segunda-feira, 12 de abril de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


57 - Cenas paraenses

A pata grotesca

Isopor em aeroporto é sinal de paraense. Se a pessoa chega de Santarém, não há dúvida: traz comida, pronta com o tempero da avó, ou por fazer, em forma de peixe ou pato. Ou de tartaruga.

Vôo de Santarém, e os passageiros gargalhavam ao recolher a bagagem na esteira rolante.
Até que só restou um grande isopor, girando, abandonado pelo dono com medo do Ibama.
Motivo: uma tartaruga, a despeito de cuidadosamente amarrada, libertara a potente pata dianteira direita e com ela furara o isopor.
A PF vigiando, a esteira rolando e aquela pata pra fora, a acenar.


Só excomungando

Aquele jornalista chegou ao apartamento de manhã, bêbado e sedento. Não tinha água. Nem na torneira. Dormiu atormentado, e acordou à beira da desidratação. Sem uma gota dágua.

Numa decisão de vida ou morte, resolveu lamber a parede do congelador da geladeira vazia. E a língua grudou.

Foi pior que dormir na sarjeta: a língua grudada, o telefone longe, o interfone perto, mas fora do alcance, a língua queimando e o risco de, ao se mexer muito, perder a ponta do ressecado músculo.

Alcançou, por meio de contorções indescritíveis, uma enorme chave de fenda, com a qual agrediu o congelador, salvando a língua, mas perfurando o plástico: o ressaibo ardido e pressuroso do gás a vazar.


No interior

O cumprimento é sagrado nas veredas interioranas. Por mais que não se conheça a pessoa, diz-se 'Bom dia!', 'Boa tarde!', ou simplesmente 'Ooooi!'. Este 'Ooooi!' é destinado, inclusive, àqueles a quem não se enxerga. Se, por exemplo, ouvimos vozes ou o trotar de um cavalo, longe, dizemos 'Ooooi!' e recebemos de volta o cumprimento. Um gesto automático, cultural.

Cultural também (sobretudo seis décadas atrás) era a caça para a alimentação da família. E os ribeirinhos garantem: sempre foi quase impossível abater um maguari.

Seu Renato tentava há anos levar um maguari para o jantar, mas sempre falhava: o pássaro, arisco e esperto, nunca se deixara surpreender.

Num belo entardecer às imediações de Alter-do-Chão, seu Renato vinha com dois filhos, quando enxergou à distância, na copa de uma árvore, uma turma de maguaris. Aproximou-se sorrateiramente com um dos filhos, Zezinho. Parecia um milagre: estavam já sob a árvore, e nenhuma ave voara. Seu Renato estremeceu de alegria quando firmou a mira. No segundo em que ia puxar o gatilho, ouviu-se baixinho, quilômetros distante, o cumprimento: “ooooi!”. E Zezinho, automático: “OOOOOOII!!”, espantando a passarada.


Poraquê

Na palafita, o jovem pulou da cozinha para a água enlameada do quintal, na tentativa de aparar um papagaio que chinava. Na água, pegou um cano de ferro para enrolar na rabiola - e foi parar no hospital.

Levou uma descarga de centenas de voltts: de um peixe elétrico que morava no cano de ferro, embaixo da palafita: à espera de se restabelecer o contato das águas do quintal com as do rio Tucunduba, ali no Guamá.


O veneno da bacurinha

Um jornalista boêmio senta-se ao lado de outro, no Cosanostra. E espanta-se.

- Caramba! Vieste da guerra, da Transamazônica, de Woodstock? Maluco, tu tá pior que o bagaço da laranja!

O outro permanece calado, baixa a cabeça diante do copo de uísque e retorna à divina comédia de pecados.

Minutos depois, intrigado, o amigo indaga:

- Afinal, o que diabos te aconteceu?

O moribundo busca no fundo do ser todas as forças, puxa o ar para fazer chegar à boca a débil fala, e responde como se lhe fora a última frase:

- Bu-buceta!

Foi instantaneamente deixado em paz.

Um comentário:

Edir Gaya disse...

Na vida real, que muitas vezes subverte até a imaginação, não foi bem assim que o jornalista de ressaca livrou a língua presa no gelo do congelador. A versão verdadeira, embora escatológica, é bem mais engraçada, não sei porque preferiste essa desenxavida chave de fenda, mas vá lá, que seja...o real escatológico é sempre assustador...