sábado, 3 de março de 2012

Sinuca de bico


Antes da história propriamente dita, graves antecedentes.

Certa vez, na cidade de Castanhal, a sessenta quilômetros de Belém, uma menina, dezessete anos, ia e vinha na bicicleta, fazia a curva, subia a pequena ladeira, descia, concentrada, e eu de olho, lembrando que ela já me tinha dado um fora. Ia e vinha, roçando, liguenta, subia, deslizava, esfregava cada vez mais vendo menos à frente, desceu, passou à frente da minha janela, os olhos quase fechados, de novo veio, os olhos fechados, então, no meio do gozo, uma pequena pedra, e a gata se esborrachou na piçarra. Ficou um pouco em silêncio, não sei se pensando no ralado num braço ou ainda curtindo o orgasmo contra o selim da bike. “Tudo tem um preço!”, não perdoei, e só então ela morreu de vergonha.

Das aberturas de filme, uma marcante, ainda que não seja das melhores, é a de “A cor do dinheiro”, do Scorsese: a personagem de Paul Newman, de costas para o salão, conversa com a namorada, gerente de uma casa de sinuca, e apenas se ouve o atrito de tacos e bolas. De repente, só pelo som, nossa personagem sabe que, atrás, chegou um craque do taco. Não se volta, afinal o lugar é uma referência. Nova tacada, e o Newman de novo sabe que o sujeito atrás é bom mesmo, mas segue a conversar – na terceira tacada, volta-se brusco e se depara – sim, com Tom Cruise, o que facilita bastante as coisas. Qualquer pessoa habituada ao bilhar e à sinuca identifica um bom jogador só pelo barulho do taco nas bolas e pelo consequente som nas caçapas.

O todo é invisível. Menos do que mínimo, menos do que microscópico – menor que partícula, que átomo, que espermatozóide. “O universo comprimido numa casca de noz” – não, o universo é invisível, alinhamento do incomensurável invisível, entrelaçamento infinito do desmesurável invisível. Não quero nem saber por que desígnios o universo resolveu se concentrar justo no Carlos Bar, entre garrafas de cerveja e mesas de bilhar, e sob as minhas lúbricas e diligentes vistas.

O bilhar (mesa pequena, com quinze bolas mais a branca, e não a sinuca, mesa grande com sete bolas mais a vermelha) é cultural no Pará: nos bairros periféricos, no interior, ao longo das estradas, toda taberna tem uma mesa para ser saboreada com peixe frito e cerveja gelada. O Carlos Bar pontifica em Marabá, a quinhentos e cinquenta quilômetros de Belém, fama de cidade rica e violenta. São doze mesas, oito no avarandado, quatro dentro do bar, gente de todo jeito falando alto, contestando jogadas, zoando o azar das vítimas do acaso. Entre o macharéu, duas garçonetes, negra e morena, linda essa moda de blusas curtas expondo o umbigo das fontes eternas.

Na rua em frente, a caminhonete parou com frenesi entre os muitos carros. Desceram três amigos, rindo alto, e a namorada de um deles, muito branca, cabelos muito pretos. Belos, jovens, ricos, e ainda estávamos na metade da espinha da tarde do sábado de carnaval. Sim, e a moça, pronta para emendar em algum bloco, usava apenas um top vermelho guarnecido por uma saia branca, que não era transparente, mas dava a impressão, entenda. A gata certa no covil ideal, pensamos todos, ainda mais quando os rapazes começaram a jogar e ela foi direto à Jukebox, bambolear o ambiente.

Deixa que eu mesmo ilumino o contexto: os salões de bilhar, como os estádios de futebol, são recintos para o exercício da dominação do macho, da supremacia do macho, liberdade do macho, dos palavrões machos, do coçar o saco macho, das gritarias, da descontração, da falta de educação macha, do jeito macho de ser, agir, etc. Ali, quero dizer, aqui, no Carlos Bar, as mulheres, portanto, são mais do que bem-vindas – dão o colorido, a plateia, a pitada de suor, o frasco de frescor (de frescura?), o condimento, a especiaria, os gritinhos, os saltinhos, os peitinhos, a silhueta da origem e, certamente, do fim dos tempos – mulher no estádio e debruçada (debruada?) sobre um mesa (de bilhar) é simplesmente a gota de um perfume diabólico que esclarece o sentido nas selvas mais peçonhentas.

Primeiro, em clima de carnaval, nossa amiga botou, na Jukebox, o tema da Mangueira, e ficou rebolando enquanto escolhia as outras músicas. Rebolando – vou morrer cego, eu que sou visionário, cego como Homero, para ser o porta-voz, cego como Borges, para não perderes um só detalhe dessa tarde, leitor. Os três rapazes já discutiam às tacadas, e a moça cravada por vinte pares de olhos, perfurada dos pés à cabeça pela rapaziada sôfrega, a moça que atirava de costas milhares de setas comunicantes com poros, peles, íris e retinas. A próxima música, Lady Gaga, nua, como sempre, no clipe da tela da Juke, e nesse ritmo a donzela voltou para a mesa, a das cervejas, enquanto os parceiros se digladiavam com cedros e marfins.

Ali sentada, de frente para a assistência, finalmente a bandida olhou o bar de ponta a ponta, e notou tudo, como se só tivesse notado nada. Finalmente (ehehe) nossos olhares se cruzaram.

O tempo se acelerava, obediente à Teoria da Relatividade, Madonna (“Like a Virgin”, veja você) foi a próxima música, o namorado se aproximou, beijou a gata uma vez, exibido, continuou curvado, para dar mais beijinhos, embicou o copo de cerveja e voltou pro jogo. A Rita Hayworth do sudeste paraense lançou para trás a cabeleira letal.

Lá fora, parou um carro com estardalhaço, duas pessoas desceram, jovem casal, a moça no bar deu um gritinho e levantou-se para receber os amigos. Abraçou e beijou a beldade que chegava, bateu no ar a mão com a do novo rapaz e sentou-se segurando a amiga pelo braço. O carnaval, finalmente, convergia para uma auto-definição.

Lá de novo veio o namorado, beijou outra vez a menina, beijinho rápido, só pra se exibir e demarcar território, e os dois foram em seguida à caminhonete. (Não iriam embora, ou ele teria deixado o taco, distraído.) Trancaram-se lá dentro por uns quatro minutos, a galera pressurosa, eu, o observador, diligente do meu dever. Na volta, desocupou uma mesa, bem na minha frente, e lá vêm as duas jogar, digo, brincar na lúdica expressão do imparcial bilhar, dado tanto a muxoxos quanto a sinucas de bico.

Na minha frente.

Desenfreou-se uma seção de gritinhos – quando acertavam uma bola, quando erravam, quando “cegavam”, quando perdiam uma bola fácil, quando metiam por acaso, quando a bola parava bem na boquinha, quando o taco só faltava rasgar o pano verde, quando entrava uma bola já na tacada inicial de cada partida – gritinhos e gritinhos, saltitos, saltitinhos, gazelas, a galera só na baba e eu fingindo que não via tintim por Tintim.

Um marmanjo foi à Jukebox e logo a voz da Paula Fernandes expelia arrepios pelo salão: “Sou pássaro de fogo”, soprava acendendo e apagando incêndios, as duas meninas esqueceram a Madonna e cantaram um trechinho abraçadas, os quatro marmanjos jogavam em dupla numa só mesa e tive que ir ao banheiro.

Na volta, foi só sentar, e a nossa cabrita protagonizou uma das maiores cenas já vistas no Carlos Bar – encostou-se na mesa, empinou levemente a bunda (será mesmo que a saia não era transparente?) e apoiou o taco atrás do pescoço, nos ombros, escorando-o com os braços abertos – crucificada pelo taco, por assim dizer, no auge do pecado. O namorado, ao lado, devia esta na maior sorte no jogo.

Eu bebia aos borbotões, cumprimentava os amigos em silêncio, muitos conhecidos, chapas de samba e bilhar, a sensibilidade a mil, e a gata, rediviva, passando giz no taco, na maior inocência. Tenho certeza que foi aí que céu e inferno começaram a convergir para a zona do equador, só faltavam frutas, não sei o motivo, mas faltavam muitas frutas recendendo pelo bar: lá fora chovia e fazia sol ao mesmo tempo e a gata passou a ouvir meus pensamentos, digo, a sentir o sentido do que eu pensava, e eu pensava tudo de bom. Mas vou dar uma interrompida.

Quem empina papagaio (ou pipa, ou curica, ou rabiola) usa, em geral, um cerol feito com vidro moído e cola líquida, de placas derretidas. O melhor vidro moído não é o de lâmpadas fluorescentes, ainda que charmosas, e sim de garrafas escuras, moídas e coadas várias vezes, misturadas à cola e agregadas à linha, de aspereza mortal. Eu sabia que a nossa mascote, ali no bar, era um cerol de lâmpada fluorescente, mas fatal, filha de fazendeiro, talvez, sensível aos enxurros de leite na madrugada, experiente nos orvalhos a caminho do estudo ou prado. E ela sabia que eu sabia – eu, cerol de garrafas escuras, amigo da rapaziada, bardo considerado no recinto.

Eu é que já não sabia – se ela adivinhava meu pensamento, ou eu lhe adivinhava os movimentos: “muda de pé”, pensei, e ela mudou, apoiando-se no outro pé e empinando, claro, a bunda, “ela vai se curvar”, intuí, e a danada se curvou, do jeitinho que eu pedira a Deus. Nem questionei as “coincidências”, ao contrário, “te curva sobre a mesa para pegar a bola do outro lado”, ordenei, e ela não hesitou, e aí foi indiferente a saia transparecer ou não. Sem brincadeira, meus amigos, minhas senhoritas: ela olhou para mim, diretamente, como a identificar o ponto que lhe adivinhava as comichões, e tive a impressão de que o bar todo ficou em silêncio, eu a notar-lhe cada eriçamento interior, e a galera do bar a penetrar-lhe o íntimo por meio meu, por meu filtro: como as estrelas convergem, como os sóis se alinham, quando tudo fica tão exato como uma bola de cristal, o universo convergiu para nós, o universo que ali era tão pequeno e invisível que podia só ser imaginado: todos nós desejamos à gata tudo de bom de uma só vez, todos lhe comunicamos no mesmo jorro os nossos desejos, os nossos roçares, a brasa dos nossos olhos, a textura dos nossos dedos, todos lhe inundamos na mesma tempestade, lhe afogamos no mesmo fundo, lhe salvamos no mesmo abraço, lhe afundamos no mesmo cuspe, lhe humilhamos no mesmo carinho, lhe resgatamos no mesmo beijo, lhe arrebatamos no mesmo suspiro, lhe sufocamos no mesmo fungar: e ela recebeu o jorro como um descarrego cósmico, e processou o desejo como cem garotas em uma, e se curvou ao impacto como se fôssemos Paul Newman e Tom Cruise, e assimilou os cometas como um planeta recente, e sentiu os beijos como uma adolescente, e aceitou as mãos como uma messalina, e recebeu os dedos como uma anfitriã, e se entregou à chuva como uma prostituta, e se abriu ao sol como uma planta, na minha frente, e apenas foi se apoiando na mesa de bilhar, os olhos desencontrados, a respiração descompassada, não se tocava, não se roçava, não apertava uma perna contra a outra, derreada na mesa, deslizando em direção ao chão, tentou ainda se apoiar nos joelhos, escorada no taco, mas preferiu se deitar, luminosa, sem um só toque, em nenhum momento, de suas ou de nossas quarenta mãos.

Quando os amigos acorreram para ela, e lhe notei um breve sorriso (dizem que o próprio universo vai se repetir, de cabo a rabo), não resisti, compelido por um big bang, e repeti, entre as mesas:

- Tudo tem um preço.

2 comentários:

Anônimo disse...

Caramba, Edson, a moça teve um gozo cósmico provocado pelos olhares! Tem outra coisa que é muito excitante também: mulher pilotando motocicleta.

edson coelho disse...

é vero! moto - a megan fox é mesmo letal...