sábado, 12 de maio de 2012

A memória da rosa


Anoitece rapidamente, Jerome decide voltar à vereda, apressa o passo, suado, resfolegante, com muito medo. Todo o corpo arde, pelo sol o dia inteiro, pela sujeira, pela roupa grossa, pelas botas pesadas e sujas. Às costas, a mochila carregada das pedras preciosas que roubara dos índios, após dois meses de um convívio tenso e cauteloso. Ainda o perseguiam? Por que não resistira a Kãwá? Tinha que beijá-la, humilhá-la, prendê-la pelos cabelos, esfregar-se nela tão doidamente, quando já iniciava a fuga? Estaria morta, após bater a cabeça na pedra? Pela vereda, Jerome se tornava um alvo fácil, mas a escuridão era quase completa, não chegaria ao rio pelo mato – e o rio estava próximo, sabia, sentia. Apressou o passo, pisando pequenas plantas na vereda pouco usada, tropeçando em cipós finos, espantando insetos que o perseguiam aos enxames. Água – leve, o barulho, não à frente, ao lado – Jerome saiu da vereda, parou no alto da ribanceira – embaixo, um pequeno braço do rio, sonoro num leve declive – o rio estava próximo! Só então Jerome se deu conta de que chegar à beira, naquela hora e naquele isolamento, não representava salvação – quanto tempo demoraria a passar um barco, uma lancha, uma canoa? Os índios o alcançariam antes? Não tinha alternativa – voltou-se, pisou e resvalou em algo roliço, sentiu uma poderosa mordedura na canela, gemeu e recuou rápido, em direção à ribanceira – uma cobra – escorregou, agarrou-se num cipó próximo, o cipó cedeu, ele despencou – sentiu a cabeça bater forte em algo sólido, e desmaiou.
Jerome ouvia sons muito distantes, vagos, que não se aproximavam, não cresciam, não se definiam, não se esclareciam. Sua vida eram sons apenas, sem consciência de estar ou não vivo, de pensar no que acontecera, no que acontecia. Sons, escuridão, inconsciência, semi-consciência, sons distantes, às vezes pareciam tocá-lo, sons, ruídos, estremecimentos, sons, sons, escuridão, semi-consciência, estremecimentos, contorções, sons, murmúrios, barulhos, indefinidos. Certo dia, abriu os olhos, ergueu a cabeça – não reconheceu como índios os homens em volta, não reconheceu os movimentos como de uma aldeia, não sabia o que eram crianças, o que eram animais. Como se de nada soubesse, como se nada tivesse visto antes daquela manhã, como se fosse aquele seu primeiro dia de vida.

Não reconhecia as expressões curiosas que o fitavam, nem as faces desconfiadas, nem os gestos raivosos. Não reconhecia as palavras, não sabia o que era palavras, nem fala, nem a dança, nem o fogo. E não se movia – não tentava se levantar, não tentava andar como os outros, nunca tentou falar, apenas olhava, olhava, nunca ria, mas chorava – desciam lágrimas de seu rosto, sem razão clara, sem maior significado que lhe escorrerem pelas faces.

Certa tarde, após uma forte chuva que durara horas, alguns índios se aproximaram resolutos, e tiraram o homem à força da rede, ele apenas gemia, com medo, os primeiros sons que emitia, gemidos de medo, incompreensão, arrastado até o ritual à roda da enorme fogueira. Sentaram-no, ele caiu para o lado, de novo o sentaram, de novo caiu, por fim assim o deixaram, no chão, com os olhos arregalados em direção ao fogo, agora em silêncio e completamente imóvel.

Os índios trocavam falas entre si, ora raivosas, ora calmas, como se ponderassem ou ameaçassem sobre uma decisão, por fim um deles, o mais velho, aproximou-se de um algguidar de barro, cheio de água fervente, e passou a botar dentro algumas das dezenas de ervas ali dispostas em pequenos feixes – o homem separava as espécies, umas deixava de lado, outras colocava no alguidar, não se sabia se para curar, ou para matar, já que a poção resultara de uma decisão coletiva no ritual ao redor da fogueira.

O homem não esboçou reação quando três índios se aproximaram com um pouco da porção numa cuia, lhe ergueram a cabeça e o fizeram beber, o líquido quente desceu pela garganta sem que o homem reagisse, um pequeno gole, mais um, até que os sons foram ficando mais distantes, e seus olhos se fecharam como num alívio, e de novo mergulhou numa semi-consciência, inconsciência, escuridão, escuridão, imobilidade total, nem um arfar, nem um respirar, e não se podia saber se, em algum ponto de seu corpo, algo resistia, se agarrava ao que se chamaria de vida, se algo ansiava por voltar – a quê?, a quem?, por quê?, e já não havia pensar-se em tempo, e já não havia cogitar-se em realidade, mito, alegoria, simulacro, simulação, motivo, angústia, criação, emissão, recepção, não havia se cogitar nada, nem mesmo uma cor?, nem mesmo uma brisa?, nem mesmo um calor?, uma carícia?, um roçar, uma gota de chuva?, porque uma mudança - agora não era uma memória, era um sentir, e não era um sentir - menos do que um sonho, menos do que um pressentimento, uma impressão, ali, se sabia, caiu um jambo na terra, e do jambo nasceria jambo, não manga, ou graviola, e não uma flor, ainda mais rosa, menos que uma lembrança ou um brisa, era uma rosa, então de que se recordaria, se não se podia falar em inconsciência, ou semi-consciência ou sons distantes, ou respiração, então, uma rosa na manhã, e dois meninos índios brincando, curumins, e, sob o jambeiro, simplesmente ouviram “Eu!”, mas de onde, apenas uma rosa balançada por um vento, não, por uma leve brisa como o respirar próprio das folhas e raízes.


4 comentários:

Ana Laura Bentes disse...

Adoreiiiiiiiiii

edson coelho disse...

eita, loura. parabéns é pra você (oab). pense grande, sonhe grande, faça coisas grandes - o dia tem as mesmas 24h para o golfinho e o tatu (sem desmerecer o golfinho, ehehe).

Szegeri disse...

Meu poeta... Adoro-te palavras.
Beijo

edson coelho disse...

eita, moleque, como dizem alguns de nossos sambistas. não perca por esperar - não demora eu pintar em sampa - samba em sampa, como você bem sabe. até mais.