quinta-feira, 29 de março de 2012

DNA (o nascimento da linguagem)


Transcorrer. Simultaneidades. Unicidades. Essas são as palavras, as mais definidoras, não os códigos, mas as sínteses. Os amálgamas. Galateia. A “Cidade-lenda”, “Cidade-game”, “Vertigo-city”. Galateia, ninho de circuitos cavado no deserto, o maior buraco produzido pelo homem e, nele, a maior cidade construída de uma só tacada, como por magia. Fernand olha para baixo, luzes sem fim, animações, “materializações” de cenas, milhões de naves. Desde o “incidente”, não se conecta à Grande Rede, não “transcorre” ligado a uma máquina, nem mesmo mediado por robô. A única vez que passou em frente à sede do Marlaio’s Lab ficou tão impressionado que parou, admirado diante do prédio em forma de águia, o bico perfurando o céu, um dos símbolos de Galateia. Agora adentrará a águia, se confinará em suas entranhas tão comentadas no planeta, experiências malditas, “o fim do homem”, “DNAs do Demônio”. Ao longe, o bico da águia, descomunal, desponta como se fosse absorver toda a substância do céu rasgado, as vísceras de toda a luz do universo esventrado, ferido até a morte. “E, no entanto, basta um gene, um espelho de piolho, de esquilo.” O próprio Marlaio, o próprio Satã, se empenhou em convencer Fernand a participar das experiências, “a ajudar a humanidade”. “E, no entanto, eu nada sei, nada sou; bastaria uma célula, reproduzida e combinada de forma infinita”. Na poltrona ao lado na nave, Marlaio sorri, sem resposta ou gentileza do “convidado” Fernand. Transcorrer, em vez de ser. Simultaneidade, em vez de fragmentação. Unicidades, em vez de caos. E como, então, ele, Fernand, pode ser uma “chave”, uma “explicação”, uma “concentração viva” do todo? Fecha os olhos e tenta repassar os últimos acontecimentos, quando bem poderia absorvê-los num átimo, como faria qualquer jovem neste ano de 3.513 d.C.

Quarenta dias atrás, pouco antes de chegar ao Forest, o zoopark de Galateia, Fernand repetiu o pensamento e o sorriso semanal de quando ali entrava: era mesmo coincidência o fato de gostar tanto de mato e bicho, ele, um dos únicos entre bilhões de humanos a nascer de parto normal, e sem manipulação prévia na escolha dos genes, óvulo e espermatozóide? Mostrou de longe a digital do polegar ao sensor, passou pela entrada sem dar bola aos robôs que respondiam a perguntas de visitantes e se encaminhou diretamente às árvores gigantescas, sequóias, samaumeiras, cedros. Ao avistar os primeiros troncos, tomou um choque, não pelas árvores costumeiras, mas pela garota que vinha sorrindo em direção a ele, surpresa, mas feliz: os dois eram simplesmente idênticos! Ela passou ao largo, rindo para ele, mas sem intenção de parar ou conversar, pelo contrário, colocou os óculos-geracionadores e seguiu curtindo o parque a partir dos recursos tecnológicos. Fernand é que ficou estático – tinha dezenove anos, e nunca, nem mesmo pela Grande Rede, se deparara com alguém tão parecido com ele, como tanto acontecia com os amigos, gerados a partir da manipulação genética. A garota – por que não ficara surpresa? Será que não se deu conta da semelhança – impossível. Intrigado, Fernand viu-a sumir numa trilha entre árvores, ficou ainda um tempo parado e só então se voltou para adentrar a “caverna viva” formada pelas gigantescas raízes da árvore de samaúma. Deitou-se com o pescoço e a cabeça alojados no nódulo das raízes expostas, pensou na moça, “gêmea”, por alguns instantes, e se propôs ao exercício preferido dos últimos dois anos: meditar – se entregar às “viagens”, “sair” do corpo, “transcorrer”, mas sem ajuda de máquinas, usar o conhecimento e domínio corporal e neurológico que adquiriu via computador para desfrutar sensações “puras”, vertigens conscientes envolvendo o próprio corpo, ou a terra, ou a Via Láctea, ou os planetas recém-descobertos, ou as sensações aprendidas via simulações de estados físicos inusitados de galáxias várias, repassadas a ele por jogos ou durante as aulas em laboratórios descomunais.

Com os olhos fechados, Fernand iniciou o processo de “desligamento” do corpo, de entrega aos pensamentos, imagens e sensações que se formavam nele quase que de modo aleatório. Mas não conseguiu aprofundar o processo – parecia sonhar, semi-adormecido, mas ainda controlando as imagens, as sequências. Sentiu – ou teve a impressão – o sol esconder-se atrás de nuvens ou das árvores, ouviu – ou pensou ouvir – alguns passarinhos cantando próximo, e levou a mão para matar uma formiga, devia ser uma, a picar o braço direito perto do cotovelo – resistiu, de olhos fechados, tentou avançar até o lago de imagens, o lago primordial, o lago filosofal, o jardim todos os jardins, mas as imagens vinham repetidas, as sequências voltavam como se assistisse, não inventasse, a um filme. Apertou mais as pálpebras, ignorou as imagens, tentou formar um grande campo branco, isento, aonde as imagens pudessem acorrer, não conseguiu, se pôs a voar através de um céu cinza, enevoado, na tentativa de se clarearem novas cores e sensações, outro fracasso, criou-se então uma invisível célula, um pólen, algo invisível mas consciente, o invisível percorrendo o infinito na tentativa de se corporificar, de crescer, e fazer crescerem as paisagens e movimento em volta, outra vez não conseguiu, estranho, fazia meses que não falhava, que se induzia às “viagens” quase que de forma instantânea... Desistiu, decidiu abrir os olhos, andar um pouco, espairecer, e tentar de novo. Abriu os olhos de supetão – e teve não exatamente uma surpresa, mas um susto, não apenas um susto, uma espécie de medo, de pavor – estava no parque, mas não era mais o parque, estava entre as árvores, mas não eram as mesmas, outro lugar, sem luzes, sem construções, sem outras pessoas – e era noite! Impossível, mas era noite, não via a lua, mas sabia que a tênue claridade vinha dela, oculta pelas copas gigantes e vedada pelos cipoais que envolviam a vida naquele irreal lugar.

Fernand ergueu-se da raiz da samaumeira – depois, se lembraria perfeitamente desse ato: primeiro sentara-se, assustado, depois levantou-se, olhando em volta – e começou a caminhar a esmo, hesitando, em busca de alguma trilha ou de situação conhecida – nada reconheceu de concreto, de guia, girou sobre os próprios passos, em busca de uma decisão, e ficou uns minutos parado, como a assimilar o novo lugar em que fora parar de forma inexplicada.

Onde as luzes de Galateia? Onde os sons, os movimentos, as naves? Pois a samaumeira era mesmo aquela – o mesmo tronco, as enormes raízes que pareciam velas de barco fincadas na terra, os mesmos nódulos. Fernand abaixou-se – simplesmente abaixou-se, e com simplicidade enfiou as mãos na terra, cavando com os dedos, aprofundando as mãos como se obedecesse a chamado oculto, logo as mãos estavam cobertas, e ele tocava as pontas dos dedos, triturando, amassando a terra nas mãos em concha, até sentir se aquecerem as palmas, e algo quente se avolumar entre os dedos, e uma luz transparecia para fora da terra, liberando raios sobre o rosto de Fernand, ele apertava os dedos e parecia comprimir uma gelatina de luz, que se amoldava subterrânea à pressão quente. Ele retirou as mãos da terra, e parecia segurar uma luz sólida, cada vez mais quente, a ponto de ele lançá-la ao ar com as duas palmas abertas, como se libertasse um pássaro – a luz se desfez no ar, se espraiou, formou um redemoinho como uma pequena vertigem de formas, e então letras se formavam e caíam ao chão como folhas, “a”, “f”, “y” , e ao chão se integravam à terra e às folhas, desaparecendo em pequenas absorções de luz.

Fernand avançou em direção ao redemoinho – e se sentiu atravessar pela luz, desintegrar-se, transformar em luz, em letras, ele, milhões de letras que se multiplicavam de si a si, em si, milhões, bilhões de letras, repetindo-se, e cada uma parecia ter um conhecimento, uma consciência, uma ciência própria, conectadas entre si, e Fernand, como se estivesse integrado à Grande Rede, o cérebro conectado a um robô, processava vertiginosamente as informações, como um supercomputador processando e identificando dados de som, sentido, símbolos, imagens, pensamentos, tudo único e tudo todo, tudo fragmentado e total, tudo díspare e ligado, relacionado, a memória, uma memória, se inventava e revisitava ao mesmo tempo, se criava e gerava e descobria e nomeava ao mesmo tempo, célula a célula como letra a letra, uma memória, a viagem que se iniciou era uma memória, memória imemorial, memóriapensamento, memóriacarne, memóriapedra, memóriavento, memóriasuspiro, memóriacor, memóriatudoaomesmotempo, palavra de lembrança que criava como se lembrasse e lembrava criando, e por trás uma consciência, um urdir, um controlar por Fernand, um lembrar do lembrar, um refluir da lembrança, desde que tempos, desde que fatos, desde que sentimentos e sensações?

Aqui as imagens e movimentos transcorrem como que individualmente, mas, em Fernand, aconteceram ao mesmo tempo, uma viagem de bilhões de Fernands reunida num só, bilhões de fatos num só fato, numa só tábua, como alguém que lembrasse de todo o vivido, e o fizesse ao mesmo tempo – o pipoco dos átomos em estilhaço, as rascantes velocidades coloridas, os caudais preenchendo o vazio com invisíveis solidezes, as camadas de perfumes e texturas se afirmando no vácuo, gerando órbitas, promovendo fugas, harmonizando formas como se fossem números, formando frases como se fossem letras, e assentando seivas nas locas de carbono, e animando os ventos como polens, e fecundando as águas com o tempo, uma primavera de nove bilhões de anos, os primeiros pelos, as primeiras mãos, o filhote sozinho, à beira-rio, o perigo – “Mãe!”, Fernand disse em voz alta, e o filhote repetiu, a primeira palavra, o grito da mãe em socorro, “Fome”, “Comida”, “Pedra”, Fernand diziagerava, e os pássaros gritavam, e as lontras se erguiam sobre os leitos, em lugares infinitos num único lugar, em seres infinitos num único ser, e tudo se foi entendendo em si, tudo era memória, e Fernand simplesmente visitava a si mesmo em todos os elos perdidos, tocava a memória, falava a memória, gerava a memória com as mãos, com os olhos, a memória era tudo e ele tinha uma vida que falava com cada detalhe do todo, conversava com sua parte da memória, tocava nela, soprava, acessava, reavia, incorporava, curtia, sorria suas memórias, frente a frente, beijava, se dividia entre três ou quatro memórias ao mesmo tempo, bilhões de séries de três ou quatro lembranças, de repente, um vaga-lume, um vaga-lume que a tudo atraía, que a tudo congregava, unificava, e tudo se lhe agregava como a um cometa, um vaga-lume minúsculo em cometa gigantesco, um poste, uma nave, mas ainda não existiam naves, um vaga-lume invisível alimentando Galateia de luzes, mais atrás, mais atrás, um laranjal, milhões de laranjas, abelhas, o sol concentrado e escorrendo em suco poroso, a hora da comida, a hora de cozinhar, esse é o ritual do amor, do carinho, é preciso amar e temperar, é preciso amar e misturar, as folhas, o azeite, eu te amo, esta é a mesa, eu te amo, é a minha casa, o vento atravessa os bambus, canaliza-se nos ocos troncos caídos das árvores, a música, eis o corpo em forma de som, eis a criação do espírito, eis meu corpo invisível, eis meu corposopro, meu corpotom, meu corpotimbre, meu corposentimento, meu corposensação, meu corpoêxtase, música, música, música, e uma garota dança, ela dança, é tão leve quanto a pluma, pluma com braços, pluma com pernas, é tão leve quanto o algodão, quanto a pétala, uma moça dança, ainda não é valsa, ainda não é samba, não é reggae, é apenas dança, a harmonia é leve, a ausência de gravidade é concreta sobre pés de ninfa, vou te chamar de deusa, pra te eternizar, vou te chamar de musa, para renasceres, e agora a chuva, vou chamar “chuva”, para gerar um sentimento, vou dizer “escorrer nas folhas”, para inventar a poesia, vou dizer “molhar teus olhos”, para inventar a saudade, e agora a moça se vai, parte sob a chuva para inventar música com letra, música e poesia, a moça parte para eu inventar a morte, para eu criar a dor que a água não pode amainar, para eu chorar diante do primeiro vazio, de um vazio maior que a ausência do espaço, maior que antes do átomo estilhaçado, e vou dizendo “batalha”, e digo “soldado”, e digo “Helena”, e digo “Tróia”, e digo “moinho”, e vou gerando “barragens”, e gero “plantação”, e gero “pão”, e falo “luz”, e falo “eletricidade”, e digo “Paris”, e me debato num furioso mar azul, azul, parece uma esponja azul, o céu é um mar de esponja azul, e me sinto sufocar, e percebo então que o oceano amarelou-se, esverdeou-se, é um mar de catarro, me debato num mar de catarro, mergulhado no nojo, arrebatado pelo novo, sufocado pelo gelatinoso nojo esverdeado, denso, pegajoso, catarro em ondas violentas e sucessivas, desmaio, estou alçado, salvo por golfinhos e garças, o céu é azul, durmo nas nuvens, acordo num lugar chamado cinema – é todo descolorido, as ruas têm abas com pequenos furos, a rua mais larga é um campo de futebol preto e branco, a bola rola ao meu lado e pequenos riscos cortam o ar – riscosa no filme, na projeção - com lapsos de sons, e digo “carnaval”, e falo “carro”, e gero “avião”, e todas as letras que eu sou dizem “máquina do tempo”, e todas as sílabas que sou gritam “eternidade”, e depois formam “Galateia”, e digo “Fernand” e nasço caído, no escuro espocado em luzes ao pé de uma árvore que reconheço como uma samaumeira.

Fernand sabia simplesmente que poderia continuar, ali caído – poderia nomear e criar e inventar e gerar apenas com palavras, a viagem era infinita, não foi um retorno, não fechou um círculo, a menos que ele quisesse, a menos que vedasse o próprio fôlego, o próprio fluxo, “Não”, pensou, “Vou prosseguir, vou visitar tudo, vou compor toda a memória”, mas algo o dispersou, atraiu seu pensamento, sua viagem, ele abriu os olhos e se deparou consigo mesmo – não, era a moça – a idêntica a ele, a sua “gêmea” – olhava para ele, chorando, estava tão perto, há quanto tempo o olhava, aflita, com as mãos na barriga – sangrava – Fernand ergueu-se, tocou-lhe o rosto, enxugou-lhe as lágrimas, nada falou, não tinha palavras, não tinha palavra para o que não conhecia, para o que não esperava, para o fio vermelho irreversível. Ou, antes – esse fluxo não podia conter, essa palavra – aborto – não diria, não propagaria e não evitaria... Abraçou-se à moça e se confortaram até se extenuar, e dormiram abraçados, recostados no mesmo tronco da samaumeira ancestral.

A nave penetra o bico da águia, Marlaio diz “Chegamos, fique tranqüilo” e Fernand ajusta-se na poltrona como se fossem partir, em vez de descer no Marlaio’s Lab. O que acontecera ao pé da samaumeira, se, no buraco perto das raízes, se descobriram elementos desconhecidos (produzidos pelas mãos de Fernand?), se, no corpo do jovem, exames detectaram resíduos que datavam de milhões, bilhões de anos atrás, se no sangue da moça foram encontrados genes de Fernand, se sua gravidez interrompida – fora dele que engravidara, e não se conheciam, e, ao se encontrar depois, nada falaram, nada conseguiram dizer? “Talvez o fato de você ter nascido de parto natural, sem seleção de genes...”, Marlaio dissera. “Você pode ajudar a criar um novo estágio da humanidade, do que somos...”. Fernand recusa com repulsa o toque de Marlaio, quando se prepara para descer da nave, e sente um enorme desamparo, uma enorme vontade de chorar, e a lágrima que enxuga parece conter todos os oceanos das dores passadas e futuras.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A voz do samba e o samba da voz



(letra, musicada por edir gaya. ouça: http://www.youtube.com/watch?v=PSKlLDK78K4&list=UU0MeExu0BcdVWM4uFsYlgWA&index=1&feature=plcp )


Sou cantor de samba

E amo uma sambista

Que traz a melodia

Na ponta dos pés

Sou cantor de samba,

A minha voz gamou

Nos passos dela

A minha voz gamou

Nos passes dela


Eu canto samba

Ela samba

Dança e canto

Um para o outro

Vamos sambar

Vamos fazer mágica

Vamos sambar

Vamos fazer mágica


Voz que dança

Dança que canta

Samba

Voz que dança

Dança que canta

Samba

Fala de saia, tu

Roda de uirapuru

Te amo tanto que pinga

Suor das estrelas


E aí

O samba pede um aparte

E como um porta-estandarte

Ele mesmo canta pra passista:


Samba

Também sou infinito

Samba

Vou te acompanhar

E quando chegar na Pedreira,

Onde o samba vira amor,

Eu saberei me calar


Samba

Também sou infinito

Samba

Vou te acompanhar

Quando chegar na Pedreira,

Onde o samba vira amor,

Eu saberei me calar

sábado, 3 de março de 2012

Sinuca de bico


Antes da história propriamente dita, graves antecedentes.

Certa vez, na cidade de Castanhal, a sessenta quilômetros de Belém, uma menina, dezessete anos, ia e vinha na bicicleta, fazia a curva, subia a pequena ladeira, descia, concentrada, e eu de olho, lembrando que ela já me tinha dado um fora. Ia e vinha, roçando, liguenta, subia, deslizava, esfregava cada vez mais vendo menos à frente, desceu, passou à frente da minha janela, os olhos quase fechados, de novo veio, os olhos fechados, então, no meio do gozo, uma pequena pedra, e a gata se esborrachou na piçarra. Ficou um pouco em silêncio, não sei se pensando no ralado num braço ou ainda curtindo o orgasmo contra o selim da bike. “Tudo tem um preço!”, não perdoei, e só então ela morreu de vergonha.

Das aberturas de filme, uma marcante, ainda que não seja das melhores, é a de “A cor do dinheiro”, do Scorsese: a personagem de Paul Newman, de costas para o salão, conversa com a namorada, gerente de uma casa de sinuca, e apenas se ouve o atrito de tacos e bolas. De repente, só pelo som, nossa personagem sabe que, atrás, chegou um craque do taco. Não se volta, afinal o lugar é uma referência. Nova tacada, e o Newman de novo sabe que o sujeito atrás é bom mesmo, mas segue a conversar – na terceira tacada, volta-se brusco e se depara – sim, com Tom Cruise, o que facilita bastante as coisas. Qualquer pessoa habituada ao bilhar e à sinuca identifica um bom jogador só pelo barulho do taco nas bolas e pelo consequente som nas caçapas.

O todo é invisível. Menos do que mínimo, menos do que microscópico – menor que partícula, que átomo, que espermatozóide. “O universo comprimido numa casca de noz” – não, o universo é invisível, alinhamento do incomensurável invisível, entrelaçamento infinito do desmesurável invisível. Não quero nem saber por que desígnios o universo resolveu se concentrar justo no Carlos Bar, entre garrafas de cerveja e mesas de bilhar, e sob as minhas lúbricas e diligentes vistas.

O bilhar (mesa pequena, com quinze bolas mais a branca, e não a sinuca, mesa grande com sete bolas mais a vermelha) é cultural no Pará: nos bairros periféricos, no interior, ao longo das estradas, toda taberna tem uma mesa para ser saboreada com peixe frito e cerveja gelada. O Carlos Bar pontifica em Marabá, a quinhentos e cinquenta quilômetros de Belém, fama de cidade rica e violenta. São doze mesas, oito no avarandado, quatro dentro do bar, gente de todo jeito falando alto, contestando jogadas, zoando o azar das vítimas do acaso. Entre o macharéu, duas garçonetes, negra e morena, linda essa moda de blusas curtas expondo o umbigo das fontes eternas.

Na rua em frente, a caminhonete parou com frenesi entre os muitos carros. Desceram três amigos, rindo alto, e a namorada de um deles, muito branca, cabelos muito pretos. Belos, jovens, ricos, e ainda estávamos na metade da espinha da tarde do sábado de carnaval. Sim, e a moça, pronta para emendar em algum bloco, usava apenas um top vermelho guarnecido por uma saia branca, que não era transparente, mas dava a impressão, entenda. A gata certa no covil ideal, pensamos todos, ainda mais quando os rapazes começaram a jogar e ela foi direto à Jukebox, bambolear o ambiente.

Deixa que eu mesmo ilumino o contexto: os salões de bilhar, como os estádios de futebol, são recintos para o exercício da dominação do macho, da supremacia do macho, liberdade do macho, dos palavrões machos, do coçar o saco macho, das gritarias, da descontração, da falta de educação macha, do jeito macho de ser, agir, etc. Ali, quero dizer, aqui, no Carlos Bar, as mulheres, portanto, são mais do que bem-vindas – dão o colorido, a plateia, a pitada de suor, o frasco de frescor (de frescura?), o condimento, a especiaria, os gritinhos, os saltinhos, os peitinhos, a silhueta da origem e, certamente, do fim dos tempos – mulher no estádio e debruçada (debruada?) sobre um mesa (de bilhar) é simplesmente a gota de um perfume diabólico que esclarece o sentido nas selvas mais peçonhentas.

Primeiro, em clima de carnaval, nossa amiga botou, na Jukebox, o tema da Mangueira, e ficou rebolando enquanto escolhia as outras músicas. Rebolando – vou morrer cego, eu que sou visionário, cego como Homero, para ser o porta-voz, cego como Borges, para não perderes um só detalhe dessa tarde, leitor. Os três rapazes já discutiam às tacadas, e a moça cravada por vinte pares de olhos, perfurada dos pés à cabeça pela rapaziada sôfrega, a moça que atirava de costas milhares de setas comunicantes com poros, peles, íris e retinas. A próxima música, Lady Gaga, nua, como sempre, no clipe da tela da Juke, e nesse ritmo a donzela voltou para a mesa, a das cervejas, enquanto os parceiros se digladiavam com cedros e marfins.

Ali sentada, de frente para a assistência, finalmente a bandida olhou o bar de ponta a ponta, e notou tudo, como se só tivesse notado nada. Finalmente (ehehe) nossos olhares se cruzaram.

O tempo se acelerava, obediente à Teoria da Relatividade, Madonna (“Like a Virgin”, veja você) foi a próxima música, o namorado se aproximou, beijou a gata uma vez, exibido, continuou curvado, para dar mais beijinhos, embicou o copo de cerveja e voltou pro jogo. A Rita Hayworth do sudeste paraense lançou para trás a cabeleira letal.

Lá fora, parou um carro com estardalhaço, duas pessoas desceram, jovem casal, a moça no bar deu um gritinho e levantou-se para receber os amigos. Abraçou e beijou a beldade que chegava, bateu no ar a mão com a do novo rapaz e sentou-se segurando a amiga pelo braço. O carnaval, finalmente, convergia para uma auto-definição.

Lá de novo veio o namorado, beijou outra vez a menina, beijinho rápido, só pra se exibir e demarcar território, e os dois foram em seguida à caminhonete. (Não iriam embora, ou ele teria deixado o taco, distraído.) Trancaram-se lá dentro por uns quatro minutos, a galera pressurosa, eu, o observador, diligente do meu dever. Na volta, desocupou uma mesa, bem na minha frente, e lá vêm as duas jogar, digo, brincar na lúdica expressão do imparcial bilhar, dado tanto a muxoxos quanto a sinucas de bico.

Na minha frente.

Desenfreou-se uma seção de gritinhos – quando acertavam uma bola, quando erravam, quando “cegavam”, quando perdiam uma bola fácil, quando metiam por acaso, quando a bola parava bem na boquinha, quando o taco só faltava rasgar o pano verde, quando entrava uma bola já na tacada inicial de cada partida – gritinhos e gritinhos, saltitos, saltitinhos, gazelas, a galera só na baba e eu fingindo que não via tintim por Tintim.

Um marmanjo foi à Jukebox e logo a voz da Paula Fernandes expelia arrepios pelo salão: “Sou pássaro de fogo”, soprava acendendo e apagando incêndios, as duas meninas esqueceram a Madonna e cantaram um trechinho abraçadas, os quatro marmanjos jogavam em dupla numa só mesa e tive que ir ao banheiro.

Na volta, foi só sentar, e a nossa cabrita protagonizou uma das maiores cenas já vistas no Carlos Bar – encostou-se na mesa, empinou levemente a bunda (será mesmo que a saia não era transparente?) e apoiou o taco atrás do pescoço, nos ombros, escorando-o com os braços abertos – crucificada pelo taco, por assim dizer, no auge do pecado. O namorado, ao lado, devia esta na maior sorte no jogo.

Eu bebia aos borbotões, cumprimentava os amigos em silêncio, muitos conhecidos, chapas de samba e bilhar, a sensibilidade a mil, e a gata, rediviva, passando giz no taco, na maior inocência. Tenho certeza que foi aí que céu e inferno começaram a convergir para a zona do equador, só faltavam frutas, não sei o motivo, mas faltavam muitas frutas recendendo pelo bar: lá fora chovia e fazia sol ao mesmo tempo e a gata passou a ouvir meus pensamentos, digo, a sentir o sentido do que eu pensava, e eu pensava tudo de bom. Mas vou dar uma interrompida.

Quem empina papagaio (ou pipa, ou curica, ou rabiola) usa, em geral, um cerol feito com vidro moído e cola líquida, de placas derretidas. O melhor vidro moído não é o de lâmpadas fluorescentes, ainda que charmosas, e sim de garrafas escuras, moídas e coadas várias vezes, misturadas à cola e agregadas à linha, de aspereza mortal. Eu sabia que a nossa mascote, ali no bar, era um cerol de lâmpada fluorescente, mas fatal, filha de fazendeiro, talvez, sensível aos enxurros de leite na madrugada, experiente nos orvalhos a caminho do estudo ou prado. E ela sabia que eu sabia – eu, cerol de garrafas escuras, amigo da rapaziada, bardo considerado no recinto.

Eu é que já não sabia – se ela adivinhava meu pensamento, ou eu lhe adivinhava os movimentos: “muda de pé”, pensei, e ela mudou, apoiando-se no outro pé e empinando, claro, a bunda, “ela vai se curvar”, intuí, e a danada se curvou, do jeitinho que eu pedira a Deus. Nem questionei as “coincidências”, ao contrário, “te curva sobre a mesa para pegar a bola do outro lado”, ordenei, e ela não hesitou, e aí foi indiferente a saia transparecer ou não. Sem brincadeira, meus amigos, minhas senhoritas: ela olhou para mim, diretamente, como a identificar o ponto que lhe adivinhava as comichões, e tive a impressão de que o bar todo ficou em silêncio, eu a notar-lhe cada eriçamento interior, e a galera do bar a penetrar-lhe o íntimo por meio meu, por meu filtro: como as estrelas convergem, como os sóis se alinham, quando tudo fica tão exato como uma bola de cristal, o universo convergiu para nós, o universo que ali era tão pequeno e invisível que podia só ser imaginado: todos nós desejamos à gata tudo de bom de uma só vez, todos lhe comunicamos no mesmo jorro os nossos desejos, os nossos roçares, a brasa dos nossos olhos, a textura dos nossos dedos, todos lhe inundamos na mesma tempestade, lhe afogamos no mesmo fundo, lhe salvamos no mesmo abraço, lhe afundamos no mesmo cuspe, lhe humilhamos no mesmo carinho, lhe resgatamos no mesmo beijo, lhe arrebatamos no mesmo suspiro, lhe sufocamos no mesmo fungar: e ela recebeu o jorro como um descarrego cósmico, e processou o desejo como cem garotas em uma, e se curvou ao impacto como se fôssemos Paul Newman e Tom Cruise, e assimilou os cometas como um planeta recente, e sentiu os beijos como uma adolescente, e aceitou as mãos como uma messalina, e recebeu os dedos como uma anfitriã, e se entregou à chuva como uma prostituta, e se abriu ao sol como uma planta, na minha frente, e apenas foi se apoiando na mesa de bilhar, os olhos desencontrados, a respiração descompassada, não se tocava, não se roçava, não apertava uma perna contra a outra, derreada na mesa, deslizando em direção ao chão, tentou ainda se apoiar nos joelhos, escorada no taco, mas preferiu se deitar, luminosa, sem um só toque, em nenhum momento, de suas ou de nossas quarenta mãos.

Quando os amigos acorreram para ela, e lhe notei um breve sorriso (dizem que o próprio universo vai se repetir, de cabo a rabo), não resisti, compelido por um big bang, e repeti, entre as mesas:

- Tudo tem um preço.