segunda-feira, 21 de dezembro de 2009


46 - Pedro

A pedra rebentou: Pedro. Desde sempre, menino da pedra, desde a época das grandes explosões, dos sóis que queimavam como enxames de relâmpagos, das lavas se solidificando feito mares vermelhos, em órbita. Bem-vindo, Pedro, neném de pedra, desde o tempo em que as estrelas dormiam nas campinas.


Bem-vindo, menininho de boné, menininho de dois dias, ninho de sonhos, bem-vindo ao Século XXI, e pode abrir os olhos, é seguro, não temas épocas antigas tuas, quando as mães eram nômades e a vida atravessava pela morte. Abre os olhos, é seguro, vamos por uma travessia pela vida. Pedro, pedra de Pedro, desde a época das primeiras águas inundando os vales, sem pássaros além da alga que migrava entre-montanhas. Pedro, Pedro de tempo, granito de luz, faíscas de sangue bom.

Pedro pedra, tábua de projeção, a quem logo chamei Gladiador. (Quando a pediatra entrou no quarto, avisou: “Agasalhado, ele nunca vai comer; menino é preguiçoso, e tem que tirar a roupa, fazer ele se incomodar, se espertar, para que mame.” Gladiadores recém-nascidos não acordam nem para comer.) Pedro, meu minúsculo grande filho, traquinas, saliente, logo notei nos raros segundos em que acordou, nu e sacudido por três mulheres, com sono a tirar leite do peito. Pedra levada, menino lascado, Pedro esperto no concreto, nas cabras montesas. Pedra, quando abrires os olhos, menininhoinho, eu quero estar presente para chorar.

O que se oferece à pedra, senão palavras? Ao Pedro desde que os peixes viraram pássaros, e os pássaros viraram beija-flores, que conselho, que sabedoria dizer à pedra, senão esta das palavras, do sopro, do deslumbramento diante do primeiro vento? Pedro, eu te ofereço palavras, jogos de ser, palavras que movem as montanhas sobre os reinos, palavras vivas como o calcário, o mar.

“As Aventuras de Tom Sawer”, “As Aventuras de Pedrinho”, os séculos rodam rapidinho e tudo o que vejo pela frente pisca: Pedro eletrônico, Pedro de Órion, parede de caverna do Cavaleiro Biônico, turbina neolítica, cyborg fundido em magma, Pedro em tudo, eu te saúdo, advento de era, tempo que acorda como uma pirâmide, eu te saúdo e tua mãe te adora (tuas ladinas irmãs te festejam, por isso fica esperto: para aprender). Pedro de fantasia, Pedro dicionário de palavras por criar, jóia da única imaginação mais lenta que os filmes de Tarkoviski, bem-vindo à brevidade das palavras, bem-vindo leeento, Pedro de brisa, pedra à flor do mar, beija-flor enorme pousado nas mãos da mãe, no banho.

Eu te ofereço frases, garças de graças, frases da vida para a eternidade, curtas como as sílabas do sopro, como a duração de veres pela primeira vez tudo o que eu julgava ter visto. Vida, vista sobre a natureza do corpo, paixão que desmancha a carne e funde voraz outra fome, Pedro, eu que recebi e te transmiti a pedra entrego também a brevidade da vida, nessas palavras que garimpei não do cotidiano, mas da meia-idade em corrosão, palavras que se ficaram de lado e irrompem erodidas: eu te transmito o presente (pedra só lembra do futuro e da infância) e um consolo: a palavra traz a consciência da brevidade, mas ensina a ver na velocidade da luz.

Vida sentida, poema que se sofre de tão maravilhoso, que se pena deslumbrante como um peregrino, que se conhece de tão doce: Pedro de tempo, em ti fundo essa primeira palavra, “Vida”, sem tempo, sem norte, vida apenas, peripécias de teus primeiros saltos na minha imaginação.

Pedro em que sou pedra e, a largas passadas, estremeço as palavras que me atraem às montanhas.

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