sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Antônio Moura chega à existência

O melhor de “Dez”, primeiro livro de Antônio Moura (1998), é o explosivo poder de palavra; no segundo, “Hong Kong e outros poemas”, esta voltagem verbal atingiu de tal forma o “poético” que produziu momentos antológicos na contemporaneidade brasileira (“Almoço na relva”, “Numa estação do metrô”); em “Rio Silêncio”, lançado quinta-feira passada em Belém, a palavra, por assim dizer, dá lugar ao pensamento e Antônio não só se confirma um autor raro, como inaugura em si outro poeta.

A mais imediata distinção entre prosa e poesia é a potência verbal. Em seus dois primeiros livros, Antônio foi poeta por excelência. É como se a musa entregasse o mesmo poema, pronto, a muitos bardos e ele fosse um dos poucos a dar-lhe uma última limada: “Casulo sonoro/desenclausurado/para teu olvido”; “a noite ostra//cobrindo de fina camada branca/a cama da branca/ninfo-suicida//ornando/(flores de gelo) de branco a branca/ante-sala da morte”.

Falar num poema só de medulas é dizer primeiro Mallarmé. Nunca cada sufixo, cada radical, cada letra espaçada foi tão importante numa obra. Mallarmé é de fato uma matriz à qual nenhum poeta moderno está infenso. Antônio Moura é mallarmaico sobretudo no sentido em que, em dois livros, a própria palavra foi o centro de sua poesia. Não é exagero afirmar que atingiu pelo menos dois dos mais intensos momentos de palavra das letras brasileiras: “Onde a voz é tão soprana que/sua ponta de diamante trinca/o céu”; e

“uma gota de ave

- excremento -

abre n’água
círc círculos
concêntricos”

Em “Rio Silêncio”, esta potência verbal foi tão contida que, quando irrompe, parece uma concessão do poeta: “seu hálito [do Crepusculu] refundindo, nas cinzas, um pássaro de carvão/que levanta vôo com duas brasas encravadas,/o sol e a lua, em cada uma das asas”. No terceiro livro de Antônio Moura, o auto-deleite da inteligência cede lugar aos riscos do pensamento, da erudição. Antônio agora penetra, conscientemente, em todos os temas essenciais do homem. A morte (“Quando a luz cegar o seu fio/de navalha que corta tudo em/claro e escuro...”;), o tempo (“Quando um destes tempos frios passar por ti,/ou por ele, pássaro, passares, pressente a morte,/que naturalmente não cessa”), a transitoriedade da vida (“A juventude – um temporal”), o milagre e o mistério de existir (“Um entre, onde ficamos em/convívio: pai, filho, espírito, espanto/quando um a um de nós caímos/no tumulto do mundo”), o mistério e a beleza do Universo (“Onde o vazio é um estar cheio/de nada, e onde tudo não passa/de espaços entre as estrelas, vida,/morte, numa única centelha”), o amor (“idioma/dos pássaros que vêm se aninhar/na frase entretecida com folhas e/gravetos trazidos pelas mãos do vento/até a copa em flor de nossa solidão”), a própria poesia (“Escrever para supraviver/por um momento, ou ser/inteiramente num instante/em que passado, presente/e futuro se fundem/numa chama única e transparente.” Dentre os temas, a figura do viajante, do transitório, é marcante desde “Dez”, o primeiro livro (“passo//e palito as carnes/do morticínio”, “desfinco as setas desferidas/contra os calcanhares//e parto//meio manco, de um lado”); percorre “Hong Kong e outros poemas” (“Para/trás/está/emaranhada/a floresta”, “Raio parta/o vento leste/se não leste/isto: ... Sedentos de poeira/os cadarços da partida”); e, em “Rio silêncio”, acompanha o curso inexorável do tempo: “Um dia para atravessar – sol/entre duas noites imensas”, “Entre estrela e miséria, o rastro/do viajante risca o caminho”. E, como consumação dialética a este caminhante, surge o tema da casa, também recorrente no último livro: “Ventre-casa de onde saímos/para entrar na casa-ventre de/quatro paredes onde chegamos”, “Vivemos partindo de uma morada//que se ergue em todo lugar com/telhas de nuvem e paredes de vento//Não há o que abandonar quando, /caracol inverso, levamos a casa dentro”).

O Século XX foi experimental por excelência, e, mais profundamente do que o vale-tudo de certas tentativas, talvez o que melhor o sintetize seja a limpeza verbal. Pound, Blaise Cendrars, Drummond são alguns que nunca admitiram um único floreio em sua obra. “Caso do vestido”, clássico de Drummond, as crianças amam do início ao final, pela altíssima intensidade (elaboração) de limpeza verbal. Borges (dos gênios da poesia em seu século, o que menos atuou sobre a linguagem) tornou-se puro pensamento, tanto que a refinada limpeza verbal parece ter por missão não atrapalhar o refletir. Produzir metáforas após estes gigantes é incorrer num risco considerável, mesmo para quem tem um furioso poder verbal. Construir é dizer com a linguagem, não apenas por meio dela; e aí não raro a linguagem torna-se o principal conteúdo. Como limitar um construtor no terreno da filosofia? Como dizer, investigar, revelar, pensar - e construir? Sobretudo: para além de elaborar, como fazer crer que, por trás de metáforas e nomeações, há um ser atormentado com a fugacidade da quinzena e preocupadíssimo com a morte infame? A meu ver, este é um desafio nem sempre vencido em “Rio silêncio”. Não há, talvez, um único poema no livro que não implique numa transfiguração, numa “metáfora”, e isto, se tem o mérito de criar um ambiente misterioso nas peças, em algumas passagens soa como um grande cantor que semitonasse.

Mas voltemos ao paradigma da limpeza verbal, Carlos Drummond, que num século de vanguardas formais encontrou seu lugar na poesia cantando a si mesmo: “me dispo”, “me exponho cruelmente nas livrarias”. Drummond sobreviveu a tamanha contramão por aliar o sentimento (contido, limpidez verbal, medida de seu tempo) a um alto poder de elaboração (aliança que uma estudiosa chamou de “Magia Lúcida”). Acreditamos em Drummond, não há como duvidar da verdade e do poder de fogo de poemas como “Nosso tempo”, “A máquina do mundo”, “A mesa”. O Drummond nos poemas é, sob o ponto de vista da verossimilhança, uma personagem “real”, fidedigna. Quanto ao estilo, é direto, sem nomeações: mesa é mesa, não madeira gemida, vida é vida, não artéria cósmica, rua é rua, não uma colméia poluída ou desencontrada. É possível ler um livro inteiro do itabirano e não encontrar uma única ocorrência do gênero. E, naturalmente, o seu estar no mundo, o seu viver de homem comum, o seu confessar-se é a expressão do homem moderno, o testemunho, o poema de verdade universal.

Minha principal crítica à metáfora é que ela é bonita, mas fácil; se você for nomear alguma coisa, escolha direitinho, transcenda pelo menos a simples nomeação, ou não será perdoado. Antônio defende os próprios riscos quando se declara um cultor do jogo metafórico. Traduziu, por exemplo, Jean-Jospeh Rabearivelo por este (também) desvelar uma região que, “tocada pelo encantamento da metáfora”, “alucinatória”, “provoca uma quase alteração miraculosa da percepção” (prefácio a “Quase-sonhos”, livro de Rabearivelo que verteu para o português). Em entrevista recente, Antônio disse ser a metáfora “o momento de libertação e explosão da linguagem, livre das amarras lógicas, o momento em que o ser e a linguagem entram em contato com o mistério”. De qualquer forma, basta ler os versos a seguir para ver que a limpidez drummondiana (sua prosa, por assim dizer) não faria mal a certos trechos de “Rio Silêncio”: “É o recém-nascido crucificado na madeira do nãoberço/O primogênito das harpias/O saudado por uma harpa de farpas ... O que ganhou um guarda-chuva inflamável/para abrir na chuva de fósforos acesos” (“Cansado, na chuva”); “a lua é um búzio numa toalha gralhazul/gargalhando o destino em crateras ... as palavras de quem não se entende/não são mais palavras, mas sanguessugas na língua”. Como recompensa por estes riscos (manter-se artista é correr riscos estéticos e sobreviver a eles), os melhores momentos do livro surgem quando se dá o encontro entre o poder de palavra (às vezes concretizado na “metáfora”, de valor ontológico, e não simples abstrações), o sentimento de estar no mundo e o pensar sobre isso. Como no poema “Pai”, cujo final é publicado a seguir.


“(...)
Quando eu do fundo da sombra te chamava
e tu, ingênuo, sem saber que me buscavas
com uivos e olhos possuídos pelo gênio oculto
que a tudo atropela pelo seu intento:
o de trazer, através de um sopro, um vento,
um ser para vagar cego entre cegos
num labirinto de ecos e sinais secretos
onde também é – por um sopro,
um vento – desfeito a qualquer momento
Pai, nada a fazer senão estender
a mútua mão do perdão diante
dos propósitos indecifráveis da natureza:
Tu, por, inconsciente, me fazeres,
desamparado, entrar no tempo
Eu, por te fazer, sem escolha, meu instrumento.”

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