segunda-feira, 8 de junho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


23 - Não tem tradução

Você tem vergonha do Pará? Melhor: tens vergonha do Pará? Ou, por outra: conheces a importância, para a humanidade, do médico Gaspar Vianna?


Tratar-te por tu, leitor, já cria um fraseado, um caquiado na língua, e nessa toada cheguemos à terra do você, ou melhor, do cê, ou, mais precisamente: de Noel Rosa. Para encontrar um nome escondido aqui na floresta, na água descomunal.


Repito a máxima de Noel: tudo aquilo que o malandro pronuncia, com voz macia, é brasileiro, já passou de português. É brasileiro, não inglês, ou norte-americano, ou senegalês. Não apenas um falar próprio, “português do Brasil”, mas o homem que daí emerge: mais do que emancipado, um homem livre, que se assume do jeito que é, que tem a própria personalidade, o próprio lugar no tempo e no espaço: brasileiro, substantivo fagueiro.

Para além de poeta, Noel Rosa foi, aí, um dos sintetizadores do povo do Brasil, que com ele descia morros e se misturava em multidão: cada brasileiro é um pouco Noel, pois fala com muito da linguagem que ele ajudou a afirmar, afirmando-nos.

Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil”, definiu-nos com o adjetivo “cordial”. A palavra vem de coração, e lhe resumiu os significados sentimentais: afabilidade, gentileza, alegria, faceirice: isso é cordialidade, palavra que vem do coração. Recentemente (mais de meio século depois de “Raízes do Brasil”) os cariocas foram eleitos, por turistas, como o povo mais legal do mundo. Noel tinha razão: é brasileiro, já passou da herança portuguesa - o que também significa que veio depois, que assumiu a própria cara após uma colonização, e que, aí, se assumir, se inventar, significou também se libertar, superar.

E o que veio antes da colonização? E o que veio antes de sermos cordiais brasileiros, ou de sermos navegadores, ou “brancos”? Ou, de outra forma: o que veio antes em ervas, em raízes, em navegações? O que veio em Tamoios, Pariquis, Timbiras? Em Tubinambás, Mundurucus? Nomes que nos fundam.

No Brasil, há a cultura que recobriu (a dos colonizadores), a que se descobriu (a do cordial brasileiro, afirmada pela negritude) e uma que precisa ser resgatada, ou melhor, precisa ser assumida, que é a amazônida, a da floresta, a tua, leitor, com toda a influência (a mistura) portuguesa que este “tu” carrega.

Mas, antes de chegarmos ao nosso nome florestal, citemos outro luminar da terra do você (terra em que tanto paraense tanto se espelha), Tom Jobim: “Artistas como Machado de Assis e Villa-Lobos inventaram o Brasil: o Brasil não existia, a gente ainda tá inventando”, dizia o compositor, botando a excelência artística sobre séculos da história do povo, mas reconhecendo que o Brasil é ainda um caldeirão: o resultado das misturas não se completou.

Quais os “inventores” do Pará? Quanto à língua, recordemos palavras extraordinárias, tambaramã, zarabatana, tucumã, cunhã. Ou, por outra - tacacá, maniçoba, tucupi, jambu, tucunaré.

E quem poderia dizer “é paraense, já passou de português?”. Poetas como Bruno de Menezes e Max Martins, compositores com Waldemar Henrique e Walter Freitas, romancistas como Dalcídio Jurandir e Haroldo Maranhão: os que se assumiram. Que se libertaram. Que deveriam dizer “é paraense, diferente de carioca, Lisboa ou Salvador”. É preciso, ao menos, que descubramos quem já nos descobriu, nos “inventou”: quem “sintetizou” o tipo de beleza – e de feiúra - que somos nós.

O brasileiro é misturado, mesmo que seja 100% negro ou branco. É misturado porque a cultura é misturada, a língua é misturada, o futebol, a música. É misturado-branco no Sul, misturado-negro na Bahia, misturado-índio no Pará, na Amazônia. Quer queiramos ou não. Guamá, piramutaba, carapanã. Cupu, andiroba, muiraquitã. Enquanto não vencermos a própria história, ela será contada por colonizadores.

O nome que viemos encontrar é, assim, um intransferível, insubstituível, universal e benemérito substantivo próprio: parauara, batuque.

2 comentários:

ines pereira disse...

Quem nos ensinou a falar jambu, tucupi e carapanâ?
Aprendemos à mesa do almoço ou à noite debaixo do mosquiteiro.
Expressões do linguajar paraense ...saem da língua para os ouvidos feito música, pra quem nasceu aqui nesta delícia de terra.
Texto impecável! De dar alegria no povo desta terra.E olha que o senhor nem é daqui !Legal!Muito legal!

Barbara disse...

Edsom, sem querer purpurinar teu ego, considero o povo do Pará o mais brasileiro que há.
Sudeste, Sul, são muito questionáveis, já que queimaram suas culturas sob inventos de mídia desde os anos 50.
Apesar de tantos, apesar de Noel, de Tom, de Darcy.
Este, Darcy Ribeiro, que deve estar aplaudindo tua postagem.
Viva esta caldeirão genético, que faz com que meus filhos tenham sangue paraense, paraibano, portugues, espanhol e meus netos isso tudo mais uma pitada de polonês.
Êta caldeirão bom...isso ainda vai dar história, o Brasil é síntese e como tal deve ser respeitado.