segunda-feira, 20 de abril de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


17 - Meu pai e João do Vale

Quando eu era pequeno, meu pai, Antônio Coelho, chamava de “vagabundagem” a maioria dos prazeres. Isso incluía o futebol e todas as artes, com marcação cerrada em música, dança e “literatura”: bolsilivros de bang-bang e espionagem, Brigite Montfort, Gisele, a Espiã Nua que Abalou Paris. (Adulto, descobri que a maioria dos bolsilivros da época era de um só autor, o brasileiro Riyuki Inoue, recordista do Guiness com mais de mil títulos publicados.) Vida dura, pelos interiores de vários Estados, meu pai mudava-se com a família às vezes de mês em mês, destemido, e assim constituía riquezas e, de um golpe, perdia tudo. Basta dizer que, após morar numa centena de municípios, foi parar na selva amazônica, 1972, a 75 quilômetros de Altamira. Um homem com tal têmpera não entendia de primeira porque uma cidade cantava “Eu hoje quebro esta mesa/Se meu amor não chegar”.


Esse Antônio Coelho de Oliveira, que beira os 81 anos, recebe na Cidade Nova, por algumas semanas, o irmão Sebastião, 83. Tenho certeza de que ambos ultrapassarão os 100 anos, meu pai falando sem parar, meu tio a ouvir de forma infinita, mas agudo de esperto e, quando preciso, entrecortado de frases sem piedade. No sábado passado, para provocar a memória dos irmãos, levei o “som” pra varanda e botei a última paixão de meu pai, o CD “Tião Carvalho interpreta João do Vale”, com músicas-retratos-histórias-paisagens do Maranhão de cinqüenta anos atrás. (O Maranhão que meu pai vivera de forma tão abrupta, jovem sobre os lombos dos cavalos que comerciava, indiferente a qualquer refrão e qualquer cantor.) Os personagens das canções de João eram antigos conhecidos que voltavam à memória de seu Antônio e seu irmão; e as músicas, sim, eram também as mesmas daqueles tempos, seu Antônio ouvira-as pelas ruas, mas sem ouvir, não lembrava de um só verso (minha mãe lembrava de todos, e foi a primeira a se encantar quando presenteei o CD). Meu pai, que, por desconhecimento, atacara a arte em nossa infância, tinha, por arte das mesmas canções que combatera, o passado de volta e a graça da vívida nostalgia.

De uma varanda da Cidade Nova, os irmãos octogenários embarcam no trem de uma música de João do Vale, trem que tomaram tantas vezes. As cores dos vagões, a poeira, a precariedade total: “Atrasava tanto que mais certo seria dizer que não tinha hora pra passar”, meu pai falou para o irmão aprovar. Quando Nara Leão trocou a bossa nova pelo samba de morro – trocou a beira do mar pelo subúrbio do Rio –, no final dos anos 60; e artistas como Glauber Rocha buscavam uma estética e um “Brasil profundo” não apenas no subúrbio, mas nos sertões, ou melhor, na mitologia assombrada dos sertões: quase assombradora foi a aparição de João do Vale no palco Zona Sul do Canecão, descalço não como um universitário “descolado”, mas como um agricultor que não tivesse sapatos: os dedões que toparam com pedra a vida inteira, João negro, entroncado como uma árvore que crescesse não para o alto, ou para o lado, mas para dentro da própria dureza, e era sem dúvida assombrante aquele homem soar tão emocionado, aquela voz gretada soar tão sensível e confortadora, aquela aparência encarapaçada de tatu peba tornar-se insopitável porta-voz do erotismo, ambivalências de baião com malagueta. Meu pai infindável, a quem é tão clara a palavra “vencedor”, meu pai que fará cem anos em duas décadas, meu pai e João do Vale, que se tinham encontrado, sem se ver, nas ruas e veredas do Maranhão, se encontram agora para sempre, por tal arte de João que soa não na memória, mas na alma: um jeito de ser que não será esquecido na “alma brasileira”.

2 comentários:

NÉLIO PALHETA disse...

Caro Edson, a crônica faz-me lembrar de meu pai.
Ele tinha dezenas desses livros de bolso. Se li algum não lembro. Talvez dois ou três. Ele integrava uma espécie de rede de leitores de livros da Ediouro, em Vigia; emprestava e tomava emprestados aqueles livros que recebia pelo correio ou comprava em Belém.
Pego o gancho da crônica para dizer que, entretanto, foi das mãos de meu pai que li os primeiros romances, que ele emprestava da biblioteca muncipal, que funcionava no prédio da prefeitura. Livros doados pela antiga SPVEA, antecessora da SUDAM. Operário, meu pai deve ter lido a biblioteca inteira. Era um leitor permanente, se não inveterado. Tinha assinatura de revistas mensais e semanais, entre elas O Cruzeiro. Das mãos dele li toda a obra de Jorge Amado, disponíveis na época.

Nélio Palheta

P.S.
INACREITÁVEL SE NÃO SOUBÉSSEMOS COMO ADMINISTRAM OS MUNICÍPIOS, ATUALMENTE: A PREFEITURA DE VIGIA NÃO TEM, HOJE, UMA BIBLIOTECA. PODE?

edson coelho disse...

nélio, essas memórias são a própria poesia, né: quase dá para tocar na emoção. pensar que a cidade da vigia tem uma história maravilhosa... meu amigo, só eu mudando meu endereço eleitoral para votar em você (sai da moita) na próximas eleições.