56 - Desnaturadas e imperdoáveis considerações de um bebê
“Cara madrinha Cristina,
“Cara madrinha Cristina,
Desculpe o português pretensioso, mas, se eu já não nascesse escrevendo, meu pai morreria de desgosto. Falar nisso, passo a dever uma crônica para minha outra madrinha, Regina, pois que tenho duas: uma católica e afetiva (Regina) e outra apenas afetiva, por arte e manha dessa nuvem de calças, dessa temeridade abismal, meu próprio pai, Edson Coelho de Oliveira. Como ainda não fui batizado e nem conheci a Regina, é contigo, Cristina, que divido graves preocupações.
Nos meus primeiros dias de vida, eu achava que só o meu pai era louco. Hoje, prestes a completar quatro meses, constato que a loucura não é a exceção. Teu amigo Edson continua a ser um campeão, claro, e não vai aqui simples vingança por me obrigar a folhear o “Ulisses” do Joyce. Basta dizer que, anteontem, o desmiolado precisou cuidar de mim de madrugada e, em vez de acalentar, despachou-me para o carrinho e ainda tentou engambelar lendo versos de lavra própria. Que cristão agüentaria? Abri mais o berreiro, e o desnaturado então me pegou no colo, e teve a brilhante idéia de liberar logo a mamadeira de leite que eu só veria duas horas depois. O que se seguiria, Cristina, vale por cerca de quatro horas de agonia: inchado de leite, aceitei ficar no conforto do carrinho, e o azuretado do Edson voltou ao texto que escrevia, ou, melhor, que não conseguia escrever: aproximava-se do computador, lia em silêncio, lia em voz alta, mudava a entonação da voz, e voltava sempre aos mesmos versos, e voltava e voltava, e empacava no mesmo ponto, às vezes anotava outras palavras fora do texto do poema, e retornava ao trecho encasquetado, e passou a andar pelo quarto, repetindo em voz alta as mesmas palavras, e eu, que achava que tinha visto tudo, fiquei bem assustado, ele fundira de vez a cuca e parecia uma secretária eletrônica avariada, a repetir as mesmas palavras empacando no mesmo lugar. Claro, perdi o sono - e se acontecesse algo ainda mais trágico? Muuuuuito tempo depois, o que é o meu pai deu um grito inopinado, aproximou-se do computador e escreveu, vermelho, uma única palavra. Leu todo o trecho, berrou “Eu sou um gênio!” e eu quase chamo o 192: quatro horas pra achar uma palavra e se achar a cereja da cocada preta? Coitado. Como vês, o quadro é apavorante.
Bem, meu pai não ter salvação é, de qualquer forma, indiferente para a humanidade, mas a humanidade não ter a menor chance preocupa: estou no auge dos meus três meses e ainda sonho em fazer algo diferente. Acontece que vou acabar é dando razão ao Edson: o mundo é todo biruta. Tudo o que nos cerca está imiscuído de birutice. A loucura (ou seria a mentira?), entranhada nas estruturas, nos hábitos, nas convenções. É-se levado a crer em fantasias, em símbolos, em ícones para além do plausível. A fantasia é um dos elementos mais determinantes da realidade, da “verdade”. A vida é uma imperfeita invenção.
Pra não achar que é implicância com o mundo (imagem e semelhança do meu pai) olhe bem para as pessoas, o que fazem do tempo, como consomem e se consomem, as ansiedades, as pressões, olhe direitinho, e veja quanto tempo e trabalho são gastos para que os adultos façam certas coisas, todo dia, todo dia, como se as horas se repetissem tal na secretária eletrônica modelo Edson Coelho. Todos doidos, inexplicáveis, robóticos, mecânicos desde o último fio de cabelo do universo que nos ignora.
Cristina, confesso: detecto em mim gestos e arroubos só presenciados em meu pai, e temo ser estigmatizado como boi-bumbá da lua. Pega urgente um avião!
Pedro Damaso de Oliveira
P.S. cuidado com este e-mail: meu pai tá tão surtado que seria capaz de publicar como crônica.”
2 comentários:
Coelhão,
Saudades do peixe frito regado a cervejas e do bilhar na avenida Ceará. Ao som de nosso amigo Luiz Gulherme, nome conhecido e respeitado na área.
Aliás, você e o Luiz eram meus patinhos prediletos.
Atenção: acompanho azougues com carinho e admiração e sempre recomendo às pessoas de gostos literários exigentes.
Forte abraço
valeu, amigo. caramba, precisamos marcar urgente esse bilhar com peixe frito. patinho? que que é isso: sabes que sou quase um rui chapéu.
Postar um comentário