segunda-feira, 4 de maio de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


19 - Você não existe

Na padaria, a primeira coisa que ouvi foi “Não existo, não existo, não existo!”. Duas horas depois, tornava-me amigo daquele que seria um dos personagens mais birutas de tudo.

- É fácil provar que você não é você! – Carlitos Chagas disse de cara, rindo. - E tudo isso que você vê não existe, é só ilusão.

Ainda eram dez da matina, pedi café-com-leite, pão com queijo derretido na chapa, e me pus a ouvir.

- O que julgamos ser é apenas nossa região mais rasa - lembrava Carlitos. - O problema é que nossa região mais profunda, desconhecida, é muito maior e mais poderosa, e nos condiciona. Ou seja, não temos autonomia, somos determinados por um desconhecido, não existimos.

Mais:

- Veja, ali na esquina, o posto de gasolina. Violeta, preto e marrom. Ao motorista ocasional, o posto abastece; ao artista plástico, as cores contrastam; ao dono do posto, o negócio dá lucro; ao fornecedor, a praça é boa; ao empregado, o posto é o lugar em que, talvez, já faça tudo mecanicamente. O posto, portanto, não existe, ou não existe fora de nós. Como, de resto, toda a realidade. O que chamamos de real não o é para a árvore, ou para a pedra, mas apenas ao homem. Como em nós torna-se sempre outra coisa (a “mesma” realidade é diferente em cada um) nada existe de fato, apenas as alegorias, os símbolos, as ansiedades, os valores que atribuímos. A realidade somos nós, nós que não sabemos quem somos.

- Mas há uma realidade em si - objetei, já virando o primeiro chope. - É impossível negar que existe uma espécie de zona neutra, chamada real, que aceitamos como confiável para todos, na qual acordamos, vamos ao cinema, trabalhamos.

- Será mesmo? - questionou Carlitos. - Será que o que chamamos de real é igual para todos, é, digamos assim, imparcial? Talvez o pior de nossa aparência nem seja o lado desconhecido, mais profundo, e sim a manipulação da fantasia, a mentira. Convivemos, sem saber, com gente que mata, estupra, tortura, conscientemente. Não é apenas nosso inconsciente. É o que disfarçamos, escondemos, fingimos, mentimos, enganamos, ludibriamos. Isso atinge todo o espaço, todos os objetos, o cotidiano.

E haja exemplo:

- Digamos que um operário sempre chegue ao trabalho e troque de roupa no banheiro. Em certa manhã, alguém diz, brincando, que pode haver uma cobra no banheiro. Colegas confirmam, e nosso operário desiste de entrar. Troca de roupa noutro lugar e passa o dia evitando o banheiro. Toma cuidado até ao chegar perto da porta. Aquele lugar, tão familiar, tornou-se ameaçador. E era apenas uma lorota de companheiros bem-humorados. Como confiar na realidade, se grande parte dela é fundada em inverdades semelhantes? E você já parou pra pensar que o ser humano só acredita no que quer? Não nos interessa a verdade, mas o pitoresco, o interessante, a fofoca.
Passei, claro, a encontrar Carlitos Chagas com regularidade, bebendo de sua mistura de clichês filosóficos, alguma idéia própria e bastante birutice. O pior é que sua crise de irrealidade se agravava. A cada mês, ele tinha uma aparência diferente. Disse-me que, se já não existia, podia ser qualquer coisa. Arranjou várias namoradas de uma semana, e não sabia se o queriam de fato ou estavam iludidas pelos personagens que representava. Que diferença fazia?

Numa bela tarde, Carlitos disse-me que um cientista o entrevistara por dias seguidos (fez uma anamnese) e o descreveu como o primeiro caso do que seria, de fato, um homem pós-moderno: aquele de identidade tão fragmentada que se sentia despersonalizado, e por isso desejava e mesmo acreditava ser tudo.

Quinta-feira passada, reencontrei Carlitos - seu modelito lembrava uma fantasia de carnaval - triste, arrasado mesmo. O que foi?

- A única coisa que eu tinha certeza de ser era o primeiro caso descrito do homo global. Pois não é que apareceu outro cientista, afirmando ter descrito, antes, caso semelhante, e com um personagem argentino?

Carlitos então abriu um sorrisão e saiu, vermelho de feliz, com ar descarado. A história do homo global era só outra viagem pesada.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bom texto Edson.É um bom texto...
parabéns Ah! Se todos os nosssos textos pudessem nascer com esse padrão de qualidade...mas, cada um sabe o que é bom pra si ...e tem o sagrado "livre arbítrio" pra fazer suas escolhas.Espero que este livro lhe proporcione novos méritos ...e muitos sorrisos de alegria escancarada!