60 - Água
Este relato se passa no ano cem mil e quatorze anos depois de Cristo, mas serviria melhor ao século XXI.
Por uma daquelas inexplicáveis circunstâncias da política, o futuro presidente do Universo Conhecido era Edward Lydon, escultor de apenas dezessete anos. No dia da posse, horas antes de discursar para dois trilhões de seres em duas galáxias, Edward apagou as luzes do quarto com um dispositivo cerebral (instalado em seu corpo cibernetizado) e entregou-se a um banho de vapores vertebrais: vapores perfumados, coloridos e de temperaturas variadas. O jovem ergueu-se do banho de olhos fechados e, sem acender as luzes, andou em direção ao pátio do enorme apartamento flutuante (como uma plataforma espacial). Quando chegou ao pátio, sentiu as luzes se acenderem sozinhas, abriu os olhos e viu, através do vidro, um corpo celeste produzir lá fora um clarão - Edward baixou a cabeça e teve uma visão, que se passava centenas e centenas de séculos antes: uma moça banhava-se em água corrente, num planeta que só podia ser a Terra.
Edward (ao contrário de quase 100% das pessoas) já fora à Terra e vira o rio Amazonas, ou o que restara dele, e assim pôde reconhecer o cenário da própria visão: o riozinho parecia canalizado diretamente nas gordas nuvens entrevistas sobre as copas das árvores; a água percorria a pequena cascata de pedras até chegar a uma grande rocha; ali formava um pequeno lago, que transbordava sobre a rocha e sobre a moça.
Edward sabia que era uma visão, não um sonho, e que não era um simples delírio, mas uma revelação.
Ele revia a imagem como um profeta, e sabia que o rio (o tempo) encharcava o corpo da moça sem arrastá-lo, minava a pedra sem dissolvê-la; de tal forma que as impregnava de uma substância eterna parecida com musgo. Assim (sem a mediação do tempo) a menina banhava em êxtase, e aquela água banha-a até hoje, e tal certeza ninguém tiraria de Edward. Mais: ao recordar depois a visão, o jovem sentiria algo que nunca vira ou experimentara, e não sabia de onde vinha, a não ser da ancestralidade que já durava cem mil anos: Edward compreendia o rio que banhava a moça como se ali passara a infância, e sentia até o limo frio que a água criava nas pedrinhas, ao roçá-las incessantemente pelo fundo.
Em menos de duas horas, Edward se tornaria o homem mais poderoso do Universo. No entanto, se comportava como o escultor. Arroubado pela juventude, ele fez então o que nem a política explicaria: discursou de improviso no evento mais importante do ano. Gastou longos minutos explicando o que era a água e os benefícios que, no passado, trazia ao corpo. Falou de como ainda hoje parte da angústia humana era provocada pelo desconhecimento da água (cujas funções no corpo foram substituídas por outras substâncias ou programações cibernetizadas). “Caso o ser humano volte a ingerir água regularmente, se curará da melancolia que atinge a espécie em tantos planetas...”, escandalizou Edward a todos.
Ora, caro leitor, Edward Lydon não seria um presidente de fachada. Era um jovem extraordinariamente dotado. Só se aceitou sua condição de herdeiro (até atingir a maioridade para o cargo, de 25 anos) porque todos o amavam. Mas aquele súbito elogio à água poderia ressuscitar um antigo e insensato projeto: reproduzir a natureza terrestre noutro planeta, infinitamente maior; e a um custo que poderia comprometer projetos com os quais já estavam comprometidos tantos parlamentares e governantes de países e planetas.
Após o discurso, Edward recolheu-se com familiares, amigos íntimos e membros do poder. Anunciou que só voltaria no dia seguinte à que já era a palavra mais falada do universo: água. A despeito do sufocante assédio de que era alvo, não demorou a isolar-se no quarto enorme - pensando em como encontrar a moça, a fonte, o sol, as árvores, o limo das pedrinhas no fundo do rio.
Este relato se passa no ano cem mil e quatorze anos depois de Cristo, mas serviria melhor ao século XXI.
Por uma daquelas inexplicáveis circunstâncias da política, o futuro presidente do Universo Conhecido era Edward Lydon, escultor de apenas dezessete anos. No dia da posse, horas antes de discursar para dois trilhões de seres em duas galáxias, Edward apagou as luzes do quarto com um dispositivo cerebral (instalado em seu corpo cibernetizado) e entregou-se a um banho de vapores vertebrais: vapores perfumados, coloridos e de temperaturas variadas. O jovem ergueu-se do banho de olhos fechados e, sem acender as luzes, andou em direção ao pátio do enorme apartamento flutuante (como uma plataforma espacial). Quando chegou ao pátio, sentiu as luzes se acenderem sozinhas, abriu os olhos e viu, através do vidro, um corpo celeste produzir lá fora um clarão - Edward baixou a cabeça e teve uma visão, que se passava centenas e centenas de séculos antes: uma moça banhava-se em água corrente, num planeta que só podia ser a Terra.
Edward (ao contrário de quase 100% das pessoas) já fora à Terra e vira o rio Amazonas, ou o que restara dele, e assim pôde reconhecer o cenário da própria visão: o riozinho parecia canalizado diretamente nas gordas nuvens entrevistas sobre as copas das árvores; a água percorria a pequena cascata de pedras até chegar a uma grande rocha; ali formava um pequeno lago, que transbordava sobre a rocha e sobre a moça.
Edward sabia que era uma visão, não um sonho, e que não era um simples delírio, mas uma revelação.
Ele revia a imagem como um profeta, e sabia que o rio (o tempo) encharcava o corpo da moça sem arrastá-lo, minava a pedra sem dissolvê-la; de tal forma que as impregnava de uma substância eterna parecida com musgo. Assim (sem a mediação do tempo) a menina banhava em êxtase, e aquela água banha-a até hoje, e tal certeza ninguém tiraria de Edward. Mais: ao recordar depois a visão, o jovem sentiria algo que nunca vira ou experimentara, e não sabia de onde vinha, a não ser da ancestralidade que já durava cem mil anos: Edward compreendia o rio que banhava a moça como se ali passara a infância, e sentia até o limo frio que a água criava nas pedrinhas, ao roçá-las incessantemente pelo fundo.
Em menos de duas horas, Edward se tornaria o homem mais poderoso do Universo. No entanto, se comportava como o escultor. Arroubado pela juventude, ele fez então o que nem a política explicaria: discursou de improviso no evento mais importante do ano. Gastou longos minutos explicando o que era a água e os benefícios que, no passado, trazia ao corpo. Falou de como ainda hoje parte da angústia humana era provocada pelo desconhecimento da água (cujas funções no corpo foram substituídas por outras substâncias ou programações cibernetizadas). “Caso o ser humano volte a ingerir água regularmente, se curará da melancolia que atinge a espécie em tantos planetas...”, escandalizou Edward a todos.
Ora, caro leitor, Edward Lydon não seria um presidente de fachada. Era um jovem extraordinariamente dotado. Só se aceitou sua condição de herdeiro (até atingir a maioridade para o cargo, de 25 anos) porque todos o amavam. Mas aquele súbito elogio à água poderia ressuscitar um antigo e insensato projeto: reproduzir a natureza terrestre noutro planeta, infinitamente maior; e a um custo que poderia comprometer projetos com os quais já estavam comprometidos tantos parlamentares e governantes de países e planetas.
Após o discurso, Edward recolheu-se com familiares, amigos íntimos e membros do poder. Anunciou que só voltaria no dia seguinte à que já era a palavra mais falada do universo: água. A despeito do sufocante assédio de que era alvo, não demorou a isolar-se no quarto enorme - pensando em como encontrar a moça, a fonte, o sol, as árvores, o limo das pedrinhas no fundo do rio.
Um comentário:
Gostei dos poemas referentes ao tempo, este tema me fascina.pobre cibernetico que não conhece as delicias que a agua pode trazer a um corpo sedento e cansado.hihihih
AMEI tudo.Parabens
mercimery
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