segunda-feira, 3 de agosto de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


31 - Na galera

Em golpes de imaginação.

Esse início poderia ser a palavra de Deus sobre as águas, ou golfinhos ensinando aos homens o passe-chafariz, ou “O encontro do Homem com o seu Primeiro Eu”, ou o futebol como o esporte do terceiro milênio, ou de como o futebol nasce não do barro, mas da terra, o início seria bem o rio ou o mar que todos guardamos da infância, os primeiros brinquedos, as visões que marcaram os olhinhos para sempre. Sim, a infância. Então o inicio tem que ser que para cada criança há uma história após a outra, que cada criança eleva o quociente de imaginação da humanidade, que um besouro pode ser o mundo e o mundo pode ser um besouro, e que para cada história encantada minha tinha uma palavra especial. Sim, aquele sentimento: os primeiros contadores de histórias, os primeiros livros. As capas coloridas. A imaginação em golpadas.

Assim pastoreada pela magia – ao amanhecer – acompanhemos essa bola rio acima. A semi-escuridão que emana da mata envolve-a; o sol que desponta auréola-a. Às vezes mergulhando no rio, às vezes suspensa em halo, a bola agora é uma canoa e leva nos gomos ritmo de maré e pato no tucupi; danças de ventres sinuosos e um milhão no Círio; transporta uma raiz revolvida e o começo da água. Assim tangida, de canoa a bola vira boi-bumbá, passe a curta-distânca do Pará ao Maranhão. Aí a bola enfia as mãos por milhares de seixos de babaçu – como noutros lugares escorrem entre os dedos grãos de feijão ou cachos de trigo – e, em Goiás, o sotaque límpido do Maranhão aprende a cortar os “nn”.

Em minas a bola fica séria, melancolia que mira longe tramada pelas montanhas. (Nela Drummond é um ser em contemplação, extático, e Milton deixa a voz aos diamantes.)

Fronteira dos pampas: para o frio, mantas e chimarrão; milongas à solidão.

Em São Paulo, a bola passa um dia andando de ônibus e metrô e uma noite perambulando entre bares e tribos. Só então quebra vidraças na Paulista.

Após visitar o Maracanã, a bola cai de boca no Rio.

Na Bahia é o corpo pra lá, o corpo pra cá, o corpo pracolá...

Varando o Nordeste, a bola é sal ao sol (o rosto dos homens se representa com motivos regionais de terra gretada).

Até que no Ceará a bola relaxa – agora jangada tangida pelo vento – e as bordadeiras presenteiam-lhe com a claridade tropical. Bordado de Brasil, a bola vira tapete e pousa na França em vôo de Aladim. Recolhe-se por toda a Paris em três dias de meditação. E só então se mistura aos países da Copa.

Conhece o admirável homem novo das neves, o homem da montanha, latinos em sedução fumegante. Vai à África em tabelinha com a Ásia. Faz amigos em todos os países da Terra. Recolhe assinaturas de variadíssimos talentos.

Quando volta à galera (este lugar de onde vejo o jogo) a bola contém a forma do globo terrestre: imagino que nela se encontram todas as culturas, todos os meninos e domingos: todo o conhecimento – mas purificado pela paixão. Sinto que a bola é um sonho: os homens, todos os homens, pertencem à mesma família – ligados pelo ramo do Futebol – e se compreendem, se respeitam as diferenças. O Eu confia no outro. A chave do emocional.

É nesse reino mágico em que ingresso – sonho sem diferença entre criança e torcedor - que os artilheiros contam histórias de aventuras. A galera ouve de boca aberta, o coração aos pulos, olhos brilhantes-arregalados. Então o artilheiro anuncia que são iguais os direitos das crianças e adolescentes e os dos torcedores, e adota – de volta ao início, fechando nossa circunferência – por princípio um parágrafo único: toda criança e todo torcedor têm direito ao livre desempenho de sua paixão e de sua imaginação.

Estar na galera, a-final, é aviar histórias.

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