Amor, Amor. Era
mesmo esse o nome esculpido na placa de madeira, envolvida em folhas e finos
fios de trepadeiras. Amor, Amor, como
se também o lugar que a placa sinalizava precisasse ser confirmado, dia a dia,
sede e fonte, sede, fonte. Então fomos, eu e ela, pelo caminho de Amor, Amor,
sorrindo apenas, sorrindo com braços, pernas, cabelos, respondendo às vibrações
que o sol provocava nas plantas, nas rochas, em nós. De forma que fechamos os
olhos, e avançamos de mãos dadas, sem hesitar diante de obstáculos como pequenas
pedras, cipós, zumbidos de insetos. Paramos, os olhos fechados, e nos
abraçamos, e nos despimos num impulso de serenidade, não de ansiedade ou tesão,
como num jogo; nos despimos sem nos ver, e prosseguimos de novo de mãos dadas, uma
quietude crescendo em silêncio, o dia se esvaindo em nossa pele, casulos da
luz, poros acesos, minúsculas terminações para a lua e as estrelas. Reduzimos
os passos, sentimos, por vibrações, que algo à frente impedia a passagem, mas
não abrimos os olhos: paramos, nos ajoelhamos abraçados, e deitamos, absorvendo
o silêncio de milhões de vaga-lumes maravilhosamente reais numa espécie de
imaginação. Então sentimos a brisa.
Uma brisa que não chegava a nós, mas emanava de nós, que
começava em nós e apenas nos envolvia, brisa que era como trocar um sorriso,
duas pessoas, amor, amor, sem mais ninguém, sem nada mais em volta.
Pressentíamos, mais do que ouvíamos, a brisa roçar nas folhas, atravessar os
feixes de folhas e raízes à flor do chão, gerar pequenos remoinhos perto dos
cabelos, das mãos. E iniciou-se o calor – quase imperceptível, na palma da mão,
no pescoço, e logo na pele dos braços, nas pernas, um calor ameno, mas que
fazia suar, envolvidos por uma amena câmara de calor, a expectativa de que o
calor aumentaria, mas não, e isso incomodava mais que a temperatura, uma
temperatura parada, e então pressentimos a água – os olhos fechados, era um
jogo?, deitados na câmara de calor, e a água veio em gotículas, formadas a
poucos centímetros da pele, solidificadas ao calor dos nossos corpos, e assim
tudo parecia em harmonia, a brisa, o calor, a água, o abraço, o beijo, os
beijos, as carícias, o aconchego, sem ansiedade, sem fúria, sem a mínima
violência – por quanto tempo? Como se a luz se preparasse a si mesma e, ao
descarregar-se, iluminasse tudo em volta a partir de dentro de nós, e um
sorriso duplo como num desmaio, e uma escuridão que não era a ausência de luz,
mas uma viagem, que não era um desfalecer, mas um repouso ao meio do caminho de
Amor, Amor.
Acordamos ao mesmo tempo, abrimos os olhos – o espanto de
não saber onde estávamos, nus, e levantamos olhando em volta, sem respostas,
sem entendimento daquele lugar, que não era mais o caminho para Amor, Amor, e o
silêncio era tão absoluto que incomodava, como num aviso, e nos abraçamos como
para confortar a ausência de explicação. Nada falamos. No abraço, ouvimos o
barulho, água escorrendo, era mesmo água, e seguimos para o barulho, e logo, na
base de um gigantesco morro coberto de pequenas árvores, descendo pela pedra, vimos
a água soando numa música suave e contínua, e mais acima, poucos metros para
dentro do morro, como dentro de um berço de pedra, a fonte, borbulhante,
límpida, formando um laguinho minúsculo, respingando a partir do fundo nas
plantas pequenas e muito verdes.
Aproximamo-nos como que por instinto, o silêncio era
absoluto, nada em volta, quilômetros e quilômetros sem uma pessoa, um bicho,
uma casa. Como podíamos saber que era a fonte de Castália? Pois que sabíamos. Ela,
a amada, parou a poucos metros do laguinho, abaixou a cabeça e chorou, não
deixou que eu a tocasse, chorava serenamente, a cabeça sempre baixa, então se
aproximou e me abraçou forte e demorado, chorando agora com o rosto erguido
para o sol da manhã, chorava e abraçava como numa entrega sem volta, entrega
que tanto poderia ser de êxtase como de fatalidade. Eu a conduzi até a fonte –
devagar, pela mão, e o pequeno lago silenciou como se nos reconhecesse, parou
de borbulhar, e uma brisa suavíssima embalou por um momento as pequenas folhas
em volta, e entramos na fonte, a água abaixo dos joelhos, e a namorada outra
vez chorou, e me abraçou como se esperasse alguma coisa, e então eu a ajoelhei,
nua, e comecei a banhar-lhe com a água de Castália.
Molhava as mãos e lhe refrescava a pele, despertava-lhe os
poros para a tepidez, os braços, o pescoço, as mãos em concha embebiam-lhe os
cabelos, o rosto, os lábios, ela agachou-se dentro da fonte, e me curvei para
acariciar-lhe a pele com a água, e falei – há quanto tempo não falava? – esta é
a fonte sem tempo, fonte para as sementes de pedra, esta é a água amniótica que
absorveu a luz em clara e deu à luz teus olhos, quanto tempo dura a perfeição?,
preciso fechar os olhos, vamos fechar os olhos para que cesse todo movimento, fechar
os olhos para que tudo vire sentimento, a sensação cristalina, a sensação verde,
a sensação azul, eis o volume em camadas de luz, em camadas de seiva, eis a
manhã em camadas de sol, banhar tuas folhas, tuas raízes, sustentar teu voo
puro, a pino, espalhar os polens dos teus braços e despertar o silêncio, acompanhar-te
à inexistência e ouvir a música que vai te gerar, este sou eu, esta é a voz da
minha flauta, esta é a melodia que te ocorrerá quando nos conhecermos, esta é a
água da pedra, a pedra junto ao mar, este é o início do mar, um côvado de
eternidade que o sol renova no torno de si mesmo, órbita onde flutuam minhas
palavras para um silêncio tão completo que já não acordaremos.
Nossos olhos fechados ouviam as raízes, as seivas, os
cheiros, as frutas mais distantes, e de novo sentimos a brisa, e de novo
sentimos o calor, e de novo sentimos a chuva, e éramos a brisa o calor a chuva
o vento o fogo a água, o vento espalhava em nós o fogo e a água, a água
aplacava em nós o fogo e o vento, o fogo nos queimava a pele, a língua, o fogo
se auto-devorava em nós, e nos abraçávamos desamparados, desencontrados,
contrariados, e o abraço aumentava o incêndio e a tempestade, e o vento
destruía as árvores em nós, e o fogo queimava as frutas, e a água sufocava
nossas raízes, o fogo secava nossas fontes, o vento recobria nossas sementes, o
fogo contra o vento, o vento contra o fogo, eu era o vento e o fogo? Eu era o
vento, e o fogo, quem? E ela era a água? Ela recolhia as próprias células como
para uma cabana em si, e o vento, o fogo, em volta, lhe querendo queimar,
querendo derrubar as taipas, e ela fazia das células uma pequena casa como um
ventre, e o vento assolando os troncos desolados, e o fogo vertendo cinzas
pelos olhos cegos da paixão, ela pediria ajuda à terra, mas já não conseguia
falar, pediria ajuda ao vento, mas já não ouvia, pediria ao fogo, mas já não
sentia frio, e então as faíscas se espalharam sobre as águas como meteoros implodidos
em gotas de fogo refundidas em cristais de memória, diamantes brilhando entre
os rescaldos, tudo em volta chorando em torno de nosso abraço, o fogo o vento a
água as raízes as sementes as seivas a manhã calcinada pelas descargas fora de
órbita, Orfeu se esvaindo no gesto de adeus que se refaz e desfaz nos braços de
todos os amantes.
Outra vez acordamos ao mesmo tempo, já não estávamos na
antiga Castália, mas de novo na estrada de Amor, Amor, e estávamos vestidos,
mochilas, bússola, relógios.
Nos olhamos, tristes, acariciamos as feridas comuns, braços,
rostos, nos abraçamos fortemente, longamente, e nos desabraçamos aos prantos, e
aos prantos nos afastamos, cada um por um par de veredas, cada um multiplicado
em novas encruzilhadas de veredas a caminho do Amor, no caminho do Amor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário