, movimento intenso na rodovia à frente, funcionário do hotel com uma mangueira no jardim. Thomas voltou a percorrer ansioso o quarto, lavou outra vez as mãos e outra vez olhou-se no espelho, repetindo o gesto de passar a mão pelos cabelos curtos, perfeitamente penteados.

Cinco horas. Thomas desligou o ar-condicionado, abriu a jaqueta e saiu. No lobby do Itacaiúnas, tirou a mão direita do bolso da jaqueta e acenou para os dois atendentes. Recusou com a cabeça o oferecimento para um táxi. Ganhou a rua devagar, como indeciso, a cabeça baixa.

Desceu pela via à esquerda da avenida VP8, contra os carros, o sol de claridade ainda intensa, mas de temperatura amena. Thomas fechou a jaqueta, como se o frio aumentasse. O encontro aguçava-lhe de tal forma a ansiedade que suava gelado.

Avançou com a cabeça sempre baixa, a evitar os olhares das poucas pessoas que vinham. Em certo ponto, à margem, uma cavidade com grama reduzia o espaço entre o meio-fio e a passagem dos pedestres. Thomas parou, olhou à frente, vinha uma moça de uns dezenove anos, como ele. Aguardou, com a cabeça erguida, ela passar, e notou-lhe a surpresa ao fitá-lo – ela hesitou, baixou a cabeça e prosseguiu. Ele então avançou, constrangido – a moça por certo estranhara sua palidez extraordinária, que produzia um constante ar de doença, e havia ainda a jaqueta para frio, sob o sol e o clima seco de Marabá.

A primeira imagem que Thomas Uchoa Azevedo tinha de si mesmo lhe fora apenas narrada pela mãe ... pela tia... pela tiamãe, na verdade: ao lhe rasgarem levemente o pé para o teste do pezinho, o sangue raiou e sua mãe biológica chorou de alegria, de forma inexplicável: chorava,  chorava, abraçava a todos chorando, nitidamente de alegria, aliviada por algo que os outros desconheciam. Alguns dias depois, quando saiu o resultado tranquilizador do exame, simplesmente entregou o bebê à irmã, em Belém, o rosto triste como se fosse morrer a qualquer momento, e foi-se embora, sem nada falar, sem justificar - entregou o filho à irmã e desapareceu.

Criado pela tia – mamãe, mamãe – mãe - sempre melancólico, como se soubera sempre não ser filho verdadeiro, arredio como se sempre sentira que o padrasto não era seu pai, que, por mais que todos se esforçassem, sua origem não estava ali, como se pressentisse que havia um destino e por trás desse destino um segredo mortificante.

Quando Thomas tinha cinco anos, na volta da escola, já na entrada do prédio onde morava, uma mulher aproximou-se em silêncio, “Não, não, não!”, ouviu a mãe gritar, “Sim, Natália, e, por favor, não tente evitar”, a mulher falou, enérgica, “Mas, mas - o que você tá fazendo aqui?”, a mãe indagou, “Vim me despedir”, a mulher falou, “Escuta, Rosana”, a mãe tentou reagir, “Não adianta, Natália: vamos subir! Tenho apenas alguns minutos!”. Subiram. Em silêncio. No apartamento, Natália ainda tentou que Thomas aguardasse no quarto, mas a mulher, Rosana, foi inapelável: “Thomas, você é meu filho! Você é meu filho, entendeu?!”. Rosana!”, Natália ainda gritou, mas viu que era inútil, calou-se, resignada, “Thomas”, disse à criança, “Essa é minha irmã, Rosana”, “Sou sua mãe! Vim aqui apenas te dizer isso. Sou sua mãe!”, repetiu a mulher. “Quando você crescer, se quiser saber mais sobre sua vida, vá a uma cidade chamada Marabá”, “Rosana, não, o que você...”, Natália gritou avançando contra a irmã, “Em Marabá, tem um lugar chamado Diamante Negro – se algum dia você quiser saber mais sobre sua vida, vá a esse lugar!”. Então Rosana abraçou apertado o menino atordoado, beijou-o muito, abraçou-o de novo, e, sem ouvir-lhe uma só palavra, correu para a porta e saiu do apartamento como se não tivesse um minuto a perder. E não tinha. Quase quinze anos depois, Thomas saberia que a mulher, Rosana, sua mãe biológica, morrera de infarto dali a minutos, na saída do prédio.

Depois daquele dia, o menino ficou ainda mais arredio, e por meses fez à mãe, todo dia, perguntas que ela não sabia responder, ou não queria, ou não podia. Aos poucos, foi esquecendo, mas seguiu sempre triste e solitário, com raros amigos, e sem demonstrar maior intimidade nem mesmo com os pais ou parentes próximos. E começou a se intensificar nele uma palidez mortiça, veemente, nunca explicada pelos médicos, que sempre negaram o diagnóstico de anemia. E Thomas passou a sentir frio – às vezes em pleno sol, na praia, queixava-se de frio, batia mesmo o queixo, chorando, desamparado, e a mãe só pensava que era algum trauma, alguma indução psicológica, mas nenhum psicólogo ajudou de fato o garoto a superar a solidão e os hábitos estranhos e arredios.

Thomas também nunca suava – podia andar, nadar, correr, pegar sol - nunca suava. Ou, sim – suava, levemente, como se tivesse o rosto coberto por fina e gelada camada de óleo, mas apenas de frio – nunca por exercícios físicos ou quentura. Suava de frio, e muitas vezes, nesses momentos, chorava em silêncio e lutava para ficar sozinho, onde estivesse.

Com o passar dos anos, Thomas conquistou uma rotina que a tiamãe sabia ser sofrida, mas sem queixas – estudava durante quase todo o dia, via muitos filmes, em casa e no cinema, nas raras vezes em que saía de casa para o lazer, não tinha um só amigo mais cativo ou assíduo, e não falava mais da mãe biológica. No dia em que completou dezenove anos, um mês atrás, Natália confirmou-lhe que Rosana não desaparecera, estava morta: morrera minutos depois daquela aparição e da despedida atribulada no apartamento. Dois dias depois, o rapaz comunicou à mãe adotiva que iria a Marabá, encontrar um lugar chamado Diamante Negro.

Mãos nos bolso da jaqueta, zipada até o pescoço, Thomas se encaminhava calmamente para o Diamante Negro. No dia anterior, após falar por telefone com a dona, Marly, aproveitou e passou pertinho, para não ter surpresas. Já bastava o choque de saber o que era o Diamante Negro e, a partir disso, a perspectiva sombria do que o aguardava a respeito da mãe.

Após tomar a decisão de ir a Marabá, Thomas recolheu, no apartamento, todas as fotos da mãe biológica, fez reserva no Itacaiúnas por telefone e leu na internet vários textos sobre Marabá. A cidade, 250 mil habitantes, no sudeste do Pará, ficava no centro de Carajás, a maior reserva planetária de minério de ferro de alta qualidade. A cidade viveu sempre de acentuados ciclos econômicos – caucho (borracha), diamantes, castanha-do-pará, ouro, ferro, pecuária, ferro-gusa e, às vésperas de festejar o centenário, em 2013, se preparava para industrializar aço. Os ciclos trouxeram e levaram migrantes de todos os Estados, aventureiros, grileiros, chegavam e partiam sem maiores raízes. Mas, aos poucos, Marabá moldava sua face, muitos maranhenses, goianos, tocantinenses, foram ficando, se assentando, e os estudiosos concluíam que, finalmente, a cidade de fato não apenas misturava migrantes, mas os fundia, os amalgamava, os convertia numa cara própria. E qual era essa cara, Thomas se perguntava, andando pela cidade que contrastava a riqueza ostensiva de uns com os aspectos interioranos e provincianos da maioria; a música sertaneja de baixa qualidade parecia onipresente, todos os recantos, todos os bairros; na Praia do Tucunaré, quatro meses ao ano (nos demais, a areia era toda coberta pelas águas do Tocantins), grassava o tecnobrega de Belém, que Thomas também não suportava, mas que, ao menos, rendia o espetáculo dos casais dançando lindamente, improvisos sensuais, quase que diretamente sexuais.

Foi no Tucunaré (a praia ficava em frente à orla da cidade, depois da travessia do rio) , num domingo, cinco dias após chegar a Marabá, que Thomas teve uma experiência “incomodativa”, que ficou a relembrar: numa mesa em frente à sua (ali havia a peculiaridade de todas as cadeiras ficarem não na areia, mas dentro da água, submergidas, e os clientes, de certa forma, bebiam, comiam e tomavam banho ao mesmo tempo) um grupo de jovens se divertia de forma ruidosa e “indecorosa”. Mostravam-se as línguas, pegavam na bunda uns dos outros, e Thomas logo descobriu que as mulheres eram prostitutas. O que o marcou foi uma espécie de beijo, não, não era um beijo, era algo... inominável: um rapaz, moreno, e uma moça, morena e índia, de olhos verdes – os dois ficaram mostrando as línguas um para o outro, de longe, a uns dois metros, e a língua da moça era muito grande, para fora, balançando, e ela conseguia mexer apenas a pontinha da língua, como uma cobra, muito rápido – depois de recolher a língua, a moça se sentou, e ficou vários minutos calada, alheia, melancólica, de repente, alheia, quieta. Aí saíram, para outra barraca, distante, e Thomas ficou a lembrar aquela brincadeira, as línguas de fora, movendo-se rápidas, sexualmente grotescas, agressivas, um despudor claramente desafiante, para chocar.

Naquele domingo, ao voltar da praia, Thomas finalmente teve coragem de descobrir o que era o Diamante Negro, “não é coisa boa, meu filho”, avisara Natália, “você vai ficar muito mais infeliz, e temo inclusive pelo que possa acontecer com você”. Para o rapaz, Diamante Negro era apenas o nome de um chocolate, e de uma descomunal “aparelhagem” sonora, de Belém. O taxista que o levava ao Itacaiúnas apenas sorriu e respondeu em tom jocoso: “É um cabaré! O melhor aqui de Marabá. Você vai gostar de lá!”. Thomas não escondeu o choque, o coração disparou, sentiu-se tão pálido que quase sucumbiu à fraqueza, invadido por uma vertigem de desmaio. O motorista não percebeu: “Sou amigo da Marly, a dona de lá – nos conhecemos há mais de vinte anos, de Açailândia, uma cidade ali do Maranhão...”. Um cabaré! Então, sua mãe... sua mãe... Um turbilhão de ideias indefinidas percorria a cabeça e o sangue de Thomas, que não se fixava em nada, fugindo ao maior temor: sua mãe... seria uma prostituta?

Desceu atordoado em frente ao hotel, “Está aqui o meu cartão”, o taxista ofereceu, “Precisando...”. “Você pode me dar o telefone da... da... sua amiga?”, “Ah, a Marly, do Diamante... Vou te dar, garoto, mas olha o que você vai fazer. Qualquer coisa, me liga, eu te levo lá!”.

Thomas quase não dormiu à noite, com sonhos sufocantes, e na segunda-feira ficou o dia inteiro trancado no quarto do hotel. Outra vez quase não dormiu e na terça-feira, resoluto, ligou logo cedo para a Marly. Ela não atendeu ao celular, o que aumentou a ansiedade dele. Ligou para ela a cada cinco minutos, já irritado, quase desequilibrado, até que ela atendeu, pouco depois do meio-dia. “Quem diabo é que tá me ligando tanto, hein?”, perguntou irritada, sem ao menos ouvir a voz dele, “Tem umas trinta ligações...”, “Meu nome é Thomas. Sou filho da Rosana. Você sabe, a Rosana. Há uns vinte anos, vocês se conheciam...”. Silêncio. “Alô”, Thomas falou, ansioso, “Alô!”. “Oi”, Marly respondeu, baixo. “Olha... Thomas, é isso?”, “Sim!”. “Pois bem, Thomas... a Rosana. Eu não sabia que ela tinha tido um filho... Sua mãe, ela”, “Está morta”, Thomas disse, seco; “Morreu há muitos anos... do coração...”. Marly continuou em silêncio. “Preciso falar com você”, Thomas avisou, “Preciso saber tudo de minha mãe... De mim. Preciso que me fale tudo o que sabe, entendeu?”. Marly continuou em silêncio. “Posso ir aí agora?”, Thomas pressionou, e Marly respondeu rápido, como por reflexo, “Não! Quer dizer, não, agora não... hoje não! Virão algumas pessoas aqui, à tarde... Bem... Amanhã, meu filho. Venha amanhã, às seis e meia... da noite. Amanhã a gente conversa...”.

Thomas primeiro teve uma sensação de alívio, quase que de libertação, por estar tão perto da verdade, de uma verdade, de algo que sabia grave e misterioso, mas que não tinha ideia do que era. Deitava-se, levantava-se, lavava as mãos, mirava-se no espelho, deitava-se, levantava-se, andava pelo quarto, evitando especulações, o que seria, evitava, evitava, pai, pai, sabia que a conversa com Marly teria a ver com o homem que era seu pai, que ele nunca conhecera e sobre o qual não sabia nada, nada, como se o homem não existira.

Às três da tarde, Thomas decidiu sair, andou, andou, até a orla, a uns oito quilômetros do hotel, sentou-se no Predileto, bar no Cabelo Seco, bairro onde Marabá surgira, na confluência dos rios Itacaiúnas e Tocantins. Pediu água, depois refrigerante, e por fim uma isca de peixe, e logo pediu um peixe completo, e o devorou com um apetite que não se lembrava de já ter sentido. Passeou na orla, viu pássaros, canoeiros, estudantes que atravessavam para a Praia do Tucunaré, do outro lado do Tocantins, foi e voltou ao longo da orla, anoitecia, os estudantes voltavam da praia, a travessia em pequenas rabetas pilotadas por meninos de doze anos, um bar tinha música ao vivo, o Chaplin, Thomas sentou-se e bebeu água, água, pediu um sanduíche que não comeu todo, evitava pensar na mãe, no pai, em Marly, no Diamante Negro.

Umas dez da noite, no táxi para o hotel, teve consciência do quanto seria longa a noite e o dia seguinte, até o encontro com Marly, e quase cedeu ao impulso de descer do táxi, andar, andar na noite, mas permaneceu imóvel, tão quieto que jamais alguém pensaria que era sacudido por bruscas e violentas especulações, absurdos que lhe vinham contra a vontade e se iam à toa, de nada adiantava especular, perguntar, de nada adiantava, não adiantava...

Na VP8, à frente, um grande movimento de carros, e as luzes girantes de duas viaturas da Polícia Militar. “O que houve?”, indagou ao motorista do táxi, “Nada, é apenas uma festa – quase todo dia tem festa ali, no Voo Livre”. Thomas decidiu descer, muita gente no bar, show de música ao vivo, uma dupla sertaneja, o sertanejo que ele não suportava, e que tocava, sim, em todos os minutos em todos os cantos da cidade.

Havia tanta gente que não se podia andar direito nem ao entorno do bar, jovens, jovens, as meninas muito sensuais, com roupas de brilho, as barrigas de fora, piercings nos umbigos, dançavam de forma escandalosa, mesmo sozinhas, baixavam os quadris, baixavam, baixavam, remexiam como se estivessem transando, isso mesmo, e, já perto do chão, faziam movimentos sexuais, como se cavalgassem parceiros imaginários, depois subiam, subiam, sem o menor pudor, a menor vergonha - só uma vez, em Belém, numa festa de aparelhagem (a aparelhagem Diamante Negro), Thomas vira tais cenas, como é que essas meninas podiam dançar assim, como se transassem no meio de todo mundo...

Thomas acabou envolvido pela euforia da música, da dança, da sensualidade, recusou o balde com seis cervejas vendido por garçons itinerantes, foi ao balcão, pediu um “ice” de kiwi, era a primeira vez em dois anos que beberia álcool, primeiro aos golinhos, como se apenas quisesse provar, logo um pouco mais, um pouco mais, sentia calor no rosto, olhava as meninas de frente, a cabeça erguida, uma especialmente lhe chamou a atenção, a calça apertada, moça branca de cabelos pretos, muito branca, os cabelos muito pretos, dançava só, até embaixo, requebrava, sorridente, notou que Thomas não lhe tirava os olhos, passou a dançar para ele, requebrar para ele, o garoto fitava-lhe diretamente os quadris, as pernas abertas, baixa, baixa, sobe, só faltava gemer, aí uma amiga puxou-a pela mão para irem ao banheiro, ao passar por Thomas, a garota abraçou-o levemente, brincalhona, obrigou-o a dar um giro desajeitado de dança e lhe aplicou um selinho na boca, sim, na boca, e se afastou zombeteira com a amiga, Thomas sentiu-se corar, isso mesmo, ficou tão desnorteado que quase deixou cair a garrafinha vazia de “ice”, foi ao balcão, comprou outra, bebeu, circulou, bebeu, circulou, não teve coragem de se aproximar da garota que o beijara, sentia-se afogueado, frenético, e, súbito, decidiu ir para o hotel: não tinha táxi, aceitou a oferta de um mototaxista e logo estava no Itacaiúnas, onde se masturbou de pronto, deitado na cama com os olhos vidrados no teto; banhou-se sem nojo, esfregou-se muito, deitou-se na cama outra vez com os olhos no teto - lembrava das meninas dançando, como as coxas dos parceiros entre as próprias coxas, em pé, requebrando-se naturalmente, e o selinho, a menina que o beijara de relance, e logo de novo se masturbou, desta vez com mais calma, os olhos fechados.

Quinze para as seis. Thomas chegou à rotatória que ia dar na rodoviária, dobrou para o lado oposto, estava a dois quilômetros do Diamante Negro. Tinha tempo. Diminuiu o passo, tirou as mãos dos bolsos da jaqueta, para aparentar naturalidade, o trânsito cada vez mais intenso, muitos carros, muitos carros de luxo, muitas caminhonetes, muitas, muitas, e dezenas, centenas de mototaxistas. Chegou ao final da rua, outra rotatória, um posto de gasolina – faltavam 25 minutos. Entrou no posto, comprou uma água, passou a mão direita no rosto, nem sinal de suor, o frio passara, o que sentia era uma ansiedade desabrida que lhe impunha um vazio tão grande no estômago que tinha ímpetos de apertar a própria barriga.

O Diamante Negro não tinha placa, apenas um muro de uns vinte metros, da cor de chocolate. Bateu na porta de metal. Uma mulher morena, muito morena, de olhos saltados, lábios grossos, arroxeados, abriu imediatamente a porta, e não escondeu a surpresa ao ver o rosto do rapaz - desistiu do que ia dizer, estupefata, baixou os braços e apenas falou “Entre!”. Não precisou dizer que era a Marly, não estendeu a mão, desviou os olhos do rosto dele e andou à frente, calmamente, seguida pelo rapaz que outra vez tinha as mãos nos bolsos da Jaqueta, aberta.

Umas seis mesas, sem toalhas, cada uma com quatro cadeiras, distribuídas naquela área, metade coberta por um puxado de telhas com as vigas de madeira preta à mostra. O salão do bar era lá para dentro. Deduzia-se que havia vários quartos na construção. Um muro separava a área de um pequeno terreno com árvores e pés de bananeiras, entrevistos por uma grande grade de ferro, com cadeado. Sentaram-se, um em frente ao outro. “Você deve ter... dezenove?”,  Marly perguntou e afirmou ao mesmo tempo; Thomas apenas confirmou com a cabeça. “Você mora em Belém?”, mas o rapaz interrompeu-a, brusco: “Quero que me conte tudo sobre minha mãe. Tudo, tudo! Não esconda nada!”.

Marly ficou um pouco em silêncio, levantou-se e entrou no salão, usava uma bermuda jeans e uma blusa floreada de decote arredondado, o que lhe reforçava a aparência “gordinha”; voltou com uma cerveja e apenas um copo. Encheu o copo, bebeu um gole, para experimentar o sabor, depois bebeu um gole maior, e pousou o copo sobre a mesa. Começou a falar, pausada, ainda hesitante, como a encontrar o tom, e na certeza de que não seria interrompida.

“Sua mãe... a Rosana... Ela... tinha vinte e dois anos, quando apareceu aqui. Veio de Parauapebas, indicada por amiga, a Cris, que já tinha trabalhado aqui... por algumas semanas. Lembro bem de quando a vi pela primeira vez – era linda! Linda! Você não tem ideia. Muito branca, os cabelos muito negros, compridos. Era alta, cheia, sabe, do tipo que os homens acham... gostosa, é isso: era muito linda, e muito gostosa, o sorriso lindo, dentes muito brancos, uma pele maravilhosa. Elegante, roupas boas. Via-se que era menina rica, ou que sempre tinha sido bem cuidada, era até de se perguntar porque estava aqui, sabe, nessa profissão... Logo, ela tinha conquistado todas nós. As outras meninas, em vez de inveja, ou competição, adoravam ela, ficavam admirando... E ela... bem, era muito importante para a casa. Não recusava nenhum tipo de cliente. Podia ser feio, bonito, negro, branco, jovem, velho. Às vezes, mesmo em passeios, atendia ao telefone e vinha pra cá, ficar com algum cliente... Ficava com todos, e tratava todos muito bem. E também tinha um hábito – às vezes, os homens por aqui, sabe, e ela simplesmente aparecia nua... andava nua, na frente de todos, linda, tão linda que tudo parava, tudo silenciava, parecia que até a música da jukebox parava. Fazia aquilo para agradar, para... ela queria fazer os homens felizes, sabe? Muitos deles, carentes, longe de casa. Também logo descobrimos que ela gostava de PMs. De policiais. Ficava com eles, de madrugada. Até que se envolveu com um, o Edilson... Um sargento, cara péssimo, sabe, se vangloriava de espancar bandidos, de já ter matado vários... E ele humilhava ela. Ela dizia que estava apaixonada, e ele se prevalecia. Humilhava, falava coisas desagradáveis. Uma vez, aqui, na frente de todo mundo, ele recebeu um telefonema, de outro PM, e disse, se vangloriando, pra todo mundo ouvir: “Estou aqui na Rosana. É. Espera sentado, que vou já largar minha mulher pra ficar com ela. É, vou ser o caixa dela!”. Sabe, um sujeito feio, bruto, dizer isso de uma mulher linda, maravilhosa. E o mais surpreendente: uma dia ela me disse que não gostava dele. Que não era apaixonada coisa nenhuma. E por que fica com ele, perguntei. Por que deixa ele te humilhar? Porque ele é sozinho, tem medo, respondeu. Como? Ele é só. Muito só. Tem muito medo. Você acredita, Thomas...? Outra coisa que ela me disse, que me surpreendeu, que me deixou estarrecida... disse que nunca tinha... tido um orgasmo. Isso mesmo. Falou que transava desde os quinze anos. E nunca, nunca tinha tido um orgasmo....”. Marly parou um pouco, bebeu um pequeno gole da cerveja, tirou um cigarro da carteira, mas desistiu de acender. Com o cigarro entre os dedos, os olhos de soslaio sobre o garoto, voltou a falar. “Um dia... Era cedo ainda, umas oito da noite. Tava quase vazio aqui – quase nada mudou por aqui... Apenas essa jukebox era outra, sem a tela de vídeo... Alguém bateu no portão... Eu mesma fui abrir. Ao ver quem era, eu quase desmaio. Como aquele cabra, aquela lacraia... aquele homem tinha a coragem de voltar aqui... O nome dele era Armando. Pistoleiro, conhecido em Marabá, Parauapebas, Maranhão. Ameaçado de morte, procurado pela polícia. Um sujeito famoso pela crueldade. Você não imagina as histórias sobre ele... Vinha acompanhado de mais dois homens. Entraram os três, sem falar nada. Olharam em volta, tinha apenas duas meninas, as duas que moravam aqui mesmo, na casa... A Rosana e a Fernanda, a Fernandinha... Quando o Armando viu a Rosana... Quando ela o viu... Ficaram se olhando, sabe, como se tivessem descoberto uma coisa muito importante, uma coisa esperada a vida toda... Foram para o quarto, imediatamente, sem dizer uma palavra um ao outro, sem nem ao menos se cumprimentarem. Os dois homens ficaram aqui, vigiando. De vez em quando, um olhava por trás daquela janelinha, para a rua. O tempo passou, mais de uma hora, e não se ouvia nada, e nem os dois saíam do quarto. De repente, começamos a ouvir gritos no quarto, gritos e gemidos. Os homens ainda correram, a Fernandinha se levantou da mesa, onde estava conversando com outro cliente, que tinha chegado... Eu parei a caminho do quarto. Entendi que os gritos da Rosana... não era violência, não era perigo... Ela estava goz... tendo um orgasmo. Gritava, gritava, você não tem ideia da altura, eram gritos mesmo, gritos gemidos, muito altos, ninguém nunca tinha ouvido aquilo... meia-hora depois, os dois saíram do quarto... Ele na frente, ela atrás, sorrindo. Ele estava extremamente pálido, o bigode fino encravado num sorriso insinuado no rosto magro, o corpo muito magro, pequeno, com a camisa um pouco aberta... Thomas... Naquele momento, só ouvimos um grande estrondo nesse portão aqui, da garagem... um grande estrondo, o portão se abriu todo, e os policiais foram logo atirando, não queriam nem saber... O Armando nem teve tempo de reagir, ou não quis... levou mais de dez tiros. Os outros dois homens também foram mortos... Um horror... Mas o horror maior estava por vir... Quando fomos ver o corpo do Armando... Foram mais de dez tiros... E não tinha uma só gota de sangue. Você entendeu? Nem uma gota de sangue, seu pai... ele simplesmente não tinha sangue no corpo. Você... Como pode ser isso...?”.

Thomas levantou-se, atordoado, caminhou desorientado em volta da mesa, voltou sobre o mesmo passo, de costas, vermelho, muito vermelho, “Você... desculpa...”, disse Marly, “Você tem o rosto muito parecido com o dele... apenas você é muito mais alto...”. Thomas sentiu-se tonto, sentou-se apoiado na mesa, vermelho, vermelho, “Meu Deus!”, gritou Marly, “Você está sangrando!”, e procurou ampará-lo, Thomas sangrava, porejava sangue, pelos braços, pelas faces, não apenas vermelho, suava sangue, minúsculas gotas vermelhas, “Um médico, chame um médico!”, gritou para Marly, ela se desesperou, ergueu-se com o celular na mão, “Não, um carro, vamos no seu carro – para um hospital!”, Thomas conseguiu dizer, antes de desmaiar sobre a mesa, o rosto assustado e com um breve sorriso.