segunda-feira, 13 de abril de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"



16 - Neoma

A passagem do tempo sobre nosso esqueleto é a mais triste das condições para a vida. E a natureza não olha pros lados: para que minha filha Neoma festeje quinze anos, preciso ter quarenta e dois; o tempo que lhe se lhe dá é o que me esgota. Amar o filho é cuidar para que sua vida se desdobre e cumpra, enquanto a nossa busca o sossego dos atalhos. Quinze anos, quinze anos, eu também tenho quinze anos, pois ontem mesmo falei que jamais teria quarenta e dois, e sonhava incendiado de convicção, e só agora percebo que o tempo é a mais silenciosa de nossas tragédias.


Ofereço, Neoma, em teus quinze anos, o melhor dos meus quarenta e dois, qual seja, algumas palavras que ganhei contra o tempo, que nos dão a ilusão de estar fora do calendário, acima da vã matéria: palavras como “amor”, “amizade”, “arte”, “Neoma”, “água”, “sabedoria”. Destas, basta comentar “sabedoria”, não minha, que a idade não a produziu, mas dos povos, da civilização: na forma de três ditados eleitos pela memória de centenas de gerações.


Dois dos ditos equilibram a vida num terrível alerta: “Nos menores frascos, os melhores perfumes”; “Prefira um minuto de intensidade a mil anos de banalidades”. O melhor perfume é raro, devotado às constelações, daí o frasco menor; o raro é o intenso, o profundo, o inesquecível, o momento que contém milhões de outros; uma gota de bom perfume vale mais que um garrafão de lavanda. A intensidade implica riscos, escolhas; enfrenta-los é assumir mudanças; a mudança traz dor - mas revela o novo, o desconhecido. O que te dizer hoje, filha, senão isto: que vivas intensamente, que assumas os riscos, nesse tempo de intensas mudanças, que não temas o abismo da gota do melhor perfume, que estejas atenta à banalidade, mas não em troca só de um minuto (tendo a alma aberta e o coração bom, a vida concederá ótimas temporadas), enfim, aproveita a vida, mas te cuida, cuida da noite e do dia, da manhã e da tarde, que já passei da idade de integrais preocupações.


O minuto de intensidade jamais será esquecido - em torno dele gravitam bilhões de minutos –, e para depurar uma gota de perfume gaste-se o estoque de acetato com baunilha. O intenso não apenas enfrenta o tempo, como o vence, cristalino, intacto, em nossa memória. O intenso se prolonga. Preserva-se. O intenso rende, multiplica-se. Daí que a profundidade da experiência – ainda que resumida num segundo – é a melhor forma de se pôr a salvo do tempo silencioso.


O terceiro ditado combate o tempo naquilo que ele tem de melhor (o tempo de criar é o mesmo de destruir): “Plante uma árvore, tenha um filho, escreva um livro.” A árvore, além de durar milhares de anos, se prolonga, vive nas folhas das sementes; o filho levará (não é, Neoma?) nossa linhagem a outros milênios; o livro pode imortalizar o nome, o Eu. Nesse terceiro ditado, o corpo humano fica como o corpo das palavras, nosso sangue, como a seiva das árvores, como os filhos que a vida nunca deixou de convidar à sua festa. De certa forma, aí nos imortalizamos fisicamente.


Tudo isto é sonho, claro, como a vida o é das células e das seivas (apenas os sonhos da natureza duram mais); assim, quero te ensinar hoje, Neoma, outro truque contra o tempo, outro sonho: a esperteza da imaginação. Esta crônica é publicada no jornal de amanhã; hoje é sábado e a leio no jornal de domingo; garanto que jornalistas e gráficos não anteciparam a produção; eu é que fui ao futuro e voltei, com este caderno, e o coitado do tempo até agora procura por mim. Tá ligada, né?

2 comentários:

Barbara disse...

Tempo-tragédia?
Se você não tivesse caminhado por esse tempo medido em 42 voltas em torno do Sol, não teria essas palavras tão belas a dedicar a sua filha.
Parabéns a ela pelo pai.
Parabéns ao pai pelo amor à filha.

Anônimo disse...

Segundo comentário de Benedito Nunes(A alma é a essência da linguagem), observa-se uma produção atípica se confrontada às demais.A retórica aqui é capaz de atingir o leitor,há metáforas filosóficas firmando uma produção,algo mítica.
A filosofia da vida valoriza os sentimentos(angústia,tédio,etc)levando o verbo a constituir-se em poética(adjetivo de poesia).Ainda segundo Benedito Nunes o artista (faz o tempo).Encadeamento que tormam esta crônica(ensaio?) auspiciosa.
Uma produção que mantivesse tal linha de ação mereceria manter-se.Asim desejo.